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Uma condição de todos os dias. Um pequeno pormenor que rasga e paralisa. Minha querida, poderia jurar que já não é possível crer em nada, por estes dias. E por este mundo. Os dias que vivo e os livros que estudo levam para caminhos como este. Agrestes e de inverno. Cada vez se faz mais real e presente que a paixão não é do reino da poesia eufórica. Mas um caminho de paciência. Persistência. São subtis, quase não se notam, crenças e paixões. Pequenas oscilações e correntes. Sempre lá estiveram. Apenas permaneceram ocultas como na escuridão de um quarto. Mas deixam cicatrizes pálidas e são uma linguagem de sobrevivência.

 

Por isso, querida, volta ao teu passeio matinal. Ao teu caminhar da tarde. Come algo cozinhado pelas tuas mãos e pensa nos teus pensamentos. Enquanto escreves e dormes a sesta das tardes de aborrecimento. Sonha. E com tudo isto, cara dama, mesmo assim, nada terás. A soma de tudo isto será zero. Possuirás nada, minha querida!

O falso moralismo sempre me fascinou. Também sempre me irritou. E sempre foi objecto de estudo pessoal. Por razões tão pessoais e por demais obscuras porque só a mim interessam, observar como tantos se estafam a cobrir um vazio cósmico com pormenores e afagos ainda mais vazios, ajudou-me sempre a conhecer e reconhecer estas criaturas. Algures, trajados em rigor absoluto, avivam memórias e supostas agruras que passam e passaram. Vão afagando a ideia de que estão sós e em batalha contra o mundo. Uma falta estranha, esta: incapacidade de encontrar a cura para uma moralidade deficiente. Por isso, porque em casa de miseráveis há muito vivem e respiram, usam o moralismo de quem se sente ofendido e alvo de perseguição para encher os bolsos vazios.

 

A única coisa que um falso moralista quer, anseia, é nadar numa auto comiseração onde tudo o que rodeia o seu espaço é sincera miséria. Onde todos os outros, num mundo atroz, se lhe não comparam. Somos todos almas desgraçadas, mas ainda assim os outros são piores. Mas a mim, cínico intragável, fascina-me que não percebam, estes moralistas absolutos, que isso é nada sentir. É não pressentir o tornado que se aproxima. Uma paralisia sem sensações e incapacidade de preencher um espaço. Mesmo estando presentes em forma física, não ocupam nada. Um falso pudor de quem não percebe a falta de solo e as pernas penduradas no vácuo. Sem vento ou calor. Apenas a desilusão dissimulada. Travestida em indignação nojenta. Em choque artificial. Igual a uma condição terminal e apenas mantida em artifícios gastos por demasiados dias a apodrecer. 

Soube, porque muitas vezes e por mais esquecido que esteja, existe sempre quem pegue na velha recordação e sacudindo o pó, lhe confira estatuto de vida que não tem. Como que acendendo uma vela em noite de vento forte. Sabendo que apenas servirá para confirmar o que eu sempre soube. Que iria acontecer e voltaria a suceder. Sei que uma vez mais, foi escorraçada de outras bandas. Pensei sempre que já não estivesse presente, sinceramente. Culpa minha, claro. Deveria ter imaginado ... Mas o angélico floco de neve revelou-se ferida aberta. Afinal, talvez tenha compreendido que rosnar apenas, não chega. Quando tudo o que se mostra é uma boca desdentada. Pateticamente  vazia de ameaça. E eis que o angélico bolo de fruta tão doce foi vomitado para o seu canto! Canto que sempre lhe pertenceu. Ganindo ameaças e sem saber como curar as feridas de mais uma purga colectiva. Creio que sempre lhe assentou bem esta sua verdadeira condição. Olhar o espelho e ver-se animal caçado. Encurralado e com a única opção vergar e abandonar. Poderá ser agora o fim e o descanso que a tantos deve? Uma vez que, pelo que sei, foi uma vez mais reduzida a uma condição de silêncio e rendição. Tristemente amedrontada. Covarde. Nem todos sabem muito da arte da guerra e a facilidade com que se tornam alvos da maioria nem sequer é de lamentar. Apenas é triste e surreal.

 

 

 Quando finalmente se reconhece que afinal, os caminhos podem cruzar-se e como simples é a noção de que é possível caminhar lado a lado, tudo se arruína. Creio que o que mais me assusta é que vem de mansinho. Ás vezes, pelo simples olhar. Por uma banal situação vivida todos os dias e tantas vezes passada e sentida. Não sei porque me assusta a vontade de deixar que exista companhia por todos os dias e noites vividas em abandono. Mas a verdade é que ainda não consigo dominar a necessidade de solidão. Dos dias necessários e onde nada me perturba. Egoísmo, creio eu. 

 

Alguém, outra pessoa, realmente compreendeu este ponto e esta necessidade de escuridão. Creio que por um beijo. Se calhar porque apenas bastou olhar e conspirar para que os caminhos fossem únicos. E sinto como possivelmente será impossível voltar a olhar para mim mesmo e o que me rodeia, da mesma maneira. Com o mesmo abandono e liberdade. Troquei um pouco de mim para que estivesse comigo. Notei que tremo ao seu lado, na cama, nas noites em que penso, acordado, como poderei sobreviver sem ela? E sinto-me perdido. Sem saber o que fazer.

Para os que tão seguramente afirmam nada venerar, que insistem na necessidade de vazio absoluto está destinada a pior das desilusões. Permanecer num limbo depressivo onde cada recomeço de um dia se iguala ao anoitecer. Realmente, por estranho que possa parecer não é possível ser descrente absoluto. Todos veneram algo. Todos acreditam. A diferença reside apenas no facto de sermos nós a escolher quem veneramos ou acreditamos. Deus, amores e regras. Seja  o que for, podemos decidir. É nossa essa possibilidade. Mas sei por minha experiência pessoal, que seja o que for que eu decida irá devorar-me lentamente. Sei que nunca será suficiente. Que nunca terei o necessário. Serei sempre feio aos meus olhos. Haverá sempre vontade de mais solidão e caminho. Será preciso morrer muitas vezes até que isso seja realmente verdade e lamentado.

" A saudade não está na distância das coisas, mas numa súbita fractura de nós, num quebrar de alma em que todas as coisas se afundam.”


Vergílio Ferreira

 Não lamento o que já se passou. Raramente revejo porque razão agi em determinado momento de uma maneira, quando poderia ter dado outras voltas. Possivelmente, poderia ter pensado diferente. Mas realmente, muitas vezes tudo se dissolve naquele fumo ou naquele trago de gin. Porque por vezes e ainda que não se queira, a necessidade de esquecer torna-se numa tirania diária. Pouco me interessam os motivos do que já passou ou ficou para trás. Ainda que se julgue possível ouvir os gritos de certos momentos isso não acontece. Apenas são sussurros e eu sei perfeitamente com que facilidade deixo de escutar quem sussurra. 

 

A distância deixa-me à deriva. A insistência de apenas escutar as palavras de alguém que arrogantemente  cravou uma adaga na minha solidão enche aqueles dias em que me afasto do sol ou do calor dos dias. Porque veja-se, conheci-a na escuridão e quando o frio enchia a noite. A sua mão mostrou-me onde é que a aurora boreal se espreguiça e em que pontos se torna mais distante e bela. Daí que irei fugir para outra latitude, claro. Porque tenho uma estranha capacidade, voltar as costas a tudo o que me causa distanciamento do que realmente considero paz interior. Felicidade. Alguns, os poucos que realmente sentem, chamam-lhe assim.

É uma ciência natural esta forma de vida transcendente que concebe a existência no fundo mais escuro e rochoso dos dias. Em camadas que cobrem o que os olhos conseguem ver cá em baixo e lá em cima. Principalmente, cá em baixo. Creio que muitas vezes pensei dispor do necessário para sair deste fundo. Por vezes parece estar ali em frente, a um abanar de dedos. Mas então, depois de tanta vida desperdiçada, após tanto contacto absurdo e vozes de raiva ou perdão, tudo se resume num ermo de sepulturas. Acima de tudo para sonhos desfeitos e almas mutiladas. Sepulturas cavadas com as próprias mãos para podermos respirar. Por um segundo, que seja. 

 

Sei que não consigo fazer sentido, se desde tão cedo alimento um céu cinzento com apontamentos meticulosos. Se procuro respostas em tantas confissões junto à cama de moribundos. Na tarefa impossível de criar outra linguagem vinda de palavras a desaparecer. É tão grotescamente fácil que o desgosto se conforme e transforme naquele catecismo venenoso que a todos interessa. Onde todos se banham. Nunca esquecendo que a minha história, tal como a dos outros, é escrita na pele fria. Escrita com a garra do abutre e a saliva do rato. Nunca se desvanece. Cresce.






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