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Não é fácil para mim esquecer-me do virtuosismo que alimenta a chama de certas criaturas. Pela necessidade urgente da sua presença. Pela sua capacidade de incendiar a minha consciência. Incendiando os meus pensamentos e quando pressinto a conclusão e solução do seu virtuosismo, esmaga-me os sentidos, deixando-me incapaz. Estupidamente frágil.
Ironia das ironias, a necessidade de outro para caminhar. Um estranho artefacto, este, que comprime as memórias e me vai deleitando entre as horas de insónia. Estranha poção, esta, que alimenta o mais estranho cogitar, quando a hora deveria ser de descanso, e ainda assim, pacifica os sentidos.
É estranha a sua virtude. Capaz de se impor em mim pela força do seu rir, envolvendo-me em encantos que antes pensava conhecer, quando imaginava imunidade a um abraço, a um sussurrar que se tornou único ao meu escutar.
É neste saciar animalesco de sentidos que residem as suas virtudes. Na minha urgência que fique em mim. Que me aperte contra si e envolva os meus pensamentos.
E se estiver no seu virtuosismo a salvação?
Posso até sonhar com a redenção?
Eu ...
Norte ...
(999)
Quando terá sido a última vez que um estranho, olhando para mim, não tenha permanecido com aquele sentimento que persiste após observar algo bizarro? Como se procurasse evitar-me e ao mesmo tempo, cedendo à tentação de ser polido e educado, tudo fizesse para disfarçar o indisfarçável. São uma grande maioria: das poucas pessoas com quem devo cruzar-me e conviver. Talvez assim sejam estes os momentos em que melhor consigo perceber a minha dificuldade em baixar defesas e desconstruir muros.
Porque motivo não me orgulho deste facto é um reflexo intensamente cristalino de uma realidade que aprendi, porque tem de ser vivida para ser aprendida, a sustentar, sabendo que me é impossível preencher as expectativas que parecem nascer a um ritmo obsceno nas pessoas que me observam pela primeira vez. Sistematicamente presentes.
Porque razão jamais cederei à tentação de acomodar em mim as dissipações mais básicas, onde temos, necessariamente, de padronizar o que somos para que outros aceitem um pingo da nossa integridade pessoal, está escrito em letras pessoais e escritas em sangue no meu próprio catecismo - não o farei porque me reconheço incapaz de ceder as minhas emoções a estas pessoas.
Porque não existem espaços amplos e soalheiros em suficiente quantidade em mim para desperdiçar com outros que não um número restrito de criaturas; porque sei das minhas limitações e incapacidade de abrir os braços a toda a gente.
Sei deste egoísmo que me leva à tentação de apenas suportar aqueles que me olham com um brilho de reconhecimento nos olhos.
Sei.
Porque me apaixono intensamente por poucos - os que me reconhecem nos momentos em que bailam nos olhos as melodias do crepúsculo mais sereno. E os que nunca deixaram de verdadeiramente amar-me quando brilham nos meus olhos as imprudências da minhas sombras e do meu cismar.
São estes poucos, tão poucos, que realmente me conhecem - despido e sem defesas.
São os que realmente valem o meu amor egoísta e apaixonado.
A insónia, quando se esquece de si própria, deixa cair pequenas migalhas que se convertem em fortuna ...
Consigo deitar-me no centro da cama fresca. Como um náufrago entre as margens da rebentação das ondas e a salvação da terra firme, forçar a minha imobilidade, virado para o tecto de braços e pernas abertas e esticadas; a respiração acaba por serenar e converter-se numa suave aragem; os batimentos cardíacos batem, ainda pesados, ao ritmo do cansaço extremo.
Quando a insónia se esquece, talvez finalmente convencida que não conseguirei resistir a uma consciência forçada, o quarto cerrado de escuridão, sem uma nesga de luz, onde apenas escuto o meu próprio respirar, cresce sem limites. Creio que este estado me aproxima perigosamente de uma semi-morte, quando os músculos se apresentam dolorosamente reais, e os olhos recusam a tarefa de ver, ficarem vigilantes.
Não conseguir afastar este torpor final consegue apenas ser descrito por aqueles que conhecem intimamente a tirania da insónia e as suas parcas migalhas. Alimento que não chega para sustento dos bons sonhos porque o que eu desejo é um sono tão profundo que qualquer réstia de sonhar, divagar ou recordar se esfume num vazio de esquecimento.
Talvez esta seja uma forma de saber morrer em cada momento que consigo adormecer profundamente, longe das garras da insónia. Talvez sejam necessárias as correntes do cansaço mais debilitante para que permaneça preso a uma cama, com a fadiga a esvair-se, deixando-me penosamente frágil na penumbra; sabendo que, por horas, morrerei para o mundo, vagueando na escuridão inconsciente. Talvez por isso tenha deixado de a temer, abraçando-a muitas vezes - a essa escuridão.
E se for realmente banhado nessa fortuna, consigo ainda ouvir um outro respirar distante.
E antes de partir até consigo sentir o conforto do cetim de um último toque e palavra - quase imperceptíveis.
O sabor da melancolia é maravilhoso. É como saborear a própria mente.
A nossa melancolia é uma companheira infatigável; em todos os momentos em que surge, estranhamente confundida com um qualquer desterro da mente inerte pela ideia de tristeza, se conseguir ultrapassar essa barreira, sei das suas imensas propriedades curativas. Sei como se pode converter em sabores, naqueles dias em que a mera ideia de olhar para algo ou alguém, fará surgir um outro labirinto - uma outra forma de caminhar.
Mas é na margem de outras melancolias que gosto de pernoitar; nas vezes em que os meus passos silenciosos, caminham por outras sombras. Creio que estas são melancolias que se desfrutam em solidão, quase egoísta, porque saltamos em escarpas, muralhas escorregadias e precipitadas, onde falhar nos gestos se perturbam os pensamentos e se acendem as luzes, e as sombras se voltam a esconder.
Ah!
Mas é aqui que gosto de me baloiçar! Entre a luz do dia que sempre parece atrair o sorriso e as palavras do positivismo mais urgente, e as sombras que dançam naquela melancolia nocturna, quando estamos realmente frementes pelo seu usurpar. É neste estranho e antigo caldo que se cozinham os sabores das minhas alquimias preferidas.
Onde prefiro ser um fantasma entre melancolias. Sentir-lhes o sabor. Conhecedor do que é apenas melancolia de todos os dias, enquanto vou apurando o gosto intensamente amargo de outras claridades a meia-luz.
Ou sentindo o néctar doce daquela rara melancolia, desenhada a esquissos precisos, como silhuetas silenciosas.
Aqui bem mais raras e por isso muito mais valiosas para uma criatura como eu.
Dedicado ...
Aceitar a Solidão é uma virtude que se aprende, enquanto vamos cedendo à litania poética que lhe confere todos os sintomas de uma doença benigna. Desfrutar da Solidão é um teste de resistência para criaturas gregárias como nós; nunca será um poiso de dissertação grandiloquente onde estar só é um feito homérico, orgulhosamente assumido como uma necessidade.
A criatura que clama aos ventos estar só e orgulhosamente só nunca aceitará a verdadeira solidão. Não apenas a ausência de gente que transforma os dias nos ciclos de repetição que levem ao estado anímico dos loucos. Porque mesmo esta falta de gente se aprende aceitar; a viver sem gente e até a questionar o instinto que nos diz ser bem melhor estar assim.
Não.
Não escrevo sobre a solidão do poeta néscio que imagina a sua "solidão". Nem sequer do sentimentalismo dos que acham viver em solidão só porque estão isolados num Universo de gentes.
Escrevo sobre as virtudes da sobrevivência. São paixões minhas.
Escrevo porque não somos todos iguais. Sobreviver não tem a mesma noção em quem julga estar só e não conseguir existir sem o beijo dos filhos; a solidão não é definida pelas margens do "deixa-me em paz! prefiro estar só!"; não é aceite como um estado de beatitude a que devemos a nossa devoção.
Isto não é Solidão. É apenas a ladainha do romântico.
O verdadeiro sobrevivente é um silogismo de experiência adquirida; como um veterano combatente. Sabe, em todas as fibras, dos paradigmas do isolamento venenoso. Subsiste num retiro ermo onde estar só não é apenas físico. Resiste à mão que comprime o peito e aperta o coração. Insiste na negação de culpa porque estar só nem sempre é uma escolha; é por vezes um meio de sobreviver.
O hábito da Solidão não é um estado de alma. Tem de ser imposto com uma força férrea, tornando-se numa companhia tantas vezes necessária.
Mas na maior parte dos dias é uma verdade constritora realmente reconhecida por poucos loucos.
Uma escuridão com um regresso paulatinamente mais doloroso e difícil.
"Ninguém venceu a obsessão da morte pela lucidez e pelo
conhecimento. Não existia nenhum argumento contra ela. Ela não
tem do seu lado a eternidade? Só a vida tem que defender-se sem
trégua; a morte já nasceu vitoriosa. E como não vai ser vitoriosa se o
nada é seu pai e o horror, a sua mãe? Só podemos vencer a morte
desgastando-a. A penetrante obsessão que sentimos por ela
desgasta - nos e, por sua vez, se desgasta" (EMIL CIORAN)
(999)
O pesadelo está presente, resguardado num recinto escuro da mente; alerta e nunca dorme. Sistematicamente surdo às minhas tentativas para que adormeça, e finalmente se esfume no pó. Nunca mais, desde aqueles minutos iniciais de conhecimento e diagnóstico, fechou os olhos, por segundos que sejam, a uma vigia de surdina cinicamente empoleirada nos meus ombros.
Testemunho a sua existência com a resignação dos que tantas vezes se atiram a um muro sólido, na esperança (estupidamente!) de não esmagar o crânio, sempre que ultrapasso as portas giratórias, como olhos imensos de um mau sonho, na sua companhia, para mais um examinar minucioso.
Odeio portas giratórias com o vigor dos assassinos mais sádicos. Abomino paredes brancas, falsas profetas da ideia imbecil de repouso e pacificação.
A guerreira cresceu muito. Já não necessita de sair pelos seus pés e regressar ao meu colo por exaustão. Mas até a sua lendária força de espírito oscila quando atravessamos aquele portal de recordações.
Sei que sim.
Atravessa o seu braço no meu. Como suporte. E aperta. Pressinto-lhe uma força física que me surpreende sempre!
Somos reconhecidos. Tento encolher toda a minha massa corporal numa bola inútil. Desço os olhos para o chão. Mas sei que o cabelo puxado para trás das orelhas, o casaco negro e longo e as botas pesadas da mesma cor, tornam inúteis as minhas dissertações sobre entradas e saídas discretas.
Ela também não consegue. Está como eu - alta mas mais sinuosa. O cabelo está mais longo que o meu. Mais esfuziante. Menos "castanho lixo" como gosta de me dizer enquanto olha para mim.
O vestido longo que cobre o seu corpo, o rosto branco e delicado e os olhos de um verde mais escuro que os meus, tornam pois, impossível evitar o reconhecimento. Principalmente pelos que testemunharam o antes e o depois.
Abismos entre anos.
Nestes minutos, enquanto corre livremente o pesadelo, aguardamos mais um resultado e a sua sentença. Vou deixando que a razão se cale, persistindo teimosamente na ideia que, para ela, ainda é demasiado cedo para a Morte. Vou mantendo uma serena euforia pela sua extrema juventude. Mordo todos os meus conceitos para que esta juventude e suprema beleza resista.
Exijo morrer antes. Desde o principio que foi assim. E nunca mudará.
Entramos na pequena sala. Odiosamente branca. Eu e ela. Veteranos de mil batalhas em cinzas. No outro lado da mesa uma voz feminina e mascarada pergunta algo e apenas oiço a sua resposta firme com um sorriso sonoro - " Sim Dra. é mesmo a cor dos olhos dele!"; o surrealismo deste breve trecho de palavras entre máscaras e saudações banais, torna este pesadelo numa outra Besta; como que revigorado e agora dotado de um sinistro sentido de humor.
Reparo, como nas outras sentenças, que a minha respiração está cortada. Reparo que se assim não fosse pura e simplesmente estrangularia a pessoa do outro lado da mesa: Pela perda de tempo e conclusão.
Noto que o pesadelo se alonga. Que os meus ouvidos crescem e que estou num limiar de exaustão que apenas se conseguirá desprender quando ouvir o que exijo escutar.
- " Está óptima! Não poderia estar melhor! Perfeita!", do outro lado da mesa.
Na maldita sala branca.
E respiro então. O coração regressa ao seu passeio de rotina. Os pensamentos alinham-se. Os ombros erguem-se e parecem deixar a senhora desconfortável. Acabo por sorrir debaixo da máscara, secretamente divertido com o seu embaraço.
Quando, mais uma vez, saímos pelas portas giratórias, toneladas retiradas de ambos, caminhamos de braço dado, ela rindo, enquanto sussurra as palavras da sua canção preferida, que eu fazia soar nos auscultadores enquanto ela permanecia deitada, exausta de olhos vermelhos, e que glorifica tudo o que ela sempre será: Guerreira sem par de virtudes intocáveis. Sabendo o que venceu. Sabendo que quem ousar macular a sua integridade terá uma morte lenta e dolorosa.
Garantidamente.
E eu uma vez mais consigo afastar o pesadelo para um outro labirinto até a um próximo confronto.
A pacificação nasce de novo com a partilha do seu pequeno prazer de eleição ...
Três bolas gigantes de gelado de chocolate com molho de café a escorrer em cascata.
Pequeno troféu para o descanso da guerreira.