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Primeiro vieram as vozes. E com elas as palavras a que me habituei. Habituei-me a tudo. Até a esta escuridão.
Depois chegou o medo. Da ausência de som. Palavras e música. Do medo de perder a vista nesta escuridão e nunca mais me reencontrar. Ficar longe da luz que me avisava dos atalhos a seguir.
Eis que os dias se transformam em noite, com ela os sonhos de pânico. O desejo de guerra cega. De que será melhor aceitar que tudo passa e assim posso viver. Ilusões ...
De longe chegou a escolha, a minha vontade de abraçar a escuridão. De longe nasceu este extâse, prazer e chama imensa. Poder olhar-me assim, em gozo vestido de solene sonhar. E foi tão fácil olhar para o outro lado. Foi tão simples voltar a dançar, reviver esta arte de empatia que já me esquecera.
Um sorriso usado como guarda-chuva? Protecção e porta fechada ao quê? Um absurdo, chamado desejo de iluminação, quando o que sempre desejei foi a falta de luz que ilumina outros. Até porque já deixei de me ver como porto de salvação. Onde a alma podia descansar.
Pensamentos ao acaso ...
Melancolia, acho-a contagiosa. Terrivelmente destrutiva. Talvez porque conviva com ela todos os dias. Agrava-se a cada dia que passa, torna-se numa amante grotesca, sem beleza ou fundamento que não seja gerar mais e mais tristeza. Não quero ser melancólico. Sei que é o estado mais próximo de uma certa auto-destruição, de uma aproximação a estados de alma - confirmações do que já sei.
Gargalhadas, sou um parasita desta emoção. Gargalhadas. Não encontro outra forma de exprimir a minha admiração por quem consegue dar uma risada destas. Desde que seja realmente genuína. Fala-se tanto no beijo, tanto no abraço... creio que é um engano. Mas sei que sou um frustrado, porque tantas vezes é a tua gargalhada que me satisfaz. Seria diferente se preferisse um beijo? Ou um abraço afável? No entanto a minha esperança num planeta como este, afogado em imundíce, não se serve em braços ou lábios. Antes na gargalhada daquela criança, onde a corrupção ainda não beijou e abraçou.
Superficial, deixa que o seja. Estou cansado de quem se julga profundo e sábio. É mais dificil ser simplesmente diferente.
É muito complicado explicar porque cometo erros. É ainda mais duro justificar comportamentos. Apenas porque não o desejo! Não quero fazê-lo. Deixo a profundidade do ser e o pensamento altruísta a quem o merece. Eu apenas quero esta superficialidade. Não ter de ajeitar a minha inútil existência a uma exigência maior do que a ter de inspirar e expirar. Todos os dias.
Um ruído abafado despertou-o. Acordou-o da pesada sonolência dos embriagados.
Primeiro demorou a reagir. Agitou a cabeça de um lado para o outro. Ali, prostrado de bruços sobre uma cama desfeita, o homem virou a cara para a porta aberta do quarto em escuridão. Um novo som, agora mais pesado, fê-lo saltar da cama. Ainda tonto, mal curado da bebedeira, caminhou para a saída do quarto. Enquanto caminhava para a divisão da casa, mesmo em frente ao quarto e de onde ouvira o som, matutava porque razão deixara a luz acesa. E já agora, porque não comera a carne assada? Sim, a luz da cozinha ficara acesa mas não a baloiçar de um lado para o outro!
( Bêbado ...), já nem para apagar as luzes servia.
Quando chegou ao ombral da porta da cozinha parou. De súbito gelou e com ele gelaram os seus passos ainda hesitantes. Os olhos semi-adormecidos do homem cresceram. A sua boca que parecia permanentemente saber a cortiça, tornou-se num círculo negro imenso. Como que por estranhas artes mágicas, todo e qualquer vapor de bebedeira que subsistira desvaneceu-se. O mundo, o que sempre e sistemáticamente rodeava a sua vida, deixara de ser cinzento. Tornava-se agora, penosamente brilhante.
Dentro da cozinha, divisão assaz minúscula, algo se alimentava. Conseguia ver, do lado esquerdo da sua visão, que também deixara a porta dos fundos aberta. Algo entrara dentro da cozinha, por essa porta . E saltara para cima da mesa que estava no centro . E batera no candeeiro preso ao teto. Por isso a luz oscilava de um lado para o outro. Como a corda de um enforcado.
A urina escorreu pelas pernas do homem. Quente e em torrente. Não consegiu reter um gemido de horror. Em cima da mesa, imenso como o terror do homem, estava uma criatura bizarramente semelhante a um cão. O pêlo desgrenhado misturava o castanho da terra lamacenta com o negro da sujidade de muitas semanas sem água. Curvado para a frente, com as quatro patas assentes na mesa que rangia com o seu peso, o cão dilacerava a carne que o homem ali deixava. As suas mandínbulas devoravam e soavam assassinas. A respiração era ofegante e frenética.
Parou.
Ergueu a cabeça que ao homem pareceu gigantesca. Fê-lo lentamente. As orelhas da criatura esticaram-se para trás do crâneo rochoso. O homem deu um passo para trás. A saliva que inundava o focinho do animal era espessa e abundante, misturando-se em tons esverdeados. Arreganhou os lábios e o homem pressentiu a morte. Ali. Naquelas mandínbulas de dentes afiados e tão promíssores de uma morte de agonia! Naqueles milésimos de segundo o enorme cão pareceu sorrir, enquanto a luz continuava a balançar. Mas foi nos seus olhos, que se fecharam até se tornarem um mero risco negro e no latido, que de início fora um aviso do interior conturbado do animal e por fim se tornara num rosnado inumano, que o homem acordou. Como que saíndo de um pesadelo virou-se e saiu da cozinha, fechando a porta. Enquanto corria para o quarto ( de onde nunca deveria ter saido!), ouviu a peso do animal a entrar em contacto com o soalho da cozinha. Esmagador. Um novo rosnar, primitivo e da aurora do tempo ecoou, enquanto a porta da cozinha estremecia.
O homem, louco por sobreviver, entrou no quarto e fechou a porta atrás de si, rodando a chave. Saltou para cima da cama e ali ficou em posição fetal. Olhos postos da porta. Nem sequer pensando em saltar pela janela para a rua.
A porta da cozinha partiu-se em mil estilhas. As patadas do cão percorreram a distância até à porta do quarto. A luz que passava por baixo mesma porta desapareceu. Uma sombra enorme tapou-a. Um som de inferno fez-se ouvir pela abertura da porta. Um cheirar raivoso. Logo seguido por um bater de dentes e um ronco.
O homem cerrou os olhos. Assim permaneceu toda a noite. Escutando aqueles sons do outro lado da porta. E a criatura não arrombou a porta. Apenas ali ficou, como se tirasse um prazer racional matando todos os vestígios de sanidade do outro.
Até que o homem deixou de ouvir o cão. A manhã chegara, o sol enchia o quarto. Trémulo e hesitante, levantou-se da cama.
Abriu a porta. No chão, uma baba imunda ainda era prova de que este não sonhara.
Chorou, finalmente. Caminhando por cima do estranho líquido viscoso e pedaços de pêlo da criatura, chegou à casa-de-banho. Olhou-se ao espelho, não se espantando.
Por ver que o seu cabelo se tornara branco. Da côr do gelo.
Já reparei que não me olhas directamente. Olhos nos olhos. Cara-a-cara. Isso diverte-me muito. És como uma folha em branco, onde tudo o que escreves é prevísivel. Nada do que pensas antecipadamente é surpreendente.
E eu? Não passo de um miserável mensageiro de morte sentimental. Caminhando decidido a trazer-te novas de morte. Por isso me evitas, contorcendo-te entre amigos que te suportam a existência.
Não gostas de ver a côr do sangue, já o afirmaste muitas vezes. Assim, porque insisto em falar-te dele? Porque raio persisto em desnudar a alma a troco de sangue? Óbviamente não sabes. Nunca sabes merda! Apenas sabes que me aproximo e nunca com boas intenções. Sei. A verdade dói. Sangra.
Sinceramente?
Estou cansado! Estou farto de tanto ouvir falar em tolerância e compreenção!
Estou fatigado da mesma e sistemática ladaínha: aceito as diferenças. Cada um é como escolhe ser.
Mentira! Por cada vez que alguém profere estas palavras, depressa encontro muitas outras que as negam. Nada é levemente aceite. Nenhuma diferença é realmente aceite. Há sempre a mesma imunda moralidade. Sim, a tal que licita suspiros de negação. A tal ... que dita regras e boas maneiras a tudo e todos.
É onde se colocam regras e limites ás acções dos semelhantes. E nada se torna mais asqueroso do que esta santa mania de julgar os outros não querendo sofrer julgamento. Nada se assemelha mais a uma profana hipocrisia do que a traição de pensar pelos outros.
Sabem?
Eu falo por mim! Eu e apenas eu.
Pessoalmente, eu não quero saber de realmente nada! Estou-me nas reais tintas para o que acham de mim. Por isso, borrifo-me para o que fazem os outros. Não me importa com quem fazem sexo e muito menos porque o fazem.
Os caminhos que percorro para o prazer são meus. Sigo-os por minha opção. Assim, porque me importam os desígnios de quem não conheço e escolheu outro caminho? Exacto! Nada!
Concordo que se procure satisfação, além de mera arte da procriação. Quem não o faz é idiota. E quando se pressentem santos e sem mácula? Dou graças por esta minha falta de juízo.
Não me pertence a triste e pesada tarefa de tentar julgar quem não me julga. Não sou infeliz ao ponto de achar que haja quem se importa com a minha vida. Com a excepção de uma pessoa, claro. Que essa pessoa se tornou perita nas artes físicas e mentais do prazer e por isso deixei de me importar com quem me rodeia. Apenas isso. E já é muito.
Não quero realmente saber, já o disse. Também já o afirmei, mesmo o que é supostamente obsceno para uns, é uma obra de arte para outros. Vejo é imensas criaturas de alma destoada, que se pelam pela sua maneira de pensar e julgar. Quando deveriam era seguir com as suas vidas. Que interessam as preferêrencias alheias? Onde está a virtude de julgar os outros quando a nossa vida é um terreno ermo e estéril, onde só existem calhaus de idiotice vazia e preconceituosa?
Eu?
Não quero limitar-me ao que os outros querem. Borrifo-me para a vida alheia. Sou meramente humano. O meu corpo é usado por mim. Como quero e anseio. A minha mente não está mais lúcida apenas por minha culpa. Aceito-o. Mas ainda não sou tão imbecil ao ponto de julgar por aparências ou desejos.
É minha lamentável falta existir num plano de realidade promíscuo e em desarmonia. Uma coisa leva a outra, como sempre. As vozes da minha alma nunca são realmente coerentes. Por vezes ( muitas ...) tudo o que faço é caminhar pela casa interior, admirando o pó e a mais completa falta de combinação. Para quem está lá fora, aparentemente pareço levemente pedrado. Numa outra dimensão. Incapazes de notar como as observo e lamento.
Tempos houve em que achava ser melhor para mim e para a minha própria sanidade, partilhar as minhas ideias com muitos outros. Aprendi a fechar a boca. Também me tornei mais modesto em relação aos amigos. Tanto que os meus amigos cabem num punho fechado. Tanto que o conceito de verdadeira amizade se compara ao próprio gesto de respirar. É preciso, precioso e absolutamente essêncial!
Esses são os vagueiam pela minha casa em pantanas. E encontram-me sempre. Esteja onde eu estiver. Os outros? Perdem-se em jogos e falsas ideias.
Não gosto da falta de harmonia para com os outros. A sério que faço muita força para que não aconteça. No entanto, apenas harmonizo com animais muito raros e dispersos. Acho que é por causa do sorriso e dos gestos das mãos. Uns hipnotizam e dão calor. Outros, a maioria, apenas tresandam a sobranceria e ignorância.
Pensamentos ao acaso ...
Juízo, é verdade, já o percebi, eu não tenho muito juízo. Custa-me tanto admitir isto como me custa despir a roupa e ficar nú. A vergonha só existe nos primeiros momentos, nas primeiras horas. Ou nas primeiras ofensas. De resto é fácil. Chega a ser incrivelmente banal admiti-lo. E ficar a ver como reagem as pessoas ao meu redor.
Já me cansei de tentar combater este mau juízo. Creio que ( aqui existe alguma fatal demência genética, sim!) espero apenas o que não deveria. Por certo, ser ajuizado será tolerar e aceitar o que tanto se apregoa como racional. Deveria rodear-me, desde já, de muita gente. Vestir-me a rigor e passer junto do rio. Cantar-te amores e paixões frustradas. Sim, deveria. Mas não o faço, já que a minha falta de juízo dá-me apenas para desejar beijar quem chora. Mesmo quem chora por não se arrepender. Verte lágrimas de raiva e fúria. Quem acabou de magoar alguém.
A minha falta de noção, juízo maligno, leva-me a amparar quem está doente. Doente por falta de juízo, digo. No fundo, no fundo, os que são a minha imagem. Os que sabem o que é ter juízo e recusam-se a aceita-lo.
Sala branca, nada me deixa mais consciente da minha própria fragilidade mental do que os teus gritos dentro da sala. Nada me agonia mais do que o teu olhar vago, para além das janelas turvas. Quando o sol se apaga e chega a chuva.
Não posso lidar com essa tua insensata loucura. Ver como escreves e esmagas o lápis novo. Quando a tua voz rouca se dispersa e rasgas o papel em branco. Onde supostamente escrevias algo. Noutros tempos, em outros locais. E voltas as abrir a pasta de cabedal, maquinalmente abrindo o fecho. Conheço o cheiro dessa mala, nunca me abandonará. Mais uma folha em cima das tuas pernas. Outro lápis, que podes usar sempre que queiras. Sabe-se que te esqueceste como podes terminar a tua vida com ele. De facto, já te esqueceste de muito. Mas não de mim. Ainda me olhas nos olhos. São iguais, os meus e os teus olhos. Verdes azeitona, como gostavas de me afirmar tocando-me na ponta do nariz.
Quando perguntas porque razão é que a sala é branca, dizem-te à minha frente que é porque o branco é tranquilo e calmo. Por trás de quem te responde, eu olho-te e tu sabes a minha resposta. É branca porque branco é o desespero. A falta de luz. A luz que precisas. E sei, que forças um sorriso, mas odeias o branco. Como eu.
Riso, conheço um homem que é palhaço de circo. Tirando os momentos em que actua naquele círculo rodeado de miúdos e familiares, realmente habilidoso em causar gargalhadas, nunca o vi rir.
Conheço-o há muito tempo e só quando pinta o rosto para o circo, é que força um sorriso. E mesmo nessa fase, eu, eterno cínico, nunca olho para a boca vermelha que se rasga num sorrir forçado. Não noto os gestos espalhafatosos de palhaço. Cerro o meus olhos em esforço e fixo os seus. Sim, os olhos são de facto o espelho da alma. Os dele pura e simplesmente não riem. Apenas revelam o cinzento das suas recordações.
Quando me encontro com ele para um café ( e quase tenho que o ameaçar fisicamente para sair e ir beber algo ) ele diz-me apenas uma palavra: obrigado. Permanece calado enquanto eu falo e falo. Sei que me escuta, mas nunca sorri. Acena apenas com a cabeça. Um turbilhão de emoções esgravata aquele senhor palhaço. Sei porque não sorri, concedeu-me o direito a que o sobessse, mas isso não me deixa mais sábio sobre nada. Apenas mais desiludido e espantado. Não imaginava ser possivel alguém conseguir apagar o sorriso de outro desta maneira.
Se me fosse concedido um último e final desejo, se realmente tal fosse possivel, eu não hesitaria. Não me interessa o mundo, nem a paz ou o amor que nele pudesse haver. Não pretenderia questionar deuses. Não pediria a vida eterna.
Um último desejo, realmente realizável, não seria pela felicidade da odiada humanidade. Pouco me importaria a fome ou a desgraça. Não quereria saber se existe vida para além desta miserável existência.
Se me fosse concedido um último e final desejo, desejaria ardentemente olhar para o mais profundo da alma humana. Ver. Senti-la e cheira-la. Acima de qualquer outra noção, contra qualquer outro desejo ardente, quereria sentir a escuridão humana. Provar, de forma verdadeira e sem dúvidas, o que sempre quis justificar. Não há nada de mais grotesco e feio do que a verdadeira natureza humana.
Imagine-se, o que poderia realmente absorver e aprender com tamanho desejo! Todas as justificações seriam expostas e desmistificadas. Finalmente, terminariam incontáveis séculos de falsidades. Com a alma a nú, poderia aceder ao conceito fundamental na minha miserável existência. O único e genuíno padrão que sempre foi perseguido e nunca atingido. A real noção do Bem e do Mal.
Também sei, sinto em cada fibra de mim, que após este desejo realizado, deixaria de ter sentido continuar a viver. Tudo se tornaria pálido perante isto.
Rebentaria os miolos, pois seria isto ou a insanidade sem regresso.