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Catarse ...

 

Algumas palavras são como antigas fermentações mágicas. Por vezes, com a raridade do que é precioso e único, é possível ter um breve lampejo do latejar de quem escreve pensando. Um clarão momentâneo! Como se, naquele exato segundo, o reconhecimento, com as  duas mãos, virasse a nossa atenção para as palavras escritas. Palavras entre muitas outras palavras que se desviam de milhares de frases que nada dizem, iguais entre si.

Eu gosto de vampirizar estas singularidades como quem saboreia a emoção da revelação. É o pressentir de uma mão que se estende para mim e me oferece outros olhos, odores misteriosos e sons só possíveis de escutar enquanto vou viajando pela arquitetura das  frases. Consigo perfeitamente sentar-me ao lado de quem escreve e sentir a aragem dos dias ventosos; ou então caminhar com o calor do Sol; se calhar ajustar a mente infatigável a pormenores que me rodeiam, como um fantasma silencioso.

Existe uma centelha intensa na minha vontade de viajar. Continuo a viajar fisicamente porque sei que por muito que sonhe jamais me dará o mesmo prazer do viajante de muitos passos, mas o néctar de ler excertos de outras vidas e neles me reconhecer gera aquela embriaguez apenas reservada a uma rara elite de vampiros. Permito ser arrastado sem receio. Intruso sem culpa. Criatura treinada na arte dos que se baloiçam gentilmente na cadeira dos momentos esquivos em que pode realmente descansar a mente e o corpo.

Raro. Estranhamente embriagado. Aquele último e breve momento em que a mão estendida se afasta e consigo aquele muito suave sorriso  de reconhecimento.

Raro. Precioso. Necessário ao monstro.

 

 

 

 

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Obséquio a memórias perdidas ...

 

Para o Pessimista as memórias são, por vezes, um passo de afastamento do abismo. Aqueles momentos de hesitação que salvam o suicida, afastando-o do niilismo absoluto. A necessidade e pensamento que elevam ainda alguma crença de que algo é possível; mesmo que pouco, ainda é possível.

A memória de uma criatura pequena e demasiado frágil que se recusa a ficar imóvel mesmo que sem forças. É cristalino para o Pessimista, que ela não resistirá, será incapaz de erguer o corpo magro dos lençóis e caminhar dois passos seguidos. O Pessimista acredita no fim. Não na redenção dos que se forçam a não ceder. 

E custa ao Pessimista um largo oceano da sua alma que a pequena criatura queira, teimosamente, passar um fino e negro braço em volta do seu, para um pequeno passeio pelo jardim, entre bancos de madeira e árvores que se agitam suavemente nas manhãs amenas do Verão. 

Causa um petrificante rombo na muralha Pessimista conseguir dar aqueles passos lentos e receosos, enquanto escuta as pequenas palavras saídas de lábios gretados. Porque o que custa realmente admitir ao Pessimista veterano de muitas batalhas é a sua própria rendição e humilhante punição de humildade recebida. Mesmo que a pequena criatura consiga caminhar até ao pequeno jardim e sentir o ar da manhã, ainda que o caminho de volta seja feito, invariavelmente, com o seu corpo nos braços do Pessimista, o som daquele sorrir é o que mais próximo encontra para designar, ou tentar desesperadamente, aceitar que um qualquer Deus existe. Que tenha de dobrar um joelho na terra, inclinar a cabeça em submissão, perante quem nos castiga a resistência e o tão precioso Orgulho.

Que talvez a salvação habite na força inexplicável dos sobreviventes. Em memórias que não morrem. Nunca.

 

 

 

Demónios ...

 

A esperança é também um velho demónio.

 

Não existe melhor ponte para conhecer as suas margens do que o espelho dos olhos. Não é possível esconder dos olhos a esperança do verdadeiro sonhador, aquele que permanece num constante estado de perdição e ausência. Como se sonhar fosse alimento para  iluminar labirintos escuros.

Lembro-me deste velho demónio nos olhos de duas crianças deitadas de costas em camas separadas. Recordo-me dos motivos para estarem deitadas de costas e do que se alimentava dentro dos seus corpos. Ia deixando que lavrasse em mim a esperança de que a Mãe Natureza estivesse um pouco senil, esquecendo as crianças, apagando o sofrimento e o torpor da derrota.

Não. Porque é demasiado cabra e possessiva dos seus!

Os olhos são espelhos da alma. Mesmo do cego que tudo parece pressentir com dedos, odores e ruídos. Mas nas duas crianças  estavam cercados por tons negros e sombras. O brilho de uns e outros ficará gravado para sempre no meu catecismo de derrota pessoal.

Foi possível, cruelmente possível, vislumbrar o fim nos olhos de ambas crianças: porque numa raiava um brilho intenso de vontade de sobreviver, mesmo num corpo infantil magro e conhecedor do sabor da dor e limites humanos; na outra, deitada na mesma posição, os olhos estavam abertos, mas restava apenas uma pequena chama de esperança e o seu brilho era apenas uma muito pequena luz para uma tempestade que se aproximava. Sem a perdição dos que sonham alto. Cada vez que olhava para aquele rosto só conseguia sentir a minha própria morte.

Cinco dias depois a cama estava vazia e branca como farinha.

Tanto ódio e frustração sentida nunca deixou de me afogar e envenenar os pensamentos. Que um Universo inteiro se consiga detalhar nos olhos onde brilha a esperança, para depois mergulhar num buraco negro.

A minha impotência surgiu por esquissos raros e quase desconhecidos para mim naqueles tempos: senti que forçosamente e contra a minha mais férrea vontade, havia um liquido morno que escorria dos meus olhos para a face fria e com barba de várias semanas.

 

 

 

 

 

 

Existe uma distância colossal entre a miséria pessoal e a coletiva. Uma outra galáxia e órbita entre o orgulho pessoal e muito próprio, e o prazer do encanto amoroso pelo coletivo. Em dias como estes, quando todos os pensamentos parecem apenas oferecer generosamente atenção para as ações de um farsante que julga ser o rei do mundo, mal acompanhado por um velhote burlesco e corredor, onde se vão pontuando, como quem come mais uma pipoca do saco, as últimas figuras da pandemia, é quase grotesca a nossa capacidade de esquecer outros. Uma grande maioria silenciosa que continua a morrer longe  dos hospitais e da ordem para circular pela direita, usar desinfetante nas manápulas e respirar para dentro.

A visão de túnel é um demónio sedento de atenção e deixam de existir outras doenças. É como se este não fosse um mundo racional; como se a importância de perseguir outras, novas ideias, nada mais fosse do que um suave agastamento que depressa se atira para trás, em nome da última tirada imbecil de um ranhoso de torpe cabeleira.

Tomo ainda notas nesta margem que cultivo na minha consciência - os meus demónios não são os teus; nunca o serão. Mas recuso-me a aceitar que a minha individualidade, a mais preciosa das minhas posses, seja intimada a aceitar a derrota! Não aceito deixar que os meus olhos se tornem negros pela paranoia do confinamento, enquanto vou questionando a minha sanidade e quanto mais irei aguentar estar fechado a olhar para a televisão.

A Individualidade é uma mãe sinistra, muitas vezes implacável, mas intensamente generosa nos olhos que se abrem à imbecilidade que é tão nossa! Tão humana.

 A miséria pessoal não se chama covid 19. Nem Trump ou Biden. Muito menos se compadece com a nossa fraca capacidade de resistir a táticas de rebanho. Ironicamente, é quase poético o nosso desapego a uma verdade tão evidente. Existem misérias pessoais e purgatórios desnivelados por tumores sem tratamento, velhice abandonada e solidão depressiva que nunca deixaram de habitar em nós. O desespero não tem nomes de pandemia ou de políticos decadentes. Mas tem cor. E para mim é vermelho como a minha raiva e o meu desprezo pelo abandono e esquecimento. 

Este pensamento vindo de um individualista egoísta que deixou de acreditar em democracias chega a ser caricato. Amargo mas caricato. E deliciosamente irónico.

 




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