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Não temo o silêncio, a falta de palavras que por vezes tanto sufoca e arrefece a condição humana. Tenho profunda admiração por quem, no meio de uma conversa, corta as palavras. E permanece em silêncio. Há quem confunda isto como um acto de distração.  Por vezes refere-se a uma vontade de pensar. Para mim, essa quebra no discurso é um regresso ao primado de tudo; a um silêncio que é tão raro e para tanta gente uma perturbação à sua vida. A mim faz-me pensar no que tenho perdido. Como as palavras se tornaram barreiras rochosas à comunicação sem palavras.

E eu recuso-me a deixar de comunicar por gestos e por olhares.

Por um lapso de tempo, por mais curto que seja, pensem na dor. Sempre achei que a dor é pessoal. Não é um património colectivo de poetas ou escritores rançosos de presunção.

A dor pertence ao interior pessoal. É propriedade exclusiva e pessoal. Por estranho que pareça, é a única emoção que é realmente propriedade nossa. Mais estranho ainda, eu gosto da minha dor.

Nunca se devem lamentar os prazeres secretos que nos assomam tantas vezes. Pequenos trejeitos de personalidade que nos afastam de tudo. Tiques, paixões.

Eu, com todo o peso que a palavra possa ter, sinto uma genuína paixão pela escuridão. Por tudo o que carrega, por todas as noções de bem e mal que transporta, por este conceito e por esta falta de luz, nunca me senti cego. Nunca.

Consigo compreender quem  se sente atemorizado pela falta de luz, quando o breu é tão denso que não vemos um palmo à frente do nariz. A sensação de abandono e perdição deve ser esmagadora. Mas também me parece que advém em muito da necessidade que a maioria tem de se sentir protegida. A noite e a escuridão conseguem transformar-se em labirintos de desespero, sem dúvida.

Mas a solidão que evoca, o silêncio conseguido em horas altas da noite, não se podem comprar ou quantificar. Ultrapassa tudo o que possa reluzir nos dias mais solarengos.

Longe de qualquer conceito meramente supersticioso, mágico ou romancesco, a  escuridão é mais do que o negro ou falta de luz. É um prazer meu, que se transforma em iluminação para os dias difíceis ....

 

 

 

 

 

 

 

Sabem que eu noto tudo? ...

 

Tudo...


Noto quando alguém desiste de mim, quando pára  de tentar açoitar-me. Domesticar. Noto, quando a força dos seus gestos e palavras vai esmorecendo.

Eu noto quando alguém muda o seu tom de voz ao falar comigo. Quando começam a mudar nas sua atitudes. Vou notando e observando como mudam nas pequenas coisas. A diferença das pequenas coisas, sabem? As pequenas coisas que fazem e as pequenas coisas que faziam.

Eu noto quando algo muda ao meu redor. Quando se torna em algo que não era.

Observo os pequenos, diminutos pormenores; detalhes de quem muda.


E não digo nada,


( não vale a pena ...)


 

 

 

 

 

 

Humanidade perdida,

 

Fernando,

40 anos, médico de profissão. Juramento feito: servir os outros. Cuidar dos que padecem de males. Tantos males!

Regressado à 2  meses de África, onde permaceu por 3  anos. Voluntário. Tratar e ajudar quem acha que mais precisa. Esta foi a sua segunda missão. Voluntariado por 2  vezes, em prol de outros.

O fernando já não sai de casa há um mês. Não tem visto televisão. Não lê jornais e nem sequer ouve rádio.

Confessou-me, entre soluços ásperos de quem viu o inferno e voltou, que não lhe fogem do pensamento os últimos suspiros da criança de 2-3 anos que viu morrer no colo da mãe. Morte por desidratação. E fome. Consumida pela fome e pela sede.

Nunca o vi torcer os dedos das mãos daquela maneira. Nem gemer assim. Nunca me foi possivel observar tamanha impotência! Tanta frustração e desilusão por não ter conseguido salvar o bebé. E mesmo já tendo testemunhado outras mortes, creio que esta destruiu a maior parte da força  do médico Fernando.

 

Voluntário por amor ao próximo.

 

Joana,

32 anos, professora de Antropologia  de dia. De noite percorre as ruas de Lisboa numa carrinha de apoio aos sem abrigo. Acompanho-a muitas vezes, a ela e a alguns outros voluntários. Não o faço por amor ao próximo. Lamento. Faço-o porque são proscritos da sociedade. Que se envergonha deles. E porque a Joana é uma das poucas amigas que cabem no meu coração.

A Joana caminha entre alcoólicos e "junkies". Abandonados. Quase todos retendo apenas uma leve centelha de vida. Pouco mais. Entrega Kits com alguma roupa, comida e objectos para higiene intíma.

Há duas semanas, no local habitual daquela mal afamada rua de Lisboa, a D. Genoveva ( Geny, para os conhecidos...) não compareceu. Nesse dia, eu infelizmente não estive presente. Estranhou-se que a senhora, já nos seus 80 e poucos anos, não aparecesse.

Lembro-me bem dela. Grisalha e cega  de uma vista. Sempre a cambalear e com senilidade avançada.

O grupo de voluntários percorreu alguns metros à volta do perímetro habitual, tentando ver  a  D. Geny.

Segundo sei, foi a Joana quem viu o corpo da velhota num pequeno beco, junto a um caixote de lixo. O INEM registou a hora da morte: 00.12. O coração  pura e simplesmente oferecera a liberdade à velha Genoveva. O fim desta merda de mundo.

Depois, conseguimos saber um pouco mais: D. Geny tinha sido abandonada pela filha, com quem vivia, no hospital após uma das suas muitas crises de senilidade. E ainda segundo o que a Joana conseguiu apurar, a filha de D. Genoveva, disse muitas vezes aos vizinhos que queriam ouvir, que "não aguentava mais a ouvir a velha a queixar-se sistemáticamente dos latidos e gemidos do rafeiro que com ela habitava ... Era preferível aturar o cão à velha."

 

 

A Joana não ajuda a socorrer os sem-abrigo há uma semana. Envelheceu seguramente, 10 anos. Não pinta os lábios ou arranja o cabelo. Há uma semana. O marido não sabe o que lhe deu...

 

... Eu sei.

 

Recuso-me sempre a aceitar que haja quem se possa esquecer de prazeres tão pessoais ou tão intensos como a mera faculdade de rir. Tenho no entanto, reparado que as pessoas que conheço que mais riem são as mais solitárias. Seja porque estão sós ou porque aceitam certas noções como algo inato. Não sei justifica-lo. Mas é verdade. Existem pequenos e deliciosos prazeres esquecidos. Lamento que o sejam.

 

Testemunhar um sorriso em fases díficeis da nossa miserável existência é uma luz que cega. E como posso eu pensar de outra forma, quando alguém que se encontra nos confins da mais absoluta tristeza, se digna a sorrir. Tão levemente que me reduziu a escombros. Uma criatura que ao lado da cama de alguém cujo sofrimento físico e mental acompanhou todos os dias, sempre presente e vigilante, viu o médico desligar todas as máquinas que prendiam à terra. Uma a uma. O ventilador. Os batimentos cardiacos.

Não houve dramas ou gritos, perante algo há muito esperado. Apenas um baixar de cabeça tão imensamente primordial e digno que melhor homenagem de partida não se poderia esperar.

E um sorriso. Cansado e soterrado em agonia escondida. Ao mesmo tempo sentido e resignado.

 

A mim? Uma vez mais testemunhei algo que a minha mente não processa. Acho que nestas ocasiãoes nada se processa, a não ser a verdadeira utilidade de rir. Mas destroçou-me mais um pouco. Sim, mas apenas mais um pouco.

O sorriso nestas ocasiões é a maneira mais segura e firme de comprovar a tristeza. Não são as lágrimas ou os gemidos.

 

Um sorriso e uma cabeça baixa. E não vejo maior escuridão e solidão numa criatura.

 

O que nos mata realmente mais depressa são as recordações do que deixamos para trás. No meu desespero para me afastar do padrão, creio que vou perdendo muita coisa. Ainda não cheguei a uma idade física que me possa remeter à velhice, mas sinto-me imensamente velho na minha consciência. É como se um veneno caminhasse comigo. Torna-se díficil aceitar certas coisas. E quando chego a qualquer conclusão, a única resposta que obtenho aparece como uma pergunta - "Porque levaste tanto tempo a concluir isto?" Odeio-me por isso. Que satisfação posso ter? A frustração de pegar nos cacos e voltar ao mesmo.

 

Por intuição, reconheço que a solidão tem duas lâminas. A verdade é que nunca chegamos a ganhar nada. 

Estar só, abre o horizonte. Podemos correr para onde entendermos. Ansiar por cada pedaço do mundo e não ter vergonha disso. Afinal, só nós interessamos. Só nós somos a única preocupação. Porém, também corrói a alma. Muitas vezes, a lágrimas rolam sem ninguém para as secar. A palavra "paixão" dita de forma solitária, nunca me deu a noção de prazer. Apenas um eco de emoção que gostaria de partilhar, não com muitos. Apenas contigo. 

Estar no meio de um grupo nunca foi o que me interessou. Por certo tenho escolha. Posso rir ou ser o palhaço do circo. Mas nunca o faço. A necessidade de solidão é uma droga poderosa. Vicia e aprisiona. Mas estar muito tempo dependente dela deixa aquele véu de absoluta amargura. Fico sempre com a perfeita noção de que de onde me ausento, o tempo passa. As coisas mudam. E depois, não volto atrás. Vou ficando mais só. Sempre mais longe.

 

Tinha tanto para te dizer. Se ao menos conseguisse fazê-lo com penas em vez de punhais ...

 

Primeiro vieram as vozes. E com elas as palavras a que me habituei. Habituei-me a tudo. Até a esta escuridão.

Depois chegou o medo. Da ausência de som. Palavras e música. Do medo de perder a vista nesta escuridão e nunca mais me reencontrar. Ficar longe da luz que me avisava dos atalhos a seguir.

Eis que os dias se transformam em noite, com ela os sonhos de pânico. O desejo de guerra cega. De que será melhor aceitar que tudo passa e assim posso viver. Ilusões ...

 

De longe chegou a escolha, a minha vontade de abraçar a escuridão. De longe nasceu este extâse, prazer e chama imensa. Poder olhar-me assim, em gozo vestido de solene sonhar. E foi tão fácil olhar para o outro lado. Foi tão simples voltar a dançar,  reviver esta arte de empatia que já me esquecera.

 

Um sorriso usado como guarda-chuva? Protecção e porta fechada ao quê? Um absurdo, chamado desejo de iluminação, quando o que sempre desejei foi a falta de luz que ilumina outros. Até porque já deixei de me ver como  porto de salvação. Onde a  alma podia descansar.

 

 

Se me fosse concedido um último e final desejo, se realmente tal fosse possivel, eu não hesitaria. Não me interessa o mundo, nem a paz ou o amor que nele pudesse haver. Não pretenderia questionar deuses. Não pediria a vida eterna.

Um último desejo, realmente realizável, não seria pela felicidade da odiada humanidade. Pouco me importaria a fome ou a desgraça. Não quereria saber  se existe vida para além desta miserável existência.

 

Se me fosse concedido um último e final desejo, desejaria ardentemente olhar para o mais profundo da alma  humana. Ver. Senti-la e cheira-la. Acima de qualquer outra noção, contra qualquer outro desejo ardente, quereria sentir a escuridão humana. Provar, de forma verdadeira e sem dúvidas, o que sempre quis justificar. Não há nada de mais grotesco e feio do que a verdadeira natureza humana.

Imagine-se, o que poderia realmente absorver e aprender com tamanho desejo! Todas as justificações seriam expostas e desmistificadas. Finalmente, terminariam incontáveis séculos de falsidades. Com a alma a nú, poderia aceder ao conceito fundamental na minha miserável existência. O único e genuíno padrão que sempre foi perseguido e nunca atingido. A real noção do Bem e do Mal.

 

Também sei, sinto em cada fibra de mim, que após este desejo realizado, deixaria de ter sentido continuar a viver. Tudo se tornaria pálido perante isto.

 

Rebentaria os miolos, pois seria isto ou a insanidade sem regresso.

Aquela árvore no Inverno,
Dir-se-ia que se curva sobre um lago secreto,
Diz-me, estará Narciso apaixonado
Pelos seus ramos?
Amará ele o seu tronco solene e sinuoso?
Vejo-a através deste vido escuro,
Possivel por que é feito de Inverno,
Mas,
Aproxima-se a Primavera,
Ela treme de receio,
Por isso cobre os ramos brancos,
De verde.



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