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Chega-me esse prazer em doses imensas; às vezes na mais monástica devoção - florestas densas, rios que escorrem de rompante aos primeiros raios de sol, montanhas brancas até ao céu nublado de chumbo cinzento. Gatos. O negro cego do olho esquerdo e com o direito de cor pérola verde. O pardo, recurvo na companhia, gosta do cheiro da minha chávena de café.
Solidão. Sentida como a respirar durante as horas silenciosas e frias do amanhecer antes do tempo. Isso. Isso mesmo. Alguém gosta de lhe chamar meditação. Eu não. É apenas a intoxicação pela distância que extasia o viajante. Não procuro explicar nem compreender esta embriaguez por mais que caminhe e esteja ausente. Este vácuo nunca fica cheio. Apenas cresce e devora.
E ela?
Ela é o meu paradoxo e entropia resgatado na minha existência.
Misteriosamente, ela traz densidade aos meus instintos; estranhamente, abunda em mim a certeza de que sem ela não existe nada - mas é com ela que a mais simples expressão, o gesto mais desnudado ou o sorriso mais suave se veste do meu prazer mais inefável.
(Fleuma)
Rasgar as memórias como se fosse possível apagar do pensamento as sombras dos dias em que a desilusão parece sentada em cima dos nossos ombros, é um acto perfeito de derrota pessoal, um desconhecer dessa criatura que caminha ao nosso lado todos os dias, dissimulada e esquiva, uma parte de nós inseparável. Essa tentativa inútil que insiste em enterrar certas agonias debaixo dos escombros de uma esperança de melhores dias sem este veneno, é o traço fixo, sem tremor dessa besta perfeita, a que caminha connosco, a que se encontra sentada em cima de nós. Não adianta. Eu sei disso todos os dias. Acabei por desenhar o seu caminho e, principalmente, o lugar onde se esconde.
Não volto a tentar rasgar impossíveis e deixei a humilhação da fuga, recuso-me no entanto, a vergar a cabeça ao vazio oscilante que habita esse labirinto, como quem se reconhece nele, por ele passa com um acenar, e aprendeu a sobreviver com o seu veneno espumoso. Mas ficaram as cicatrizes no pensamento e na pele. Marcas de que me orgulho. Estranhamente orgulhoso como se não soubesse que me vai assassinando lentamente.
E afinal, não é exactamente isso que me arrasta para mais um dia?
(Fleuma)
É já quase noite e no despertar de um sono tardio de horas quando a insónia se afastou para um dos cantos escuros do quarto. Quando os sentidos se tornaram claros e lúcidos apareceu uma vontade de reler as palavras de outros - distantes e diferentes.
Mesmo que agora seja uma parede erguida pela tua mão e onde era a tua varanda, ainda que já não existam descrições de passagens nem sequer ecos de passos sobre ideias, reconheço-te as marcas, por vezes taciturnas e, estranho, sem o esquisso da impaciência incrédula perante os dias que correm.
Acontece-me nesses precisos instantes em que pareço regressar da penumbra de um sono pesado e feito de esquecimento, por vezes acendem-se memórias de rostos, de gestos e até de palavras escutadas e lidas, em fragmentos dispersos que eu tento juntar. Uma artimanha minha para segurar a consciência e não voltar a regressar ao abraço da almofada. E mesmo que essas palavras escritas sejam coisa nenhuma para o teu pulso nada lhes apaga aquele breve momento de luz em clarão.
Por isso as retenho em despertar.
(Fleuma)
Raro.
Tão sobriamente raro ...
... como aqueles que não se entregam nas mãos dessa normalidade destes dias, nesse sereno prazer secreto de testemunhar, conseguir "ver", essa armadura de negação a estes dias.
Enquanto cismo nesta ideia, inerte a tudo o que me rodeia, excepto ao clarão das palavras proferidas naquele tom pardo e quase sussurrado, como se mais alto fossem capazes de mutilar, vou bebendo delas embriagado e no respeito de um silêncio por mim próprio imposto. Catártico e sombrio como uma lâmina vai desnivelando a minha ilusão de estabilidade. Ponto por ponto. Racha por racha. Fibra por fibra. Até restarem apenas os filamentos escuros do meu orgulho. Esse animal falsamente aplacado. Essa besta agachada e em chacota que simula na perfeição a domesticação dos seus instintos.
( Fleuma )
Gosto dos que não se arrependem com uma frequência pegajosa e de hábito religioso. Talvez porque o verdadeiro arrependimento tenha um sabor inexplicável, complexo, demasiadas vezes provocando uma espécie de dormência que nos deixa doentes e indefesos. Há um desnudar neste admitir massivamente violento para o orgulho, um sabor muitas vezes amargo de derrota, que nos perfura e reduz a um estado primário de submissão demasiado dolorosa. Por isso o verdadeiro arrependimento é raro, tão solitário como penoso e violento. Por isso sou incapaz de acreditar em pedidos de perdão demasiado constantes, sempre nas primeiras palavras, e sempre, sempre após um erro cometido. Porque não é possível suportar o peso de algo tão visceral com essa frequência. E como tudo o que é raro e precioso, cada pensamento de arrependimento sentido arranca um pedaço de nós que não regressa - fica perdido. Mas quando acontece tem também aquele doce sabor de uma revelação única, um espasmo de conhecimento mudo em estado bruto, talvez até aquele reconhecer de que não se trata de um vergar humilhante, antes um sarar de mutilado.
Por isto não é possível a insistência pegajosa e religiosamente reservada num verdadeiro arrependido, que tem tanto de doce como de amargo.
(Fleuma)
O sossego destes últimos dias cria um espaço de descrença em mim.
Se calhar é uma quimera minha procurar esta calma quando tudo parece girar numa entropia que consentimos, mas gosto disto, como acho virtuosos os dias em que durmo e não sonho. Um estado oculto raro e quase desconhecido. Quase.
Este silêncio neutro, a calma que respiro, quebra a dormência da minha insónia e consegue carregar o meu adormecer com um peso que me assombra. Assusta-me não estar debaixo dessa permanência alerta. É um território quase desconhecido essa magia dos olhos que pesam de cansaço, esse extasiar de quem lentamente deixa cerrar as pálpebras para se desvanecer numa espécie de morte aceite. Nada se torna realmente mais glorificante do que essa calma espessa, esse silêncio sepulcral, que antecede a confirmação dessa certeza, de que o sono pesado e inconsciente chegou.
E que é fútil qualquer esforço de resistência.
(Fleuma)
Uma forma estrita de inferno e paraíso pessoal subsiste na memória e na incapacidade de esquecimento. Na persistência do pensamento que nunca nos abandona, um porto de abrigo que consola os dias nas recordações ou um tormento existencial corrosivo e venenoso. Este paraíso tem outros nomes, todos eles em luzes abundantes e longe de ruas escuras e desertas. Esse inferno que memoriza e não esquece é um antro de demónios todos eles com um nome próprio - rancor, ódio, imbecilidade, tacanhice ... numa lista infindável. Mas também tem outros nomes divinos que habitam labirintos de tempestade mas onde vagueiam outras auroras - coragem, comunhão de sombras, conhecimento, reconciliação ... uma imensa legião!
Alguns escolhem descrever em si mesmos essas memórias e são como um purgatório, habitam escarpas próximas, demasiado próximas do céu; outros insistem no afogamento das recordações num ajoelhar intimo de devoção a um inferno muito pessoal. Tudo isto rebate em algo que escutei há muitos anos, "somos forjados pela dor, existimos por ela e para ela, nada se lhe compara!". E creio que é a mais pura verdade. Na nossa capacidade em recriar o nosso próprio sistema de punição pessoal. Na nossa capacidade de exercitar repetições que apenas provocam o renascer dos mesmos efeitos - a própria definição de loucura.
(Fleuma)
Consigo encontrar o mais ínfimo detalhe de uma partícula do Universo naquela primeira chávena de café quente nas auroras geladas quando o sol brilha frágil e submisso. Nos silêncios mais espessos e na falta de palavras, as expressões mais violentas do meu amor mais intenso, a mais crua desfiguração dos meus instintos mais íntimos, a minha maior obsessão por tudo o que cresce dessas manhãs prematuras. O primeiro pedaço de pão escuro toscamente partido pela mão, o intenso crispar do meu sabor no primeiro pedaço de queijo forte e de cheiro ancestral, enquanto vai estalando o fogo que aquece a casa. O bolo em cima da mesa, mesmo agora acabado de sair do forno, a escaldar entre o chocolate negro, as amoras silvestres e a canela mais pura que alguma vez senti! É como uma justificação para conseguir respirar outro dia, entre aquele ligeiro estremecer de antecipação premeditado e o doce silenciar da alma neste amanhecer.
Mergulho profundamente nos movimentos sinuosos do corpo que gravita junto a mim, perdido nessa beleza surreal, tacteando cego, enquanto vai percorrendo a sombra e a luz, leve e felina, cheirando a desejo - a minha própria bestialidade. Morreria neste preciso instante sem mágoa enquanto escuto a sua respiração suave, ruminando na impossibilidade dos seus olhos celestes, do sorriso lascivo e de promessa, da melodia das palavras de um dialecto que sibila, na preciosidade da companhia como amantes.
Silencio a minha alma atrás da enorme janela de vidro, descansando os olhos matinais nas árvores da floresta gelada à minha frente. Sei deste privilégio. Sei da virtude de uma solidão partilhada no caminho da floresta; a extravagância de percorrer esta ausência de ruídos que talvez seja um novo estado de quase loucura em mim.
Sou um mestre na arte de habitar nos pormenores. Creio que esta é uma virtude de alguns animais. Mas não a aprendi sozinho.
Não.
(Fleuma)
Por vezes, no regresso a este local, sinto uma estranha emoção, muito interna, muito presente. Neste ponto onde tento respirar outra atmosfera, respiro saudades de ti. Creio que é de egoísmo que escrevo estas palavras, de ingratidão porque me afasto para demasiado longe com demasiada frequência, mas pouco me interessam essas falhas. Certos vazios nunca são realmente preenchidos mesmo que consideremos ser um direito criar o vácuo. A saudade não deixa de estar presente ainda que breve, mas é terrivelmente intensa como aquele instante de quem entra em casa e tudo está vazio e silencioso, um caminho que abre as portas e anda pelos corredores sem uma presença, sem um som além dos seus próprios passos. Este torpor que sujeita os sentidos fascina-me mas embrutece o pensamento porque algo está ausente, perdido entre uma certa nostalgia do que não irá regressar. Sabes que eu acho a saudade e a nostalgia em facas de fios afiados que rasgam e mutilam sem piedade. Sabes que sim. E assim deve ser para sentir o verdadeiro sabor do valor de quem, em momentos únicos, partilhou as minhas palavras e me chamou amigo. Algo primário e visceral como se nesses precisos momentos, a viagem não fosse solitária, pelo menos neste local.
Para mim é o acenar a uma vontade de não esquecer o que não é fácil de encontrar.
O assentir à preciosidade de uma porta aberta.
(Fleuma)
A saída pelas portas deslizantes deixa atrás de nós os corredores brancos e o ruído dos passos de gente - demasiada gente...
O meu nariz saturado pelos odores. E a pacificação de mais um diagnóstico tranquilo que ainda assim, sistematicamente, agitam as minhas noites e os meus caminhos enquanto a acompanho. Porque nada mais posso fazer - apenas acompanhar e aceitar a memorização destes passos entre as paredes imaculadamente brancas e o assobiar do calçado no chão esterilizado, que eu sumamente abomino e vou sempre odiar, porque nunca deixará expiar as recordações de um passado onde a morte pareceu sentar-se junto à sua cabeceira, pacientemente. Uma velha Senhora. Uma sábia artesã de incertezas e derrotas sem regressos.
Devia antes rejubilar pelas suas vitórias, quando na sua face já se traçavam os esquissos de um fim prematuro. Antes dobrar um joelho para o chão e baixar a cabeça em absoluto sinal de reverência, porque afinal, isso é o que deve ser feito diante dos que verdadeiramente combateram, perante o brilho cego da sua armadura veterana de mil noites de tormenta, mas vencedora.
Tudo isso eu faço. Esse reconhecimento existe em mim. Esse reconhecimento e assombro por essa criatura que venceu, Ela e apenas Ela, uma escuridão onde eu já me havia perdido. Tudo isso eu assumo. A minha fraqueza de espírito e descrença, vergaram os meus pensamentos a uma rendição vergonhosa e subtilmente cruel porque não aceito essa derrota. Nada é mais venenoso em mim do que o pensamento que aceita e pacifica a minha derrota como um "gesto causado por uma exaustão absoluta"! Recuso negar a mim próprio este flagelar porque recuso esquecer-me. Eu nunca me esqueço! Eu nunca me esquecerei.
Permito, mesmo assim, o consolo de um privilégio raro, a virtude do olhar que insisto sempre que seja muito breve, por um receio visceral do que passou afinal ainda esteja presente, tudo não seja mais do que um sonho. Mas preciso deste olhar para um descanso breve. Necessito de testemunhar a sua transmutação de um calvário frio e escuro, das noites agarrado à sua mão pálida, a sussurrar a sua melodia preferida, mal conseguindo ver uma luz nos olhos verdes. Sei perfeitamente o sabor do desespero mais surdo! Sei qual é o seu gosto - sabe a desesperança e reduz tudo o que nos rodeia a meros flocos de pó - é cozinhado em labirintos que não deviam existir. Mas estão vivos.
Necessito de ver como se tornou bela com o passar do tempo num portento criado pela conjugação perfeita. O cintilar dos olhos verdes, vivos e sagazes, a força de um corpo forjado na guerra, o assombro de uma alma cuja essência só consigo explicar por pensamento, a palavra nunca lhe fará a justiça! A minha indiferença perante o que me rodeia quando a acompanho combate o pensamento que não me deixa esquecer um momento de derrota. E o sabor de uma bola de chocolate negro gelado banhado em café morno, esse repetir do primeiro instante de libertação, de vitória, esse ritual que jurámos ser eterno, é o momento mais magistral da minha miserável existência! Este e apenas este instante justifica a minha sanidade.
( Esta necessidade de expurgar.
Este veneno digerido pela força.)
(Fleuma)