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* It All Starts From Pieces ...*
A proverbial crise de meia-idade. Imaginei sempre que se mitificou a chegada a uma meta que deixou atrás de si metade de uma existência. No mínimo, que se exagerou. Ou então tratava-se de uma revolta contra os anos que passam e o desespero perante erros que não deveriam ter sido cometidos consumindo a consciência. Seja como for sempre tive as minhas dúvidas e descrença.
Até ter escutado o recorte confesso de um homem de quem deixara de ter noticias durante semanas. Palavras escutadas que não iluminaram meia existência. Cheiraram a fuga ao desespero por todos os poros.
Caso lapidar de suposto sucesso e realização pessoal. Vinte anos de casamento e fidelidade intima inflexível. Dois filhos de maior idade em universidades pagas para transformar cursos em empregados de sucesso. Uma vida estreita e prevista em rotinas férreas de pacificação colectiva. Compreensão mútua e sexo assente na malha do "devo satisfazer para ficar satisfeito". Esposa culta, empreendedora e senhora das suas amizades liberais. Sem quaisquer dúvidas sobre a sua aceitação do direito a outros escolherem a sua sexualidade sem contestação.
Precisamente ao chegar aos cinquenta anos, contou-me, algo cedeu dentro de si. São abalos que não surgem do nada ou de uma fragilidade passageira. Recusou o extemporâneo que poderia aninhar um capricho de personalidade. Sorriu quando lhe disse que se suspeitava da influência de outra mulher para tal radicalismo e o seu "não!" foi demasiado claro para ser mentira.
Cedeu e abandonou. Voltou as costas numa daquelas vagas de certeza que apenas iluminam as noites em dia uma vez na vida. Quando a recusa de continuar é escrita a ferro e fogo por um abrir de olhos que nos torna insanamente lógicos em transcrições sobre a inutilidade do obtido. Que o engenho tenha sido despoletado aos cinquenta anos ficará para quem defende a crise da meia-idade como uma fase. Como se de um ritual de passagem se tratasse.
Com o dinheiro que tinha viajou para outro país. Suportando a raiva e angústia dos outros. Também porque se assumiu culpado e assim foi mais fácil carregar a culpa. Mas creio que tem razão. De facto, acredito que a razão que acende o desespero de certas constatações pode perfeitamente pernoitar na decisão mais critica de terminar com algo antes do tempo. Não viver o que afinal se revelou uma bárbara farsa.
E foi a sua expressão, principalmente a sua expressão, que me derrotou fascinando. Numa face com mais traços de expressão desenhados pelos dias ao sol longe do escritório e do ar condicionado, no cabelo longo e cinzento dos anos, penteado sem cuidado para trás da cabeça e na farta barba que lhe cingia o riso agora claro e sem pressa. Tudo e mais tudo exprimia pacificação e libertação naquela expressão. De tal forma que enquanto falava sobre motivos e causas se tornava opressivo nos processos que plantaram o seu desligar e abandono.
Não comprou uma mota e foi percorrer o mundo. Não decidiu que queria uma tatuagem rebelde ( de facto, até criticou as minhas "demasiadas tatuagens..." ) e muito menos decidiu que deveria estar bêbado todos os dias em desesperada compensação. Decidiu que não conseguiria conviver com a negação de certas lógicas insanas.
E aquela expressão de humilhante felicidade não se finge e muito menos compra. Tomou posse dela aceitando tudo o que perderia e não fugindo ao que iria sofrer no processo.