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A palavra.

 

Falar é fácil. Dominar a oratória requer a disciplina e o método que tornam o som das palavras no  discurso. Discursar,  discutir, nunca me soaram a arte - mesmo sabendo que tal nos afasta de todas as outras criaturas.

 

Sempre procurei a palavra escrita. O traço e a expressão. O verbo. A frase escrita que carrega em si todo o portento capaz de me silenciar; carregar o meu silêncio como a mais sincera homenagem. 

 

A escrita é o próprio silêncio. A solidão na ausência do som. Os meus olhos, o teu cheiro e o teu respirar, nas palavras escritas. O alimento na ausência e na saudade. A marca que não se desvanece no  desaparecer das horas - como se desvanecem os sons.

 

Não pertenço ao universo daquele texto. Mas caminho como um fantasma entre as lembranças e as lágrimas do punho que solta a escrita. Quando cai a noite estou junto ao candeeiro que se desliga; onde o caminho se faz em silêncio, entre os ares frios da manhã agreste e o primeiro olhar para o dia que se transforma em escuridão, eu consigo estar presente. Quase pertencer - enquanto crescem as frases, o feitiço permanece.

 

Sou um animal que procura atmosferas, sempre distantes se faladas. Universos - apenas possíveis por estranhos dotes alquimistas. Mundos descritos na escrita coroada pelo meu silenciar.

 

 

 

Assumo a minha própria culpa. Joaquin Phoenix é um dos raros artistas que admiro profundamente; creio ser um dos poucos actores realmente tocado por uma genialidade que tantas vezes insiste, matreira, em ser rara, praticamente inexistente, na  maioria dos casos na arte do cinema. Lembro-me do receio que senti quando soube que iria ser figura principal no retrato do palhaço inimigo público número um. Porque sei bem no que se tornam certos filmes - principalmente de super poderes.

 

Depois, porque achei ser tarefa titânica tentar outra aproximação ao palhaço insano e caótico de  Heath Ledger - qualquer coisa muito próxima da blasfémia mais extremista. Cioso do que admiro, receoso da possível catástrofe, cerrei os olhos perante o trailer de promoção... descobri que tudo o que seriam as minhas esperanças se confirmaram. E me deixaram a salivar!

 

"Joker" é tudo o que  caminha em linha recta para se converter num elemento de culto. Todos os padrões estão presentes, até na forma frontal com que se afasta das fábulas entre heróis e vilões. Cada imagem, cada ângulo desta obra-prima, existe para deixar o universo inteiro aberto ao talento genial de Joaquin Phoenix. A sua arte corporal é humilhante, exímia na demonstração  de quem primeiro caminha curvo e humilhado e depois, erecto e seguro do que vai acontecer. As suas transformações faciais e gargalhadas emocionais não são o reflexo dos seus olhos,  dois colossos de gelo inóspito.

 

"Joker" é uma viagem com principio, meio e fim. Uma arrepiante imagem da transformação onde se instala, com toda a sua pompa, o arquétipo da Sombra; negro e desprovido de lições morais; realista e por isso terrível, porque coloca o acento na ideia de que sim, é possível a qualquer um de nós a transformação pela Sombra. Cada pequena personagem que vagueia na rota do colosso planetário Phoenix é também ela  um pequeno monstro sombrio, a ser absorvida numa atmosfera decadente.

 

A falsa noção de tendência política, defesa das armas ou qualquer outra aberração que ouse afastar este "Senhor" do óscar é perfeitamente respondida no próprio filme: quando se pergunta ao palhaço se a sua atitude tem algum pendor de afirmação política,  este responde secamente que não. Que não acredita em nada. E é neste ponto que o filme se torna tão terrivelmente brilhante e assustador - "Joker" é um ensaio absoluto de niilismo agudo à prova de tudo: Uma negação de tudo! Seja político, seja económico e principalmente, seja social. Uma visão sem romantismo estúpido da potência do caos derramado.

 

Tudo pela mão de um senhor num filme sem grandes efeitos porque quando se é realmente genial deixa de existir espaço para outras estrelas. Negro. Violento. Belo.

 

 

Desafio de " TenTonPredator" para o caderno dos Lamentos...  lamentavelmente, tarde e a péssimas horas!

( 1 )

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" Creio que o pior defeito da raça humana não é o orgulho. Poderia ficar semanas seguidas perdido nas noções do orgulho, enquanto pensava na nossa mesquinha capacidade para a idiotice mais copiosa, onde tudo o que fazemos se revela uma abundante merda - insensata e perfeitamente inútil. Desnecessária.

 

Meu caro, nada é mais revelador da nossa condição mentecapta do que o lamento e chamamento da auto piedade, com toda a sinceridade! Pouco consegue ser mais pausadamente revelador do que este banhar intenso na comiseração mais critica; na capacidade ignorante de destruir atmosferas e sonhos, pela mera faculdade de possuir suficiente penúria intelectual e usar a lástima como suporte vital.

 

Saberás ao que venho. Claro.

 

E mesmo assim apenas reservo para mim a insignificância dos meus instrumentos de corte; servem apenas para riscar a superfície sempre tão sistematicamente polida deste lamentar: Mesmo adivinhando que este é um defeito de tudo e de todos, que se torna insustentável a narrativa de quem muito simplesmente se recusa a afastar o véu e escolher outra táctica, não consigo deixar de pensar naquele cego a quem nunca ouvi uma miserável palavra que fosse sobre a puta da sua sorte; nem mesmo quando  esfrega as canelas por mais uma pancada no sacana do móvel da esquina. 

 

Poderia citar-te outros tantos defeitos que tenho em mim, meu caro. Mas a abundância de ódio que tenho desta arte de piedade mesquinha e tortura que é para mim esta banalidade onde tudo serve para lamentar a triste condição pessoal, cega-me! Tudo serve para cimentar esta fraqueza. Tudo. Desde a nossa condição política, na nossa incapacidade de seguir um labirinto que não seja uma imitação de outros labirintos desenhados por outros, até ao jejum imbecil da criatura que se acha a mais desgraçada do Universo. Tudo!

 

Meu caro, nem sequer se trata dos que se lamentam - eu lamento-me todos os santos dias como uma segunda natureza. Não. O lugar está reservado ao mártir que respira na ilusão de quem carrega o fardo da auto piedade. Não o do orgulho.

 

Esse néctar dos Deuses." 

 

 

 

 

Só muito tarde entendi algumas das suas paixões. Sempre me pareceu apaixonado - demasiadas vezes pelas preciosidades erradas. Tal como eu. Por isso entendi. Talvez demasiado tarde. Talvez fosse necessária a distância da morte para compreender.

 

Decidi apaixonar-me por outras notas que se tornaram reflexos do que sou. Contra a sua vontade; ainda que secretamente admirando - sei disso por estes dias. Sombras escuras acocoradas na franja mais extrema onde inevitavelmente nascem os monstros. Se calhar nem sequer decidi. Talvez afinal existam escarpas que nos pertencem e nem sempre terminem com as luzes do sol.

 

Mas não deixa de subsistir um sabor amargo durante estas minhas noites de insónia, que vou palmilhando entre os seus discos privados aprendendo pelos seus passos, como soa o Blues que encharca a alma. Uma  estranha besta que vai estrangulando lentamente as emoções, creio apenas assim conseguir definir a torrente de sentimentos  que vão ardendo.

 

O portento de finalmente conseguir assimilar a estranha melancolia que o envolvia sempre que escutava as notas que teciam a sua tristeza - porque afinal reconheço o Blues nos seus olhos cerrados e no corpo abandonado. Reconheço a paixão de quem me professou as primeiras notas na velha guitarra. Sempre com a aquela entoação na necessidade de "ver com a alma".

 

A manifestação mais crua da tristeza batida pelas notas desta música seria tudo o que se torna necessário como perfeito epitáfio, para revelar a solidão que muitas vezes morava dentro da sua alma. Mesmo que também fosse a expressão mais preciosa do seu amor pela mulher que me viu nascer. Intenso e demasiadas vezes perigosamente cego.

 

Para mim, enquanto vou desfiando memórias, este é o meu Blues - canções que me rasgam o pensamento e relembram o que são, afinal, as tardes longas de Outono: entardecer de horas cor de ouro quando a sua companhia envolvia a minha inocência.

 

Entre o seu café negro e as minhas bolachas de morango e canela.

 

Sinto-lhe a falta.






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