Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Gosto de me perder pelos caminhos das minhas viagens. Sempre me senti mais próximo da mim próprio, ciente da minha paixão interior, quando percorro expansões vastas; sinto-me enamorado por esta prisão interior, esta ânsia de não estar quieto. Este turbilhão inexplicável torna impossível para mim admirar a quietude do corpo para que o pensamento se eleve.
Estranho isso. Porque nunca deixarei de ser um caminhante, um viajante físico que não consegue imaginar uma viagem sem a distância. Como se nesse distanciar, nessa estranha virtude de afastamento, tudo se conjugue para esta necessidade de devorar o que é novo. E o que vejo é muitas vezes apenas um leve sossego para mim.
Já viajei por locais e vi criaturas em lágrimas sem razão aparente, enquanto se cruzavam comigo. Artistas enfurecidos rasgando folhas de papel ao sabor do vento, silenciados por uma qualquer demónio que vive dentro do peito. Aceitei a desilusão da descoberta: a beleza é frágil ainda que tirana.
Mas as minhas horas mais felizes pertencem ao comando dos instintos e na necessidade de caminhar por florestas longínquas. E como se torna possível uma paixão violenta por estas florestas!
Sempre me deixei embriagar pelos seus perfumes e escuridão. As florestas são mulheres possessivas e de uma beleza extrema; vastas, geladas e misteriosamente sombrias, mas benignas para os que passam silenciosos. São também como dançarinas quentes, sensuais, na humidade do seu ar que respiramos e no ondular das suas árvores.
Oiço segredos entre viajantes - dizem entre dentes cerrados, que os verdadeiros viajantes são caminhantes que juntaram o seu sangue ao de um Demónio obscuro e que o fim chegará pela exaustão, pela incapacidade de continuar um metro que seja.
Quero que seja assim. Sei que se não puder caminhar e viajar o meu pensamento irá render-se, entregando a minha alma a esse Demónio.
Thy Light
....
Eu quero recordar-me vezes sem conta. Obsessivo. Compulsivo. Da luz na escuridão a rasgar os meus olhos demasiado claros para a suportar - ainda assim - que se torna necessário para guardar algo precioso para mim. Porque não chegam apenas odores e gestos. Quero sentir o que sentes quando varres as cortinas da janela, e esplêndida, abres os vidros secos pelo sol da manhã. Aceitar, malicioso, antecipando, a luz a entrar insolente pelo quarto, rasgando, vencedora, a escuridão que insiste em ficar, esquecendo-se que já não é noite - que deve recolher-se nos meus recantos da memória.
É neste jogo de luz e escuro que me perco, num persistente exercício de futilidade, imaginando conseguir recordar-te assim: como se me fosse dado o privilegio de esticar o tempo um pouco mais e antes daqueles instantes, que vão encharcar tudo de uma luz tão brilhante. Engano meu, é claro.
Sei que, mais uma vez entre tantas outras vezes, voltarei a perder-me no caminho, naquela paixão que tenta a memória, para que se escrevam marcas, traços para um regresso. Voltar com passos atrás. Repetir pensamentos de impotência porque fico mudo.
Fico sempre incapaz. Mudo e silencioso.
E não devia.
Não devia.
Se assim permitires eu serei o teu desejo de Entropia - o imprevisto das tuas palavras - a medida do teu Caos. O teu último reflexo de um bailado num palco solitário. Deixa que seja eu a deixar esmorecer as luzes desse palco, com a tua vénia final.
Por vezes sou essa sombra reclinada sobre as tuas páginas em branco, aguardando ofertas e chaves e caminhos.
Outras noites sou o abrigo da tua escrita que assobia Invernos profanos, tempestade tranquila que fustiga a rocha. Vejo-te nua nas frases e consigo, por estranhas artes, ouvir o teu coração a bater devagar. Baixinho. Tímido.
Um e outro vou deixando os teus acentos esvoaçar nestes céus. Guardo apenas ciclos fugazes de brilho, faíscas que queimam o horizonte e se afundam lá muito acima entre as névoas.
Mas guardo nas minhas palavras os segredos de quem te viu no limiar de espinhos; quem te sentiu e ouviu nas sombras. Reservo-te para os meus estudos feitos de Invernos em Verões há muito esquecidos.
Sim.
Porque me atrevo a balançar sonhos pelo teu punho de escrita. Enquanto aqueço os pensamentos sem as fogueiras do Caos escuto o teu murmurar na varanda - uma serena melodia de notas que vais escrevendo como encantos perdidos para tantos - mas que eu reconheço como tuas singularidades.
A promessa cumprida é salvação. É uma casa e um porto que abriga o cínico desiludido. É como uma porta estreita, que por vezes boceja enfastiada, deixando que entre o descrente. E porque depressa se aborrecem, as promessas são aquele estranho, quase impossível canto sussurrado, encantando a criança ao sono, pelos sábios lábios de quem conhece a arte do embalo.
São muitos os que prometem. Poucos os que cumprem e ficam. Menos ainda, quem entrega a sua mão sem medo de monstros. Talvez porque existem promessas que são pactos forjados, tecidos por certezas que sempre me deixaram aquele deleite quase blasfemo, estranho, de libertação. Uma forma de iluminação que me força a vergar - a dobrar os joelhos rendido.
Sei muito de promessas não cumpridas nas noites em que os caminhos são percorridos sem os sons da certeza. Da mesa vazia na escuridão e de quantos batimentos são precisos para esquecer o prometido. Sei do silenciar de mais um discurso e da ausência apenas real porque os pensamentos nunca me atraiçoaram. Do sabor agreste que cobre a mais pequena das desilusões com melodias, notas, que vão assassinando lentamente. E é possível escutar o rasgar de mais uma promessa não cumprida. E é necessário espaço para mais uma cicatriz.
Reconhecer uma promessa verdadeira é sentir-lhe o sabor, a doce tentação de baixar os braços, por instantes seguir os seus caminhos e encantos. Chegar e sentir o caldo reconfortante de uma voz. Um odor. Um respirar. Uma palavra suave e apenas escutada por mim.
Talvez seja tão belo porque é raro. Talvez porque eu seja demasiado inacabado. Incapaz de me guiar por tantos sinais e luzes que me assustam.
Ou talvez porque gosto de prometer e cumprir.
Até ao fim.
Não sou capaz de escrever poemas. Não sei nada da exímia arte das palavras que tão próximas ficam de solicitar o suspiro das paixões. Enquanto vão banhando as certezas e assegurando as virtudes do verbo cúmplice e amante.
Mas sou capaz do silêncio que enche os pensamentos. De silenciar-me durante horas a fio nas noites de insónia - enquanto observo a respiração e vou contando os primeiros traços que me contam sonhos.
Enquanto dorme.
Não gosto de luzes. Não são boas companheiras dos meus silêncios e vigílias. Rasgam os meus sentidos e o suave remexer dos lençóis finos e frescos.
O que devo fazer?
Abraçar com força? Já o fiz antes.
Beijar tão suavemente que não desperte, mas aceite o meu silêncio sem poemas como o catecismo de tudo o que quero dizer e não consigo? É sabido que sim. Sabe que sim.
Ou então ...
... Ficar imóvel na escuridão, em observação. Como se fosse uma estranha criatura diante de algo demasiado precioso e cujo toque poderia quebrar. Como se depois fosse impossível resgatar a realidade.
Não tenho nomes para dentro de mim. Não consigo derramar a razão neste mar. Consigo apenas segredar um pouco desta tormenta que me consome incansável.
Por isso, o silêncio é a salvação. Os sentidos. E o rasgar doloroso das minhas paredes.
.
O que anseio é esse corromper desta harmonia. Esse encantar premeditado que consegue encher estes dias longos, vagarosamente. Ensina-me a respirar de novo. Regressando por pensamentos onde habitam as memórias que, e eu sei, estão resguardadas.
E sei desta minha arrogância escurecida pelo orgulho quando regresso aos teus passos, enquanto vou vampirizando as cores e as transformo nesta corrupção de harmonias: devagarinho pelos degraus escorregadios como as sombras. Vou criando as escarpas do meu caminho com as esperanças e brilhos subtraídos.
Esquivo. Sorrateiramente.
Orgulhosamente sempre gostei de labirintos que conduzem a destinos que não são meus. Gosto de ali pernoitar enquanto vou tecendo sintomas escondido. Sem a mácula da vergonha consigo brindar a mais uma chave, que abre mais uma fechadura de ferro forjado de pensamentos que não são para mim. Não são meus. Mas esse é o verdadeiro gene do viajante infatigável - vai saciando a sede em todas as fontes.
(999)
Não saber porque passa o tempo é uma das mais desconfortáveis piadas da nossa existência. Deixar que esse mesmo tempo decorra, esvaindo-se entre banalidades, comodamente arrumadas como vivências úteis, necessárias, é mais do que uma piada: é um engano arbitrariamente crasso.
É assustadora a incapacidade que permite que se esgotem os meses com a displicência do envelhecimento de quem percorreu uma vida inteira sem um arquejar, um ténue, que seja, vislumbrar de algo verdadeiramente excepcional, e mesmo assim conceba o paradoxo da ilusão de que algo realmente genuíno conseguiu para si. Será sempre um eterno desconforto para mim, se conseguir chegar aos anos de velhice mais profunda, concluir que o tempo se foi esgotando numa miserável epopeia de vida - uma vida inteira sem atingir qualquer altitude que me permita morrer sem quaisquer remorsos.
Creio que é exactamente disso que se trata: resistir aos dias de absurda negligência em nome de outras "causas mais nobres"; chegar ao fim dos anos com a satisfação de algo pessoal atingido, rebatendo todos os que, e eu observo isso todos os dias, começam a observar o entardecer da vida amargamente cientes da mediocridade dos seus anos.
Eu recuso-me a essa entrega. Insisto naquele maquinar que persegue sonhos e viagens. Viajo tanto! Tentando absorver tudo e não deixar nada por fazer. Mesmo sabendo que muitos se reconheceriam infelizes junto a mim.
Mas para mim, mesmo quando quebro exausto, é não sentir um pingo de hesitação que me deixa realmente completo.
Quero, um dia, chegar ao meu entardecer e não lamentar secreta e amarguradamente ter sobrevoado os anos sem trazer nada comigo quando chega a hora de pousar. Poder contemplar o passado sem o ódio rancoroso de quem falhou por completo.
Principalmente: sentir o que outros nunca sentiram; não carregar aos meus ombros o fardo da frustração e da resignação por uma existência mal vivida - sabendo que esta resignação é um inferno muito pessoal de imensas criaturas.
Imagina, por momentos, que faço meus os teus olhos; por instantes, a casa que é só tua, abre as portas e permite que eu entre, ainda que apenas entre sombras, quase desaparecendo da tua vista.
Imagina que viajo contigo dentro dos teus pensamentos mais escondidos, dormentes, apenas ouvidos por enigmas secretos, soletrados baixinho: como se demasiado proibidos para que sejam proferidos em voz alta; demasiado estrondosa.
Imagina.
... Que é demasiado claro lá fora. Que afinal, sempre estiveste demasiadamente dependente da luz que te aponta o caminho enquanto caminhas segura.
Imagina.
... Que te esqueceste de uma outra luz. Na tua própria casa. Do seu brilho primário rasgado por sombras e outros fantasmas. E pelos teus olhos, com as tuas mãos, vou saltando entre os raios brilhantes e caindo no conforto dos espaços escuros criados por palavras e pensamentos teus - alquimia de estranhas virtudes.
Imagina que para mim os teus olhos sejam os fragmentos onde bebo de ti e descanso entre caminhos; enquanto sonho o que sonhas.
Silencioso - porque é leve o teu sono.
Lembro-me perfeitamente quando visitei a Rússia pela primeira vez e o esmagamento que senti quando testemunhei todo o portento deste coro russo e a magnitude desta obra.
Já mais do que uma vez voltei a assistir e sempre, sempre permanece uma opressiva sensação de esmagamento e espanto.
Na capacidade de criar música sem instrumentos.
No espanto de um ateu, capaz de se deslumbrar com a espiritualidade monumental.
E imaginar que na inspiração de Tchaikovsky reside a mente de um Deus.
Sabendo que não existe nação como a Russa para criar hinos.
Talvez a paciência até seja uma virtude. Se calhar algo bem maior do que isso.
Não sei.
Para mim não é. Não se trata de um sentimento benévolo para nada. Não acredito na paciência como privilégio para sustentar a ilusão de que me tornarei melhor - que assim o mundo se tornará mais sereno e pacifico.
Deus! Que erro colossal!
Ser paciente é aceitar o açoite do teste e a persistência de oferecer a face para mais uma bofetada de quem saberá usar este sentimento para nos enfraquecer. Hoje uma bofetada - amanhã um soco - depois um pontapé. E o coração deve continuar paciente como se uma virtude destas fosse o nosso respirar.
Mas mesmo nos testes mais intensos, sistémicos, corrosivos da minha capacidade de tolerância, existe aquela patologia, incapacidade para impedir que aconteçam os pequenos momentos de cedência involuntária. Cedo alguns preciosos momentos ao sabor de outros passos - ainda assim, sabendo que se esgotarão naquele torvelinho de inutilidade e arrependimento por tal cedência - eu insisto porque não consigo resistir a uma certa mutilação que consinto.
E no entanto, em raros espasmos, esta patologia de preciosos momentos de paciência prolonga-se; consigo estender-me e deixar que se alonguem numa sonolência de sangue e pensamentos. Acabo por encontrar a sedenta justificação para não resistir a estes minutos de auto mutilação emocional, como que necessários para uma qualquer cosmogonia que ainda desconheço. Nascido da minha incapacidade para compreender tantos e tão vastos argumentos para tamanhos oceanos onde habitam os pacientes intratáveis.
Talvez porque não sei nadar nestes mares.