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Eu ...
(999)
Todos nós vivemos um Inferno pessoal. Refugiados na inocência ilusória de pensar como se torna importante esconder a angústia, a indiferença mais absurda perante a nossa falta de beleza e o mais subtil dos reconhecimentos, a mais clara das noções. Sofrer é quase uma lei cósmica protegida pela iniquidade de um qualquer deus que apenas existe para o justificar. Por dentro as nossas crianças são fantasmas - aquelas pequenas cobiças que imaginamos pertencerem à nossa beleza interior, ao virtuoso acto de queremos ser belos e encantados. A uma extrema necessidade de pertencer a algo. E comandar algo.
Não existe realmente calor num Inferno pessoal.
E porque haveria de ser assim?
O meu Inferno alimenta-se da minha falta de beleza. Sobrevive em mim nos caminhos que escolhi. Estende a mão aberta para me erguer do solo porque aprendi a aceitar o que sou. Caminhos que sempre escolhi.
E é sempre estranha esta sensação que surge - primeiro na ponta dos dedos, sem barulhos. Um reconhecimento tácito de que sou violento comigo próprio, raspa suavemente na porta da realidade. Depois um segredo, sussurrado ao ouvido atento transforma os dias de falta de beleza, incapacidade de rir em todos os momentos, num labirinto. Creio que é por estes labirintos que percebo insignificâncias ensopadas nas pequenas glórias de mais uma vitória.
Deixei de contar quantas foram as vezes em que promessas foram quebradas. Como se tornou preciosa para mim a palavra confiança. Quantas foram as vezes que cimentei um certo Inferno pessoal - que é sempre minha culpa. É sempre culpa nossa.
Ao ponto de aceitar e até aprimorar a arte de entender os poucos que me olham com olhos de beleza. Inexplicavelmente, acho que se trata de aprender a conviver com demónios pessoais.
Iluminados por estes dias com o sonho de que estão domados. Amansados na ilusão de que sou importante para alguém.
A Luz de outros Dias...
...
Não me esqueço dos dias debaixo daquela luz nas manhãs de sol. Das palavras e frases enquanto me banho no cinzento chumbo que jorra pela abóbada, como se o próprio céu estivesse presente e em escuta. Existe um cheiro a flores que não identifico, mas sei que os pequenos bolos castanhos que engordam o frasco de vidro transparente são de canela. E chocolate fino. E que é sabido como gosto de os devorar com o café. E que, mesmo contra a sua vontade que sempre se pauta por um sorriso cúmplice, partilho metades com o cão que se junta a mim silencioso - como dois companheiros de insensatez.
São os olhos como gemas brancas que transportam a reverência do silêncio. Revelam como a alma consegue ser solene por momentos. Apenas em fugazes instantes, porque depois assento os pés na aridez terrestre e acompanho o piano de Rachmaninoff, como uma poção de salvamento. Como se a solenidade fosse coisa de deuses e outras criaturas de mito.
Li algumas das tuas palavras escritas. Em voz serena e a deixar escutar a chuva que explodia nos vidros grossos das janelas da sala de livros. Não tudo o que escreves. Apenas traços que prefiro e escolho. Egoísta. Não são palavras carentes de elogios e são, demasiadas vezes, atiradas como sementes para alimento. Para alguém que não a mim ou a quem me escuta. Mas escolho as tuas frases como caminhos de sombra - porque afinal é isso que me interessa. Nestes momentos. Sombras. Os teus multiversos mais cinzentos.
São as tardes feitas de momentos breves como essa solenidade transparente. Palavras imaginadas no sentimento tinto e amargo de quem as ouve com outros sinais - olhos cor de neve que não precisam de Tolstói para sonhar alto.
Gosto de purgar a tua escrita naqueles momentos. Transformar o que permanece em alimento apenas saboreado pelo silêncio de quem a escuta.
Enquanto bebo mais um trago de café. Enquanto mastigo mais uma metade de bolo de canela. Enquanto, aos meus pés, o cão enorme antecipa a sua parte do prazer.