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Por alguma razão, eu não sou a pessoa que antes acreditava ser. Detecto lentas alterações, subtis mudanças de corrente em tudo o que me rodeia. Mais importante, alterações em mim. Mas pior é a noção de que essa monção de mudança sempre existiu, nunca foi perfeitamente vísivel, em muitas ocasiões foi apenas um brilho distante, mas esteve sempre presente. Agora sei que se torna mais acentuada e vísivel na escuridão. Não consigo entender como e porquê, mas sei que sim.

 

Creio que estou doente. Obcecado. Apaixonado. Quieto ou irrequieto. Não importa. O que eu realmente não quero é despertar ou ser despertado desta dormência, inatividade ou sono solto. Por muita dôr que possa causar, permite que abra os meus olhos para outros caminhos a percorrer.

Eu mato as horas. Não de forma casual ou sem pensar no assunto. Assassino os minutos de forma cínicamente premeditada. Esta violência nasce de uma mistura obssessiva de desistência, não querer saber e a resignação que tudo o que importa é poder ultrapassar mais um dia. Portanto e em esperança, eu mato as horas. Eu não trabalho, eu não leio e eu não sonho durante os dias. Se eu durmo é apenas para passar o tempo.

Quando assassino as horas eu não deixo quaisquer vestígios ou provas incriminatórias, não existe uma arma, um pingo de sangue e um corpo que necessite cremação. A única evidência pode vir a ser a sombra por baixo dos meus olhos ou aquela fina e terrivel linha à volta dos meus lábios que pode indicar sofrimento, que na privacidade eu possa ter perdido algo. E que nessa perda existe demasiado vazio para poder ser partilhado.

 




"I could hear your voice. Sometimes your voice would wake me up. It would wake me up in the middle of the night, just like you were in the room with me. Then... it slowly faded. I couldn't picture you anymore. I tried to talk out loud to you like I used to, but there was nothing there. I couldn't hear you. Then... I just gave it up. Everything stopped. You just... disappeared. And now I'm working here. I hear your voice all the time. Every man has your voice."

Se existe necessidade de libertação, se é tão forte como deveria ser, então é necessário dispersar a palavra de deus. Não existe apenas um Jesus Cristo. Existe um João carregado de erva para voar, um Miguel mendigo que todas as noites sonha a céu aberto e que já deixou de temer a escuridão e a companhia dos ratos.

Eu sei porque deixei de procurar por deus: porque nunca o consigo encontrar no ferreiro, no mágico, no ventríloquo, no condutor de autocarro, no médico e muito menos no domador de leões.

Sou mais parecido com um cão vagabundo que nunca vai quando é chamado, nunca salta para o colo e nunca rebola por comida. Nunca faço nada do que mandam.

 

Aparentemente abri a alma a outras noites.

Eu percebo um pouco acerca da perda de dignidade. Sei o suficiente para perceber que quando se vai a dignidade fica um buraco mergulhado em profunda escuridão, desespero e humilhação. Que nesta falta de dignidade floresce ódio cego, vazio, isolamento e inferno. Sei um pouco disso.

É um poço fundo de um vazio filho da puta, onde as pessoas tanto gostam de viver as suas lamentáveis existências, completamente fodidas e contentes por essa falta de dignidade que lhes dá algo desumano. E é aí que morrem sózinhas, miseráveis, desperdiçadas e pior ... esquecidas.

Eis uma lista de coisas terriveis,

 

a voz de quem partiu e se tornou uma recordação que nunca deixa de arder e afogar a nossa respiração.

o olhar do espelho que cruelmente não retrata os anos reais da nossa existência, mas todo o seu desdem pela velhice das tentativas de sanidade.

a voz raivosa que avisa sobre os dias contados e que nada conseguimos atingir, mesmo que pensemos o contrário.

os dentes dos falsos amores e as asas de promessas nunca cumpridas, são a morte.

a certeza de que nada parece realmente começar, que afinal nunca existiu aquele primeiro momento que pensei ser eu o único, aquela pequena palavra que abre a masmorra.

 

Eu acredito que estamos todos sentados em cima das nossas sepulturas, a olhar para a noite de céu estrelado. Longe.

Todos morremos incontáveis vezes, pequenas mortes que se vão amontoando até à última, a inevitável. Morremos de vergonha e humilhação. Morremos de desejo e de raiva e ódio. Morremos pelo desespero e claro, morremos por amor e paixão.

É tão díficil deixar de fazer o que sempre fiz. Torna-se tão dura a tarefa de aceitar este pensamento. Mas não estou desiludido. Porque me foi segredado que também somos serpentes e também temos necessidade de trocar de pele. Precisamos de destruir a casca e vestir um novo agasalho da dimensão do frio que nos faz ranger os dentes. E eu tenho frio. E eu deixei de me sentir preenchido com os dias que passam.

 

Já tenho recebido algumas palavras preocupadas com esta minha "obssessão pela escuridão": como se fosse algo maligno e pálpavel. Pois, acredite-se ou não, queiram ou não, sempre foi parte de mim. Sempre será parte de toda a gente. E porque deveria rejeitar algo que sei ter nascido comigo? Sei o que tive de caminhar para chegar a este conhecimento. Sei o que tive de destroçar e transformar tudo em cacos. É necessário tudo isto? Tanta raiva e ódio para absorver o que sou? Não basta trocar de pele? Será preciso reaprender a andar de novo?






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