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" A solidão não é forçosamente negativa, pelo contrário, até me parece um privilégio. Talvez a minha solidão seja excessiva, mas eu detestei sempre as coisas mundanas. Estar com as pessoas apenas para gastar as horas é-me insuportável.",
Eugénio de Andrade
O que mais me custa é a transição para este estado de realidade passiva. Não falo, sequer, da minha ineptidão para conseguir resistir aos momentos de sonho vividos nos últimos dias. São apenas reveladores do que eu já sei e nunca parece mudar: sinceramente, não sinto que faça parte ou seja elemento íntegro nestes momentos e atmosferas que me rodeiam. É demasiado fácil para mim adormecer nestes dias que passam; basta cerrar os olhos e fechar os pensamentos em penumbra. Tem sido rápido e fácil dormir com as memórias dentro de mim.
Creio que se revela menos doloroso pensar nas salas cheias de gente e cabelos a voar. No fumo que transforma o olhar em vermelho. Nas palavras a soarem malditas e escuras, enquanto voltamos a sair para viajar, para mais uma vez partilhar o vinho e a sensação profunda e mesmo dolorosa de que a solidão se pode reduzir ao fio dos medos. Que na companhia se suporta a erosão de não pertencer ao que gira em volta.
Nestes últimos dias de silêncio calado, no resumir fino de memórias em que me sinto intensamente antigo e em ruína, é demasiado fácil adivinhar que a distância serve para isto mesmo: reconhecer sem esgotar as lembranças de um outro mundo e universo.
Mas realmente nada se pode comparar a este começar devagarinho; a esta menção honrosa ao irresponsável sabendo que nem sempre se consegue ser responsável. É como fechar os olhos e deixar de resistir a um tempo que se voltará a aproximar e que não quero contido, mas com um rosto próprio.
" Too Close Enough To Touch ..."
Existe uma distinta tendência que consome a consciência humana enquanto envelhecemos. Uma dificuldade extrema em aceitar o nosso próprio reflexo. A velhice, estranhamente, não parece pacificar o olhar pessoal; o afastamento da ingenuidade de criança permite que muitos envelheçam na sombra insegura do que realmente se reflecte em nós.
Quanto mais se escondem as imperfeições mais imaginativa se torna a vingança deste reflexo. Por isso me sinto bem na companhia dos que aceitam o que são, sempre combatendo a ideia de que não existe salvação. E fico sempre fascinado como certas pessoas lidam com a sua escuridão. Uns lutam para a silenciar, não imaginando que esta é maior, muito maior do as noites frias ou os olhares vazios. Outros, são semelhantes a crianças de passos duvidosos, embriagados pelo brilho que irradia, assustadas pelo seu conhecimento e sem entenderem que existir sem erros e imperfeições é das mais cruéis formas de morte lenta e sem propósito.
" No edifício do pensamento não encontrei nenhuma categoria na qual pousar a cabeça. Em contrapartida, que belo travesseiro é o Caos!", Silogismos da Amargura, Emil Cioran
Terminou, por agora, o sonho. Mesmo esgotado física e mentalmente, é como se um pedaço meu tivesse sido arrancado com o fim da viagem. Nunca imaginei que fosse possível existir num estado tão puro de adrenalina, onde até o mero acto de alimentação é esquecido.
Mas sei ser apenas o principio de algo. A viagem apenas começou e mesmo sendo forçado a caminhar assente na terra, sei agora que não vou parar. Nunca mais.
Mais um corte. Mais uma verdade aprendida.
Resta apenas, e após este primeiro desígnio ultrapassado, testar o meu corpo numa outra prova. E finalmente confirmar se estes últimos anos me fortaleceram realmente.
" E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.", Ernest Hemingway
Aprendi a conhecer o meu pai como um vinho, que num primeiro trago não se valoriza. Porque era muito jovem e sem piedade para a sua subtileza. Porque era apenas estúpido e achava que o vinho se apreciava logo num primeiro trago. Durante tempo em demasia ignorei o seu carinho discreto e sombreado pela sua incapacidade de aceitar a inutilidade da palavra a mais ou um gesto que não fosse sincero.
Tenho transformado a sua memória de maneira muito própria: metódica e finalmente deixando que surjam frestas informes para que deixe de ter segredos em mim. Quando se iluminam os recantos certos distingue-se quem, em dias de crise, suportou a esposa orgulhosa, num silêncio que hoje descubro, deslumbrante.
Se consultar com minúcia as notas em que mergulho a sua recordação, fácil se torna compreender porque somos tão semelhantes. Sangue do mesmo sangue. Um e outro. Também olhos verdes mas quase verde azeitona de uma tonalidade enigmática. Quando completei quinze anos e porque notou o meu interesse, ofereceu-me uma edição barata da Europa-América do Anticristo de Nietzsche, que ainda hoje descansa ao lado da minha cama, com a capa muito gasta e as páginas já amarelas. E é velado por Ernest Hemingway nos sinos que dobram. Apenas agora compreendi porque era este o seu escritor de eleição. Porque decidi procurar onde nunca o fizera.
Quero que nunca morra este pensamento e recordação. Que fique definitivamente gravado em mim a memória de quem primeiro entrou no meu minúsculo apartamento ali para os lados do largo da graça, quando a solidão assumia as tonalidades instintivas da afirmação "estou aqui", se sentou em frente a mim, que queria ficar homem demasiado cedo, e partilhou o queijo, o pão escuro, as nozes e o vinho em cima da única peça que existia naquele quadrado diminuto a que chamava sala: uma toalha azul. E jamais esqueci o cheiro do seu perfume naqueles momentos. Também foi naquele dia que percebi quem era o meu pai.
Quando anoto o que me preocupa insisto na sua persistência em nunca falhar nas suas promessas. É fácil sentir a sua despreocupação com o cabelo solto que sistematicamente penteava para trás do rosto com os dedos abertos das mãos enquanto fixava aquele olhar felino que revelava como muitas vezes iriam terminar as coisas e acções.
Creio que ao falar dele falo de mim. Acaba por ser uma necessidade de vida insistir em conhecer o sabor da sua energia tranquila. Nada voltará a comparar-se ao seu silêncio subtil. Sei disso agora.
Pinturas de sangue humano, Maxime Taccardi
Nunca consegui entender a falta de capacidade que tanta gente possui para entender a solidão e o desespero. Não porque me considere especialmente versado nestas duas formas de diálogo intimo - embora não me sinta estranho a eles. Talvez porque se assustam com a serenidade que brota perante o irremediável de certas solidões e desesperos. Só assim encontro justificação para a mágoa que fica. Quando apenas permanece a ideia de eternidade silenciosa. A ideia de que a solidão e o desespero nunca irão terminar.
Mas detesto a apatia das pessoas perante a sua falta de entendimento. A sua preferência por um refugio quase sagrado na indiferença do amanhã poder vir a ser melhor. Mesmo que saibam do crescimento daquele grão que germinou, ainda que contra a vontade alheia, e se recusem a aceitar solidão e desespero como ferramentas de ruína. Porque se olham para as pessoas como casas em construção e se esquece do que ficará no fim: telhas partidas, pó no ar, ervas e soalho podre.
* The Left Hand Path...*
Recordo que nunca te afirmei ser belo. Bonito, sequer. Nunca o fiz perante ti ou para quem fosse. E no entanto, a ti nunca te interessou esta fragilidade. Existe a possibilidade, então, de que eu não seja um copo vazio. Que o que contenho consiga despertar amor de uma outra criatura quase inatingível. Quero imaginar que sim ...
Escuto. Aprendi a ouvir-te. Encontrar o teu rosto nas palavras sinuosas de um português esforçado enquanto se vai unindo ao inglês perfeito, entre a suavidade do teu dialecto dos frios nórdicos. Creio que não seja próprio escrever desta maneira mas a verdade é que no calor da tua fala, nos teus gestos livres, me sinto animal sem pernas. Impotente.
Mas a minha falta de beleza, tão distante da tua, nunca nos impediu de sermos escuridão. E como tenho provado desse breu que transformas em magnânimo! Um vazio que se inundou. Uma passagem pelos dias de esterilidade para descansar na abundância.
* Ghost Brigade ...*
A análise pessoal do que transpira na alma é das privações mais cruelmente metódicas que uma criatura racional pode alguma vez executar sobre si própria. Analisar sincero e só, de si para si. Sem testemunhas que não sejam as batidas silenciosas do coração. Uma lei desconhecida ao comum dos mortais dita quase sempre e em capricho que este analisar feito com a precisão do caos cirúrgico nunca seja o de ventos favoráveis.
Eu consigo ver como cintilam certas pessoas na sua noite. Consigo ler nas palavras o individualismo cru que se recusa a aceitar mestres que não seja a escuridão de conclusões sinceras. E como não haveria de o conseguir ler em certas palavras? Se estas se afastam das fibras de uma falsa paz. Se por trás de um desejo de viver e aparente milagre de estar viva eu não vejo uma raridade preciosa que se chama candura.
Por vezes, consigo ler as notas de quem tenta percorrer estes subterrâneos internos acendendo palavras como pequenas velas de sorte, para que os caminhos permaneçam iluminados e sem escuridão. Mas as palavras são apenas palavras. As suas possibilidades infinitas. A mim o que certas palavras soam é ao mergulho nocturno das emoções. A conclusões nunca aceites: certeza da impossibilidade de ser feliz com os outros e incapacidade de o ser em solidão.