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A memória exacta do primeiro dia em que comecei a viver sozinho nunca me deixará.

 

Recordo-me de que era já noite cerrada e eu tinha acabado de chegar, após mais um dia a trabalhar e a estudar. Sentado no chão da sala minúscula de um apartamento minúsculo, de costas contra a parede, sabia que provavelmente eu teria a melhor vista da cidade. Conseguia ver o largo da graça e tudo  o que o rodeava. Recordo-me de me perder num estado de cansaço absoluto. Esticar as pernas e ouvir os ossos a estalar. Nem sequer ainda tinha a luz ligada. Aquela escuridão até era bem vinda.

 

Também ainda não tinha mobília e por isso deixei-me ficar contra a parede, com o casaco de penas vestido e o capuz posto, porque aquele era um inverno duro e implacável. Sentia um misto de solidão descompensada e uma euforia que me deixava quase doente. Um silêncio absoluto para pensar e ruminar no que iria ser a minha existência a partir daquele dia, onde ( e eu sabia-o de maneira tão intensamente visceral) não haveria retorno ao passado recente de alguns dias.

 

Adormeci.

Com o queixo enterrado no colarinho do casaco e as mãos nos bolsos. Pela primeira vez em anos, sentindo-me quente e

confortável. Acordei no dia seguinte, num domingo, eram já quase cinco horas da tarde. Dormira muito para além de quinze horas e o céu continuava da cor do chumbo. Caía uma chuva suave.

 

Saí para a rua.

Dentro do meu peito havia uma emoção  de liberdade tão violenta que pensei que o meu coração iria parar. Caminhei horas pelas ruas. À chuva. Absorvendo o que me rodeava e contra todas as previsões, premeditações e agravos, sentindo-me feliz e livre.

 

"The premonition of madness is complicated by the fear of lucidity in madness, the fear of the moments of return and reunion, when the intuition of disaster is so painful that it almost provokes a greater madness.... One would welcome chaos if one were not afraid of lights in it."
EMIL CIORAN

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A primeira impressão nunca é de confiar. Como  pode ser  e acumular um todo apenas no relance de um primeiro olhar? Recordo-me da entrada na sala onde eu estava já sentado há horas. Nem o fumo que pairava nem sequer os sentidos entorpecidos pelo vinho foram capazes de impedir que os meus olhos fixassem a silhueta vestida de negro que passou em frente a mim. Cometi o erro colossal de tentar absorver tudo de uma vez. Como um esfomeado de dias que tenta comer tudo o que o prato contém e sufoca. Genuinamente os meus ombros caíram e os olhos cresceram! E lembro-me do aperto imenso e doloroso que rasgou o meu estômago porque vi o rosto de olhos negros ( uma escuridão que embriaga) e os cabelos longos, sinuosos e tão intensamente escuros que mesmo naquele lugar de falas, risos e ruído ensurdecedor brilhavam!

 

Acordei.

Lembro-me de de pôr os cotovelos em cima dos joelhos dobrados. Inclinei-me para a frente e deixei de escutar há minha volta. Pude ver a pele nórdica branca. Não. Alva. E uns lábios grossos que se rasgaram e mostraram uns dentes grandes e muito brancos! Por fim um sorriso imenso, como se já há muito me conhecesse! No topo de um pescoço esguio e de um corpo coberto por um vestido negro até aos pés.

 

Existem marcas no meu corpo. A maior parte por mim mesmo infligidas. Mentalmente, tenho aprendido alguns truques para suportar punição. Porém, aquele foi um dia de destruição maciça. Não num primeiro olhar. Mas no excedente emocional que muito sinceramente pensei ser impossivel sentir. E existem visões que mesmo para um animal de sentidos como eu podem encher um universo.

 

 

"Eu não gosto de si, já sabe ..."

Repete sempre e no entanto prefere ficar sentado em frente a mim, quando poderia não estar. Poderia, perfeitamente, fazer como os outros e vaguear pelos corredores ou ficar em frente ao ecrã da televisão com o olhar cruzado e distante. Tamborila com os dedos nos braços da cadeira como se a impaciência fosse uma comodidade. Que não tem. Mas tamborila e sistemáticamente. Porém, o que mais atrozmente me fascina nele, para além dos longos cabelos brancos cuidadosamente puxados por trás das orelhas e da roupa impecávelmente limpa, é a forma rápida com que desloca a cara de um lado para o outro o que provoca um estalo, como uma chicotada, nos tendões do pescoço. Até ver isto pensava ser uma coisa de filmes, mas executa os movimentos tão rápidamente que nem sequer sente a dor. De um lado para o outro e por vezes encara-me frente a frente.

 

Olha-me nos olhos quando fala dela. Remexe o corpo na cadeira como se quisesse afastar o nevoeiro que lhe tolda a mente e manter intacta a recordação. E é por estes momentos que parece acalmar-se. A expressão, na maior parte das vezes carregada, alonga-se e fica lisa de rugas de expressão. Neste momento, só a testa se franze e a face assume  a expressão de outrora, noutras luas e passado. Melancolia e inteligência racional afloram. Algo, que por ser tão furtivo, se torna avassalador. Fica imóvel. Sereno.

 

" Mas ela não quer saber de mim! E acho-a uma chata!"

 

Volta a agitar-se e a tamborilar. Regressa a corrente eléctrica ao corpo e as chicotadas no pescoço.

 

" Não é bem assim. Sabe disso, não sabe?"

 

Mas a expressão voltou a estar cinzenta e finge que não me ouve. Cruza e volta a cruzar os pés. Reitera na necessidade de poder sair à noite e olhar para o céu. Que não me quer voltar a ver. E de imediato perguntar se no dia seguinte o verei. Quando demoro na resposta agita-se e resiste ao choro infantil que lhe inunda a face. São olhos de náufrago e mãos desesperadas que esperam.

 

" Sim, claro. Cá estarei."

 

Regressa há agitação eléctrica e ao monólgo. E o pescoço volta a estalar.

Estar ali, a alguns metros dela e, ainda por estes dias, não conseguir encontrar a palavras precisas para lhe dizer o que sinto. A dolorosa falta que me faz e as saudades que me arrancam horas de sono. Nada que um suspiro de confidência não resolvesse. Mas ela sabe desta incapacidade de expressão. Sabe desta batalha perdida. Também sabe que tudo se revela quando o meu grau de desilusão e tristeza chega ao seu ponto máximo que nada lhe consigo esconder e não é preciso falar.

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