Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



A memória exacta do primeiro dia em que comecei a viver sozinho nunca me deixará.

 

Recordo-me de que era já noite cerrada e eu tinha acabado de chegar, após mais um dia a trabalhar e a estudar. Sentado no chão da sala minúscula de um apartamento minúsculo, de costas contra a parede, sabia que provavelmente eu teria a melhor vista da cidade. Conseguia ver o largo da graça e tudo  o que o rodeava. Recordo-me de me perder num estado de cansaço absoluto. Esticar as pernas e ouvir os ossos a estalar. Nem sequer ainda tinha a luz ligada. Aquela escuridão até era bem vinda.

 

Também ainda não tinha mobília e por isso deixei-me ficar contra a parede, com o casaco de penas vestido e o capuz posto, porque aquele era um inverno duro e implacável. Sentia um misto de solidão descompensada e uma euforia que me deixava quase doente. Um silêncio absoluto para pensar e ruminar no que iria ser a minha existência a partir daquele dia, onde ( e eu sabia-o de maneira tão intensamente visceral) não haveria retorno ao passado recente de alguns dias.

 

Adormeci.

Com o queixo enterrado no colarinho do casaco e as mãos nos bolsos. Pela primeira vez em anos, sentindo-me quente e

confortável. Acordei no dia seguinte, num domingo, eram já quase cinco horas da tarde. Dormira muito para além de quinze horas e o céu continuava da cor do chumbo. Caía uma chuva suave.

 

Saí para a rua.

Dentro do meu peito havia uma emoção  de liberdade tão violenta que pensei que o meu coração iria parar. Caminhei horas pelas ruas. À chuva. Absorvendo o que me rodeava e contra todas as previsões, premeditações e agravos, sentindo-me feliz e livre.

 

"The premonition of madness is complicated by the fear of lucidity in madness, the fear of the moments of return and reunion, when the intuition of disaster is so painful that it almost provokes a greater madness.... One would welcome chaos if one were not afraid of lights in it."
EMIL CIORAN

Tags:

A primeira impressão nunca é de confiar. Como  pode ser  e acumular um todo apenas no relance de um primeiro olhar? Recordo-me da entrada na sala onde eu estava já sentado há horas. Nem o fumo que pairava nem sequer os sentidos entorpecidos pelo vinho foram capazes de impedir que os meus olhos fixassem a silhueta vestida de negro que passou em frente a mim. Cometi o erro colossal de tentar absorver tudo de uma vez. Como um esfomeado de dias que tenta comer tudo o que o prato contém e sufoca. Genuinamente os meus ombros caíram e os olhos cresceram! E lembro-me do aperto imenso e doloroso que rasgou o meu estômago porque vi o rosto de olhos negros ( uma escuridão que embriaga) e os cabelos longos, sinuosos e tão intensamente escuros que mesmo naquele lugar de falas, risos e ruído ensurdecedor brilhavam!

 

Acordei.

Lembro-me de de pôr os cotovelos em cima dos joelhos dobrados. Inclinei-me para a frente e deixei de escutar há minha volta. Pude ver a pele nórdica branca. Não. Alva. E uns lábios grossos que se rasgaram e mostraram uns dentes grandes e muito brancos! Por fim um sorriso imenso, como se já há muito me conhecesse! No topo de um pescoço esguio e de um corpo coberto por um vestido negro até aos pés.

 

Existem marcas no meu corpo. A maior parte por mim mesmo infligidas. Mentalmente, tenho aprendido alguns truques para suportar punição. Porém, aquele foi um dia de destruição maciça. Não num primeiro olhar. Mas no excedente emocional que muito sinceramente pensei ser impossivel sentir. E existem visões que mesmo para um animal de sentidos como eu podem encher um universo.

 

 

"Eu não gosto de si, já sabe ..."

Repete sempre e no entanto prefere ficar sentado em frente a mim, quando poderia não estar. Poderia, perfeitamente, fazer como os outros e vaguear pelos corredores ou ficar em frente ao ecrã da televisão com o olhar cruzado e distante. Tamborila com os dedos nos braços da cadeira como se a impaciência fosse uma comodidade. Que não tem. Mas tamborila e sistemáticamente. Porém, o que mais atrozmente me fascina nele, para além dos longos cabelos brancos cuidadosamente puxados por trás das orelhas e da roupa impecávelmente limpa, é a forma rápida com que desloca a cara de um lado para o outro o que provoca um estalo, como uma chicotada, nos tendões do pescoço. Até ver isto pensava ser uma coisa de filmes, mas executa os movimentos tão rápidamente que nem sequer sente a dor. De um lado para o outro e por vezes encara-me frente a frente.

 

Olha-me nos olhos quando fala dela. Remexe o corpo na cadeira como se quisesse afastar o nevoeiro que lhe tolda a mente e manter intacta a recordação. E é por estes momentos que parece acalmar-se. A expressão, na maior parte das vezes carregada, alonga-se e fica lisa de rugas de expressão. Neste momento, só a testa se franze e a face assume  a expressão de outrora, noutras luas e passado. Melancolia e inteligência racional afloram. Algo, que por ser tão furtivo, se torna avassalador. Fica imóvel. Sereno.

 

" Mas ela não quer saber de mim! E acho-a uma chata!"

 

Volta a agitar-se e a tamborilar. Regressa a corrente eléctrica ao corpo e as chicotadas no pescoço.

 

" Não é bem assim. Sabe disso, não sabe?"

 

Mas a expressão voltou a estar cinzenta e finge que não me ouve. Cruza e volta a cruzar os pés. Reitera na necessidade de poder sair à noite e olhar para o céu. Que não me quer voltar a ver. E de imediato perguntar se no dia seguinte o verei. Quando demoro na resposta agita-se e resiste ao choro infantil que lhe inunda a face. São olhos de náufrago e mãos desesperadas que esperam.

 

" Sim, claro. Cá estarei."

 

Regressa há agitação eléctrica e ao monólgo. E o pescoço volta a estalar.

Estar ali, a alguns metros dela e, ainda por estes dias, não conseguir encontrar a palavras precisas para lhe dizer o que sinto. A dolorosa falta que me faz e as saudades que me arrancam horas de sono. Nada que um suspiro de confidência não resolvesse. Mas ela sabe desta incapacidade de expressão. Sabe desta batalha perdida. Também sabe que tudo se revela quando o meu grau de desilusão e tristeza chega ao seu ponto máximo que nada lhe consigo esconder e não é preciso falar.

Tags:




Arquivo

  1. 2024
  2. JAN
  3. FEV
  4. MAR
  5. ABR
  6. MAI
  7. JUN
  8. JUL
  9. AGO
  10. SET
  11. OUT
  12. NOV
  13. DEZ
  14. 2023
  15. JAN
  16. FEV
  17. MAR
  18. ABR
  19. MAI
  20. JUN
  21. JUL
  22. AGO
  23. SET
  24. OUT
  25. NOV
  26. DEZ
  27. 2022
  28. JAN
  29. FEV
  30. MAR
  31. ABR
  32. MAI
  33. JUN
  34. JUL
  35. AGO
  36. SET
  37. OUT
  38. NOV
  39. DEZ
  40. 2021
  41. JAN
  42. FEV
  43. MAR
  44. ABR
  45. MAI
  46. JUN
  47. JUL
  48. AGO
  49. SET
  50. OUT
  51. NOV
  52. DEZ
  53. 2020
  54. JAN
  55. FEV
  56. MAR
  57. ABR
  58. MAI
  59. JUN
  60. JUL
  61. AGO
  62. SET
  63. OUT
  64. NOV
  65. DEZ
  66. 2019
  67. JAN
  68. FEV
  69. MAR
  70. ABR
  71. MAI
  72. JUN
  73. JUL
  74. AGO
  75. SET
  76. OUT
  77. NOV
  78. DEZ
  79. 2018
  80. JAN
  81. FEV
  82. MAR
  83. ABR
  84. MAI
  85. JUN
  86. JUL
  87. AGO
  88. SET
  89. OUT
  90. NOV
  91. DEZ
  92. 2017
  93. JAN
  94. FEV
  95. MAR
  96. ABR
  97. MAI
  98. JUN
  99. JUL
  100. AGO
  101. SET
  102. OUT
  103. NOV
  104. DEZ
  105. 2016
  106. JAN
  107. FEV
  108. MAR
  109. ABR
  110. MAI
  111. JUN
  112. JUL
  113. AGO
  114. SET
  115. OUT
  116. NOV
  117. DEZ
  118. 2015
  119. JAN
  120. FEV
  121. MAR
  122. ABR
  123. MAI
  124. JUN
  125. JUL
  126. AGO
  127. SET
  128. OUT
  129. NOV
  130. DEZ
  131. 2014
  132. JAN
  133. FEV
  134. MAR
  135. ABR
  136. MAI
  137. JUN
  138. JUL
  139. AGO
  140. SET
  141. OUT
  142. NOV
  143. DEZ
  144. 2013
  145. JAN
  146. FEV
  147. MAR
  148. ABR
  149. MAI
  150. JUN
  151. JUL
  152. AGO
  153. SET
  154. OUT
  155. NOV
  156. DEZ
  157. 2012
  158. JAN
  159. FEV
  160. MAR
  161. ABR
  162. MAI
  163. JUN
  164. JUL
  165. AGO
  166. SET
  167. OUT
  168. NOV
  169. DEZ
  170. 2011
  171. JAN
  172. FEV
  173. MAR
  174. ABR
  175. MAI
  176. JUN
  177. JUL
  178. AGO
  179. SET
  180. OUT
  181. NOV
  182. DEZ


topo | Blogs

Layout - Gaffe