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... Todos os dias a batalha é a mesma. Luto incessantemente para limitar os compromissos que me prendem ao que me rodeia. Assim disponho de mais tempo para ansiar a partida para outros braços. Não conviver com muita gente ajuda a manter-me no caminho certo. E depois, eu nunca fui realmente uma criatura de muitas companhias. Nem sequer compreendo essa possibilidade ou satisfação. Para mim é possível afastar a depressão dos dias que passam, escondendo-me no sono. Magoando-me nos sonhos. Acordo mais velho. Mais esfarrapado. Apenas isso ...
E quando termina a tempestade, quase sempre ( e infelizmente...) não existe a noção, a verdadeira percepção da forma como foi ultrapassada. Por vezes, ainda mais dolorosa, é a falta de conhecimento da forma como foi possível sobreviver a essa tempestade. E a meio da noite, enquanto o corpo se revira na cama desfeita, em plena solidão, nem sequer é possível saber se o dilúvio passou, de facto. Por mais apoio que exista, entre abraços ou beijos sempre pródigos em esperança, a lâmina da verdade está ali, bem junto à garganta: seja como for, nunca será a mesma coisa. Não é possível, após a torrente, ser a mesma pessoa. Quem entra na tempestade nunca sai igual. Nunca.
Por alguma razão que ainda desconheço tenho mais facilidade em lidar com as sombras. Talvez como aquela minha fixação com os lápis de cor preta. Mesmo que em seu redor existam muitas outras cores, eu tenho a tendência natural para procurar o lápis negro. E são estranhas, as pessoas vistas entre sombras. Naquela meia-luz onde pensam (tranquilamente, imaginam) que não é possível serem vistas em pormenor. Por vezes, são categoricamente feias. Disformes porque não se sentem bem consigo próprias. Onde a aparência se desvanece a revelação é dolorosamente cruel. Na sombra, desnudam-se e nada consegue alterar o facto de que dançam descompassadas. Numa canção que não deveria ser a sua. Outras há que apenas nas sombras mais profundamente escuras se revelam de uma beleza atroz e sem comparação. São de uma raridade absurda e tudo, rigorosamente tudo o que emana delas é música que deve ser escutada e dançada. Cegamente. Este dom raramente se revela em plena luz. Flui na escuridão, como os gatos a coberto da noite. Acaba sempre por ser revelador e é na sombra que se consegue ver para além das cicatrizes e das dores.
Existe uma norma para os viajantes como eu. Não está escrita em papel ou em paredes de rua. Quando se viaja o destino poucas vezes é comum ao da grande maioria que se atropela nos aeroportos, nas praias ou nos churrascos de férias. E a companhia deve ser pouca. Escassa ou nenhuma. Para mim, apenas uma pessoa serve. Se assim não fôr, mesmo conhecendo quem me deseje uma boa viagem, prefiro ir só. Até porque sei que vá para onde fôr, encontro quem me acene e muitas vezes me receba de braços abertos.
Uma paixão que eu tenho ( já desde muito, muito cedo ...), que ultrapassa até, em larga escala, o imenso amor que eu tenho por viajar, chama-se mergulho. Há muito que aprendi a nadar. A água nunca me fez confusão e sempre me pareceu um passo lógico e normal, aprender tudo o que se relacionasse com o mergulho de profundidade. Tenho, de uma maneira que muitos classificam esfomeada, mergulhado em muitos sítios. Exige planificação e logística. Paciência e muita poupança financeira. Mas é um facto: vivo para mergulhar e observar. Algumas viagens são para sempre. As vezes que em grupo ( porque só é absolutamente incomportável!) mergulhei no mar vermelho ou consegui nadar lado a lado entre golfinhos, em águas cristalinas ou de penumbra etérea, ficarão na minha alma para sempre. Nada se compara a isso. Nada possui tal silêncio, factor de medo e risco, como nadar entre corais ou nas águas geladas do norte. Porém, o sonho que acalento de forma quase secreta e conspiratória, poderá realizar-se muito em breve. Não consigo, ainda, vislumbrar a possibilidade. É doloroso para o coração, contar as semanas que faltam. Mas têm sido quatro longos anos de trabalho e planos frustrados. Cada mergulho feito noutras águas que não sejam as que desejo, é apenas um medicamento que tira as dores, não cura a doença. Mas recebi a noticia que tudo está finalmente (!) pronto! Vou poder nadar entre tubarões. Mesmo que tenha, por razões de segurança, de estar dentro de uma jaula de ferro maciço. Mas, estar a escassa distância de criaturas com um cumprimento de 8 metros, poder observar em toda a sua plenitude, terá de ser suficiente para um pecador como eu. Talvez até consiga nadar junto a algum deles... quem sabe? Isto não representa felicidade, para mim. Representa o que eu sou. É mais, muito mais do que felicidade. É pura e inalterada liberdade e pacificação pessoal.
Creio que sou um dos poucos seres humanos que ostenta em todos os dias de existência o orgulho pleno e arrogante de alguém emocionalmente instável. E sinceramente, não poderia estar mais orgulhoso e nem sequer poderia estar mais desinteressado no que outros possam deduzir disso. Mas, continua a ser uma revelação para mim, algo quase grotescamente cómico, que tanta gente continue a imaginar ser algo realmente espantoso. E obviamente, não são rigorosamente nada. É não ter talento rigorosamente nenhum. Nem sequer escondido num qualquer sótão cerebral. Nada! Na minha instabilidade, consigo ver perfeitamente que não têm um plano B de fuga para superar os azares e a falta de jeito. Não dispõem de habilidades de sobrevivência e vejo, consternado, quando deitam anos de vida para o lixo. Absolutamente nada de proveitoso. Este é um peso colossal de derrota e inutilidade existencial. Cerebralmente, mesmo que se julguem brilhantes, são mais austeramente atrasados dos que os que padecem de doenças para as quais não pediram permissão e que ainda assim todos os dias me demonstram ser possível ultrapassar as sentenças de morte que o nascimento cedo lhes destinou. Mas, se formos friamente racionais, é melhor o destino de certos: uma morte rápida. Porque para uma grande maioria que presume ser espantosa, a doença de que padecem mata de forma mais demorada. É como ter nas mãos a decisão de uma morte rápida e misericordiosa ou lenta e dolorosa.