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Creio ser uma qualidade minha a capacidade de escutar. Consigo ouvir outra voz durante horas a fio; muitas vezes pela noite dentro até bem perto das primeiras luzes do dia seguinte. Creio ser uma virtude, esta capacidade de escuta mesmo que muitas vezes se trate de inutilidades. Ainda que muitas vozes depressa se convertam em tédio.

 

Resisto.

 

E quando no meio das palavras se aglutinam os meus testemunhos, a invisibilidade nos relatos torna-se absurdamente real. Presente. Dolorosa.

 

O seu silêncio rompeu-se comigo. Surpreendentemente articulado. Silêncio. Uma arte pungente de amizade quase fraterna com quem se esqueceu do que era. Viver junto de quem não se lembra, durante anos; incapaz de aceitar que o olhar dela já não o reconhece. Que a indiferença fria, esbatida no gesto antes afável e agora agitado, é apenas a dormência da lembrança.

 

Não reconheço melhor imagem de amor do que aquela que ardia nos seus olhos assombrados pela perda. Não aceito outra definição de paixão senão a que vinha de si, tresandando a saudade de quem não voltará. Que o corpo já velho se dobre ainda mais pela inutilidade de palavras ou gestos que iluminem, ainda que palidamente, o esquecimento de si e dos outros.

 

Assombram-me certas vozes. Por vezes é possível sentir que o desespero tem o peso do mundo carregado nos ombros. Torna-se certa a noção de Inferno: porque existe nas incapacidades e solidão de quem deixa de se recordar.

 

Entre os afectos respeitosos de filhos ou nas infantilidades dos netos algo falha. Falta. Não é apenas a velhice rendida aos anos. Olho aquele corpo dobrado com uma reverência que me surpreende. É possível notar que um dos seus lados é apenas sombra. Que lhe falta faísca existencial.

 

Creio que assim deve acontecer.

 

Quando se entregam tesouros nossos a outro, partes de composição pessoal, quem deixa de se lembrar nunca mais os devolve. E a morte tem os olhos lustrosos de quem pouco se importa. Aceita apenas que fiquem sombras entre espaços vazios.

 

Por muito que se escute quem fala recordando. Não existem lágrimas mais dolorosas.

 

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(999)

 

Por vezes, são alguns momentos que me despertam para uma certa realidade. Raros. Tão esparsos que se transformam em apertos dolorosos. Surgem do nada e transportam consigo a transcendentalidade das revelações.

 

Um pequeno, quase invisível, vislumbre da importância de uma criatura. Uma só criatura universo. Compacta. Uma órbita de anéis onde tantas vezes a tempestade se aplaca num murmúrio. Algo com a capacidade de absorver a força bruta do Caos e permanecer intacta. Impossibilidades.

 

Creio piamente na ideia cada vez mais profunda em mim; estranhamente mora esta noção de que não estou a queimar os anos com algo sem valor. Não consigo afastar este horizonte. Por mais que tente perseguir portentos ou sombras, tudo se encerra numa só criatura universo. 

 

Como se explicam certos ventos de outras margens a um descrente? Como se torna possível esta perda irreconhecível da necessidade de autofagia, porque afinal existe muito mais potência noutro toque e calor de um beijo?

 

Como se justifica à consciência a vontade, necessidade primária, de sentir saudades para manter viva a imagem de uma só criatura. Um universo onde se torna tão, mas tão fácil perder.

 

 

 

 

(999)

 

eu

 

...

 

O pior dos erros cometidos é a incapacidade de aceitar outros como diferentes. Tornam-se obstinadas as criaturas quando descobrem que outros não são iguais a si. Persistem obstinadas na ideia de alma-gémea, transformando-a caridosamente em reflexo. O seu conceito de transformação é aquele de uma lógica companheira, gostando do mesmo e rezando o mesmo terço. Falsamente aceitando no pensamento de que são seus semelhantes.

 

Não creio ser igual a ninguém. Não creio que os outros queiram ser iguais a mim. Não me interessa. Tenho caminhos apenas meus mas nem sempre os percorro só. Nesses dias é necessário que peça e muitas vezes estenda a mão, abrindo portas para companhia. Mas  estranho é o sentimento de conhecimento e solidão. Estou mais ciente da solidão quando acompanhado. Encaixa na perfeição.

 

Por estes últimos dias retive a noção da minha falta de beleza exterior. Um pouco pior do que isto: alguém me afirmou perturbado achar ser também muito feio de alma!

 

Aceito ambos os juízos com a parcimónia e afectação da falta de surpresa. Porem devo reconhecer em meu próprio mérito que se tornou muito mais fácil viver comigo próprio do que com os outros. Que é apenas o meu egoísmo a latejar, mas não somos todos iguais e merecedores do mesmo amor. O oposto é também uma realidade. Existe quem encontre beleza em mim. Na mais profunda essência isto basta.

 

 

 

 

 

 

(999)

 

 

Temos a falsa noção dos Invernos que passam. Enquanto o sangue corre pelas veias de maneira vital e os dias são brilhantes, esquecemos que o inverno tem olhos antigos de tanto tempo que o esquecimento é o seu melhor agasalho.

 

Alguns Invernos, crispados por monções e gelos dolorosos, são únicos entre outros Invernos. As suas rugas, meticulosamente traçadas, desfiam os anos de vida silenciosamente guardada e não falam. Apenas parecem desejar sussurrar; sabem que dos seus lábios caminham sabedorias antigas e isso parece incomodar os astros brilhantes da primavera.

 

E cheiro. Tresandam a odores de desilusão e abandono. Ensopados na geada de promessas não cumpridas e dedicação cega para obter nada.

 

Aliás, nada, parece ser o seu vergar aos anos.

 

Não são estranhos aos olhos dos animais observadores estes Invernos. Sóis poentes com braços e pernas dormentes dos dias vividos, afastaram as sombras da pressa de viver. Sabem, entre os tragos dos dias cada vez mais pacificados e as virtudes da espera, que são assim mesmo: Invernos onde tudo termina.

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(999)

 

 

A natureza humana gosta de se deliciar com mentiras sobre os seus receios e desejos. Mente desgrenhada sobre o que escondem outras almas. Prefere a companhia de semelhantes, pregada em mandamentos de solidez edificada por deuses que nunca viu. Enquanto isso, massaja, obsessiva, as têmporas da suave enxaqueca vestibular onde dormem as suas tonturas e amarguras.

 

Mente.

 

Intoxicada nas luzes amigas ou palavras modestas de companhia porque teme a solidão. E porque não consegue fugir dos dias onde as lições são repetidas demasiadas vezes. Em nome do Pai, do Filho e de um Espírito que se anseia santo.

 

A verdadeira natureza humana é imperfeita porque se esconde atrás de trapos esburacados, onde ainda alguma claridade se esboça. Não sabe de outro rosário que não o da asfixia lenta. E nada lhe é mais permanente do que o cautério da claustrofobia. Animal de becos sem saída não quer espaços livres. Prefere o aperto sem respiração.

 

O claustrofóbico é a nossa maior dádiva e maldição. Dentro do ventre materno. Na sede e na fome. Nas agonias esbatidas pelo aperto hábil da esperança. Em comunhão física, pincelada de grandiosidade libertadora e divina, porque é desta natureza esfarelar a gosto e tempero de prosa ou poema épico um amplexo de sensações que nada mais é do que uma libertação física. Prazer e adrenalina? Não. Dor e claustrofobia libertadora.

 

Por veias finas surgem tempestades silenciosas.

 

 

 

 

 






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