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* No 2 fks given ... *
Não é certo que eu algum dia consiga entender a incapacidade humana para aceitar a transformação; o mero facto de quem acha que devemos permanecer iguais ao que era igual em meses anteriores. Que uma cabeça rapada se torne sinónimo de estranheza quando o preferido eram os cabelos longos.
O simples afecto por uma aparência física mais magra e franzina, sem dúvida menos intimidativo, prefere ignorar quem se esforça por crescer fisicamente; sempre desvalorizando o "monstro" como um cepo macaco e bruto. Torna-se clarividente o olhar perante as alterações, consumado no assomar de uma previsão de futuro negro para o portador de tal porte.
Como em tudo a ignorância é uma ferramenta com um uso muito específico. Existem os que ignoram porque esta é a sua melhor defesa. Os ignorantes porque são incapazes de aceitar a diferença merecem um ódio especifico e muito mais primordial.
* Sintomas do Universo ...*
Eu vi cães transformados em guerreiros. Condecorados com medalhas brilhantes por bravura e companheirismo. Vi-os ao lado de soldados humanos e olhados como iguais em coragem e cerimónia com honras de estado reservada apenas para a elite forjada em laços de amizade, muito além das forjas da guerra.
Eu vi soldados feitos homens por força da batalha ajoelharem e chorarem a morte do cão companheiro, abraçando o seu corpo enrolado na bandeira do país porque não era apenas "mais um cão": era um soldado!
Vi também cães e humanos ajoelhados de cabeça baixa em homenagem a outros companheiros mortos em combate; nem uma hesitação perante as salvas de entrada no paraíso.
Vi que a devoção, companheirismo e amizade não tem limites entre estes guerreiros. E pela primeira vez em anos e anos ajoelhei tal como todos os outros. E pela primeira vez em anos não consegui reter o choro e homenagem.
Mas deixo-me descansar: prefiro que a minha paz e liberdade esteja na posse destes guerreiros.
O que o resto do mundo pensa não me interessa.
* Sintomas do Universo ...*
Foto: Stastie
* Sintomas do Universo ... *
Soube da morte do velho merceeiro há poucos dias. Estranhei a ausência dos seus passos indolentes durante as últimas manhãs, habituado a ver a sua passagem durante o meu ritual matinal antes de adormecer. Também estranhei ver a velha mercearia enfiada entre dois prédios altos de entradas circulares onde o velho merceeiro assentara arrais desde que a eternidade se lembra, fechada.
Sei que se apagou para os lados da baixa lisboeta e de uma maneira rápida e eficiente; como se a morte tivesse sentido de dever e a hora do velho largar amarras chegara. Caiu fulminado e sem um gemido, dizem.
Há uma displicente perda na sua ausência e passar de manhã bem cedo em direcção à mercearia. Uma brisa de conversa que mantínhamos entre os biscoitos de canela com geleia da terra oferecidos e nos cafés em chávena a escaldar que eu transportava para dentro da loja. Uma ligação que não passa por palavras óbvias enquanto percorria os labirintos entre taças de plástico, garrafas de vinho e uma arca de frio que sempre tinha para mim os congelados mais bizarros. Deixar que os odores do tempo dos morangos e das maçãs verdes se misturasse com as laranjas pequenas de sabor cristalino.
Ouvir o que contava a sua consciência entre palavras de quem avançou sem muitas letras lidas e mesmo assim rebaixando muitos que sabem ler sem ver a imbecis, só era superada pela claridade que entrava a jorrar pela mercearia mesmo em dias de escuridão chuvosa.
* Sintomas do Universo ... *
" O meu gato Morfeu é velho de muito ver. Sabe da vida dos pássaros e dos beirais onde descansam os seus ninhos; sabe dos insectos que escorrem pelos vidros da janela quando o sol ilumina de esguelha a casa; deixa que o olhar se perca no horizonte longe das estradas e ruas assombradas desde cedo; nada sabe de lógica milimétrica e muitas vezes parece não resistir a um bocejo, perante a minha ideia de que para os gatos o tempo parece ter parado; prefere a escuridão sem o peso do luto; sabe que dar demasiado irá alimentar o arrependimento, mas quando nos meus dias de céu carregado e sem chuva eu me canso de mim próprio, nunca parece arrepender-se de me ensinar a fugir do caminho da orfandade. "
" O outro gato chama-se Sigma e a alvura do seu pelo é aterradora. O silêncio companheiro deste gato cego de um olho é tão espesso que me deixa pálido; diante da minha previsibilidade reúne todos o momentos de ternura e protege-me como um abrigo de tempestades; existe nele algo semelhante a um livro a ser escrito com silêncios e paixões de tantos lugares; também parece não acreditar nas geometrias humanas e creio firmemente que me conhece demasiadamente bem; sabe como as ideias podem envelhecer dentro da cabeça bem mais depressa e antes de poderem ver o mundo e do confundir de segredos com identidades; sabe que confio demasiado na memória de cinzas, páginas em branco e cicatrizes, mas parece discordar em arrogância com a minha solidão. "
" Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. ",
Joaquim Machado de Assis
Toda a gente morre. É ponto assente e lugar mais do que comum. Estou na mais perfeita, absoluta harmonia e concordância com quem defende as virtudes de colocar um fim na sua própria existência como assim o desejar e sem a necessidade de recorrer a desculpas fúteis ou autorizações de ninguém; que sempre terminam em banalidades e incompreensão.
Sempre me pareceu óbvia a noção de que desde o momento em que começamos a respirar o único e verdadeiro direito que possuímos e ao qual nada, rigorosamente nada, se pode opor é o de morrer quando assim entendermos. Existem maneiras do exterior prolongar a nossa existência com o nosso assentimento. Já não é tão verdadeira a ideia de que esse exterior pode impedir a nossa decisão de terminar; pode, no mínimo, evita-lo durante alguns dias, meses ou até anos. Mas tomada a decisão pessoal nada nos pode abortar esse direito e comando. Religiões, estados e leis já o tentam desde o início. Em vão. É um direito pessoal e de quem comanda.
Mesmo que paralisados e sem movimento existe na mente força suficiente para nos levar a definhar; apenas se morre mais lentamente e em maior ansiedade.
É apenas de ordem pessoal. Cada um decide e apoia como assim o entender. Não o nego. Mas é uma noção e realidade absoluta. Por mais que se tente pensar o contrário.
Por isto se torna para mim um exercício de comoção e algum humor leve - que este já de si é tão raquítico - adivinhar o que irá suceder em tempo real cada vez que uma figura dita socialmente mais relevante decide desaparecer. Nada se torna mais previsível do que o sussurrar e o choro fino dos acenos perante tão generosas pessoas; sempre e sistematicamente maquinal pontuado pelo facto de estar a desaparecer uma grande pessoa que muito deu a este mundo cruel e frio. Como se quem assim o decidiu se importasse.
A dor e a desilusão acabam sempre por ser calibradas em função do método escolhido. Quanto mais vistoso maior é a onda mediática; mesmo que a vida do outro tenha passado ao nosso lado sem darmos por ela. Compreenda-se pois estes últimos meses de tormenta suicida e perante tamanha procissão de enforcados.
Entenda-se ...
Talvez fosse melhor guardar tudo isto em gavetas e cadeados. Aguardar antes a crueldade do desaparecimento presencial dos que realmente nos dizem algo. Nestas ocasiões e estranhamente, nunca parecemos dispor das palavras e gestos necessários para explicar esse vazio.
" Devemos ser gratos aos idiotas. Sem eles, o resto de nós não seria bem sucedido.", Mark Twain
O que é mais importante? Ser o mensageiro portador das más noticias e do aquilatar sincero de certas incapacidades que muitos julgam ser suas benignas qualidades; porque afinal é de seres benignos que se orgulham de existir que pura e simplesmente se trata. Não é?...
Posso escrever estas palavras com todo o desplante que me apetecer, já que de mim não se rezam exemplos pela positiva. Nem caminhos a percorrer sem o perigo de ceder às tentações menos comuns. Tem as suas vantagens, claro. Porque o muro mais sujo e escuro não interessa, liberta sempre margem para poder observar e aceitar o negativismo alheio com o maior sossego e por razões de lógica fria, quem está habituado aos disparates dos seres benignos depressa se mune dos anticorpos necessários para aguentar as suas ilusões. Coisa que não parece ser propriedade no sentido inverso.
Veja-se uma má noticia e um aquilatar sincero quando se pensava que em certas pessoas, que se orgulham de existir mas sempre na mesma predominância janota, lhes é explicado de forma muitas vezes tácita mas firme e convicta, que são estúpidas. E se recusam a um pequeno vislumbre que seja sobre a possibilidade, por mais longínqua que pareça, de que por norma não se é perfeito coisa alguma! Que de forma implacável e absolutamente necessária é esforço meritório combater estes ventos bucólicos que sempre cozinham a ideia de uma estupidez que não se deve combater a todos os instantes.
Por muito que se açoite o mensageiro porque infelizmente apenas acende as luzes para o lado mais frágil mas sempre muito afagado pelo pedantismo do "és um convencido! Não tens defeitos?", a verdade é que existe quem já esteja perfeitamente em paz com as suas incapacidade e jocosas imperfeições. A estes resta sempre o prazer do brinde final, do último expelir de fumo após fragrante refeição; um mundo inteiro, uma Terra com tantas esquinas, feitios e maneiras, mesmo assim, há quem se imagine inextricável na sua estupidez silenciosa e rastejante, sonhando que se trata de uma qualidade essencial à vida.