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Imagine-se um espírito solitário, porque é sempre assim no principio: solidão.
Imagine-se que desde muito cedo, após os primeiro passos e consciência tangível de fragilidades, o pensamento questiona a prematura fraqueza física. Porque razão os movimentos são tão ásperos no seu mais profundo cansaço; porque se deveria elogiar o vigor e apenas se procuram mais métodos para facilitar os passos de quem quer apenas mover-se.
Imagine-se que o espírito envelhece nesta condição humana: endurecido pela batalha de quem, todos dias, consegue pequenos vislumbres de inferno pessoal nos vinte cinco minutos de caminhar tortuoso entre um quarto e uma banheira; que este espírito não se torna mais virtuoso na descoberta de respostas, antes ermita de questões sem limite.
Imagine-se que a salvação é um soletrar sem melodia sobre a necessidade inadiável de uma cadeira de rodas, porque o corpo não suporta mais tensão e os músculos são o espelho de um Inverno que nunca terminará. Calculando com a precisão de um velho artesão a falta de esperança nos olhos do cientista que parece rendido ao destino do espírito em frente.
E se, como último fôlego de quem já mal caminha, a ideia fosse aquele suspiro necessário para gastar as reservas finais na viagem a um Norte mítico e sonhado? E quando já nada mais houvesse, morrer?
Imagine-se os passos dolorosos e curvos do espírito que batalha para mais um pouco de caminho na neve que escorre densa e branca, e decide entrar pelos portões onde soava o trovejar do ferro fundido, para conseguir descansar uns momentos.
Foram olhos azuis de gigantes nórdicos que brilharam, cabeças loiras e longas barbas claras, que se aproximaram do espírito de olhos verdes prostrado e derrotado.
Imagine-se que o espírito jamais esquecerá quem o ergueu do pó com mãos rudes e braços fortes. Que sempre se recusará a esquecer as horas, os dias, os meses de esforço para fortalecer um corpo condenado, enquanto a mente reservará para si mesma a desilusão, o lamento da rendição, a reverência por quem, desde aquela noite de Inverno, nunca o abandonou. Ou abandonará.
O espírito cresceu e quer agora ser também gigante mesmo nos dias mais próximos do Abismo, enquanto vai aceitando o calor do caldo primordial de quem todos os dias se torna mais forte e consegue agora caminhar na condição ambicionada - erecto e de queixo levantado.
Mesmo que vá marcando o corpo com traços de lembrança porque a mente é traiçoeira. Ainda que tema ser um sonho este.
Poder existir pela sua decisão.
Michael Ackerman
A capacidade de sentir saudades é uma das maiores tragédias humanas. Sempre dolorosa, mesmo que, supostamente, alimentada por pensamentos agradáveis. Raramente misericordiosa. Frequentemente rancorosa.
Quando se misturam saudades com fugazes momentos de nostalgia vamos queimando recordações, morrendo um pouco de cada vez, suportando a promessa nunca cumprida, aspirando um pouco mais.
Recordo-me das saudades que me queimaram tão vorazmente nos dias em que a voz sinuosa não segredava a palavra "amo-te". A sua ausência é um labirinto que se precipita num vácuo indescritível para criaturas como eu. Como se torna possível uma mera descrição de um estado emocional, quando ausente, conter em si uma saudade tão latejante que se torna fisicamente dolorosa, nunca conseguirei entender. Como se consegue preencher o espaço vazio da fragilidade nascida desta necessidade de sentir que pertenço a algo sem me sentir ameaçado pela incredulidade, todos os dias me consome. Devora lentamente. Principalmente quando a noite se estende sem a presença de quem sei, seguramente, conseguir dar-me abrigo.
Mas talvez a saudade seja também o vigor daqueles que nunca ficarão realmente sós. Talvez seja mais um caminho seguro para voltar à casa distante, na companhia da nostalgia do sussurrar de quem acredita em mim.
Talvez a tragédia da saudade seja o preço que pago a quem ainda hoje acredita em mim.
Ainda que pague dolorosamente esse preço para escutar a melodia "amo-te".
“Uma pessoa não é iluminada por imaginar figuras de luz, mas por estar ciente da escuridão.” -Carl Jung
Morfeu acompanha os meus dias há anos. Desde aquele momento distante em que descia a calçada da Graça debaixo de chuva intensa, solitário e creio que próximo do desespero absoluto; talvez porque as estrelas estivessem alinhadas - já me disseram ao ouvido -, ao ver aquela silhueta negra encharcada e encolhida de frio, quase dissolvida entre a parede suja e o enorme caixote de lixo, perante a mais absoluta indiferença dos carros que que passavam e outras pessoas demasiado apressadas, eu tenha conseguido respirar um outro desespero. Algo que imaginava ser impossível.
Recordo-me claramente de atravessar a estrada a correr; lembro-me da silhueta encharcada se tornar ainda mais pequena, como que antecipando um golpe de dor, do seu gemido enquanto a agarrava entre os dedos de uma mão e a colocava cuidadosamente dentro do bolso aquecido do meu casaco.
Existe um preencher de vazio portentoso na mera decisão de esquecer o nosso próprio desespero pessoal, quando entramos em casa como desajeitados palhaços, enquanto tentamos retirar os tremores do corpo felino com a água morna na banheira - como se algo demasiado importante para nós fosse acontecer. Não na caridade do gesto. Não na piedade que me varreu cruelmente.
Não. Foi algo que apenas descobri com a passagem dos anos.
Morfeu, porque ao dormir junto a mim em momentos de navegação pelo meio de destroços, consegui fechar os olhos e sonhar.
Essencial. Vital.
Morfeu "ensinou-me" o fascínio pela escuridão. Por todos os minutos eternos em que caia na cama exausto, incapaz de encontrar força para me suster, ele deitava-se ao meu lado e eu conseguia ver, claramente, o brilho verde dos seus olhos no escuro. O passear exímio por cima do meu peito quando eu nada conseguia ver.
Existe uma beleza fundamental na mais extrema escuridão. No preceito imutável e intransponível da ideia que quando a luz terminar esta escuridão permanecerá. Estranho mas reconfortante. Como se fosse um estranho sortilégio revelado por um gato negro que, arrogantemente, eu pensei estar salvar.
Acabamos por aceitar a nossa natureza de sombras sem medos, tentado imitar um pequeno Deus na sua amizade com a escuridão. Pela sua mera presença reconfortamos as nossas falhas e fragilidades físicas.
Morfeu é um companheiro singular. Sempre comigo mas não sou o seu amo. Genuinamente e humildemente me assombra porque cuida de mim, pressentindo quando algo se carrega demasiadamente de negro.
Morfeu foi o meu porto em todas as cartas que nunca escrevi enquanto vagueava entre as minhas sombras. Aqueles primeiros raios de conhecimento solitário e longe das pessoas. A constatação visceral, inequívoca, do meu amor incondicional a sombras e escuridão como caminho que decidi escolher, tentando pateticamente caminhar sem tropeçar.
Ansiando vestir a pele do pequeno Deus negro.
Talvez eu esteja errado. Talvez.
Mas porque amo esta escuridão pessoal eu nado entre estrelas.
Assim sei que morrei em paz.
Chega-me.