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" A timidez, inesgotável origem de tantas infelicidades na vida prática, é a causa directa, mesmo única, de toda a riqueza interior." - Emil Cioran
É possível que outros sintam orgulho em algo feito por mim. Estranhamente, só no meio da multidão consigo aceitar este facto. Como se fosse necessário que esta parte de mim, sempre tão escondida e foragida, se misture com outros, receba o elogio espontâneo; sem que seja necessário lutar por ele.
Creio sinceramente na lógica fria que demonstra a necessidade de sentir o oposto para atribuição de valor. Valorizar o calor após sentir o frio; receber o ardor de um beijo após a sua ausência; apreciar companhia depois de pernoitar na mais absoluta e consentida solidão. Por muito que tente negar, são estes reflexos que respiram em mim. E me alimentam.
São fragmentos de lógica que alimentam o Caos mais primário que habita em tudo. Em nós. Em mim. Comunhão de palavras, olhares partilhados, ritmos obscuros aceites e venerados. Existem muitas estradas; estas longe dos caminhos mais marcados pelos passos de todos os dias. Encostas escondidas onde moram outros animais e outra fé. Escuridão verdadeira e luz distante, como premonição.
E sinto-me parte de algo. Gente. Mesmo que diferente. O calor de tantas criaturas revela-se como absinto da alma: consumido sem pudor alucina a mente e a tentação de permanecer ali, para sempre.
Esta é uma beleza negra. Oposta. Apenas partilhada pelo som e pelos olhos descritos nos espanto do fim de uma viagem.
Uns chamam-lhe vertigem escura e perigosa. A evitar se queremos seguir o caminho da virtude humana.
Outros é o Caos libertador. Renascimento. Caminho de floresta escura.
Eu. Meu.
Opia
A mais rara das preciosidades começa diminuta; frágil ao extremo do embaraço. Estranhamente, quase por admissão de cinismo cruel e falho de emoções, não raras vezes algo conspira para que se condenem certas gemas preciosas a muito mais do que pelejar contra incapacidades e fragilidades que nada mais são do que um iniciar de testamento vital.
Imperfeições.
Nascidas em nós. Logo após os primeiros sopros, soltos entre as lágrimas dos momentos que iniciam a existência.
Algo conspira, de facto. Para que nos primeiros anos o que é precioso, sem que seja humanamente possível aquilatar o seu brilho raro, subsista num limbo bizarro de dor e desilusão e onde cada hora que se esgota é vitoriosa. É como se a Natureza revelasse arrependimento da sua criação e, num desvairo ciumento, quisesse macular uma obra que é única.
Por isto lhe guardo um profundo rancor. Um ódio insubmisso.
Mas a sobrevivência do que é raro e precioso é estranhamente virtuoso. Talvez uma bofetada sonora e dolorosa na face da sua criadora. Talvez para que seja possível ao olhar de um descrente como eu finalmente entender que as preciosidades inestimáveis crescem. Alongam-se ainda mais belas. Para meu espanto.
Cada nesga da minha submissão tem sido arrancada a frio por uma preciosidade sobrevivente das escarpas mais dolorosas. Em cada fraquejar meu, pessoal, que me assassina silenciosamente, se reflecte um rosto que necessito se mantenha a brilhar e de olhos imensos; para que eu consiga manter a memória da sua expressão passada agrilhoada na masmorra mais profunda e escura.
Creio que perante o que me é demasiado precioso me recuso a lutar. Ser realmente o primeiro a juntar o joelho com a terra e baixar a cabeça. Deixar que pedaços meus sejam arrancados e talvez usados como amuletos.
Ou talvez seja uma revelação e admissão de luz que brilha no escuro.
Talvez. Mas pouco me importa.