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(999)
Deixei as portas abertas ao assombro; lembro-me bem quando decidi povoar labirintos com assombrações e abrir as janelas ao toque de pensamentos temerosos. Transformação. Mudança de uma coisa em outra. E lembro-me que nada consegue recriar-se sem a chaga dolorosa do abandono de um caminho que nunca mais será traçado. Fui muito mais longe: sem remorsos, incendiei tudo, rigorosamente tudo, enquanto me espantava com portentos e reprimia o meu desejo de fuga e esconderijo. Continuo com esse desejo de queimar o que não me fascina. Creio que nunca morrerá.
Nunca gostei de dar nomes a assombros. Chamar por um nome ao olhar transfixo de uma criatura embalada pela descoberta de um outro fogo, não precisa de nomes. Gosto do silêncio que varre os meus sentidos no assombramento. Uma canção que ninguém escreveu; tem as suas próprias notas e as suas únicas palavras. Receio não ter a voz para a cantar. Temo que as minhas palavras sejam demasiado idiotas ou honestas, demasiado estranhas, para justificar as portas abertas.
Talvez seja necessário este baixar de um joelho ao solo, um vergar de cabeça enquanto cedo a entrada ao estremecimento, apaixonar-me perdidamente por caminhos tão desconhecidos. Talvez.
Se calhar a chave que deixou as portas abertas sempre se escondeu numa palavra, escrita com a inocência do respirar: reconciliação.
Sim. Reconciliação com as minhas sombras e escuridão.
To the one far away
Tudo começa quando forço a saída do afastamento. Quando se torna dolorosa a ideia de que é necessário regressar por umas horas, afastar-me de uma reclusão imposta, onde consigo respirar, e os silêncios são sempre rompidos por uma outra voz, tracejada de luz como em noites muito escuras, uma salvação, antes do abismo. Porque a solidão e a distância deixam-me embriagado, sabes? Os silêncios quando não são quebrados por uma voz ameaçam muitas vezes os meus pensamentos; são paixões tão perigosas como venenos de absinto, que me tornam demasiadamente esfomeado.
Gosto de chegar à Cidade e caminhar em passos lentos pelas ruas brancas de neve. Quando as botas pesadas se enterram nesse branco, quando o casaco negro, comprido e grosso raspa pelas pontas de gelo, emitindo aquele som ancestral para o caminhante, o prazer é quase infantil, sabes. Um absurdo sentimento de ardor alegre a que não permito o capricho da manifestação demorada. Mas há algo de transcendente para uma criatura que veste de negro como eu, ao andar lentamente por ruas brancas, pisando os passeios húmidos, entre pessoas atarefadas com os seus casacos pesados de muitas cores, e que olham desconfiadas para mim. É como se eu fosse uma figura fantasma, distante e deslocada naquelas ruas. Antes, era dolorosa esta ideia. Agora? Nenhum rei, profeta ou deus conseguirá convencer-me de outra coisa que não se banhe na indiferença. Mesmo que me sinta deslocado num qualquer paradoxo transcendente.
Quando as frugais horas de luz e sol dourado dos dias do Norte se retiram, envergonhadas, chegam com elas a escuridão da noite; sabes, não é possível colocar em palavras um Céu que se torna profano de luzes cósmicas, uma comunhão que silencia o mais intenso dos pensamentos, uma alegria que raramente sinto ser minha, muito minha!, escorre numa torrente quase impossível de ser contida. Mesmo as luzes da Cidade mais bela que conheço, entre as portas dos cafés onde se come e bebe entre gentes que aceito como minhas, no calor da paixão das gargalhadas mais valiosas para os meus sentidos, nada se compara às noites do Norte.
Nada!
Creio firmemente que somos o ritmo dessas Noites. Uma revelação para mim como o mais primordial. São Noites tão entronizadas como as que todos o dias, no meu afastamento, testemunho, porque são um mesmo e um todo.
Gosto de me iludir na sua química. Gosto de pensar que são para mim aquelas luzes que bailam naquele céu cósmico. Tonto, incapaz de as acompanhar dançando, gosto do egoísmo sonhador que alimenta essa ilusão.
Uma bela noite para morrer. Sim.
As pessoas acreditam. É o que fazem. Acreditam e parecem não sentir o peso da responsabilidade pelas suas crenças. Aceitam conjurar coisas, mas desconfiam sempre disso. Fascina-me a capacidade de povoar a escuridão com fantasmas, deuses e contos; as pessoas imaginam e acreditam: erram! Maravilhoso errar! Essa capacidade de cometer erros na escuridão e conseguir recomeçar, nesse mesmo pez negro. Fascina-me perdidamente.
Cedo, muitas vezes, à tentação de encher um catecismo, de coisas que nunca me foram ensinadas. Nunca aprendi a dominar essa emoção onde supostamente rasgamos o que é nosso, e deixamos um lugar vago para outra criatura; não me foi ensinado nada sobre a riqueza ou a pobreza de espírito, e muito menos qual a chave secreta desse labirinto. Nunca aprendi a arte de me afastar de quem preenchia a minha vida de algo inexplicável, com a graciosidade de uma nota infalível - apenas com a fragosidade dos incultos imperfeitos. Não me foi ensinada a alquimia do pensamento, vou abusando dos meus sentidos para ouvir outros pensamentos, e o que pensam sobre mim.
Acreditar é o processo mais fácil - o caminho de luzes antes do escuro -, mas não é o suficiente para mim. É dolorosa a minha ignorância porque nunca aprendi as palavras certas daquele encantamento sublime, que parece pacificar a alma de quem se encontra a morrer. A minha garganta aperta-se como um cadeado, as palavras retornam sem que tenham sido atiradas, com todo o caos de uma torrente que não se liberta.
O mundo seria perfeito se fosse possível aceitar que outra criatura fosse importante para nós, sem que para isso, um pedaço nosso fosse arrancado. E que cada beijo cintilante de desejos ou que cada deslumbre causado por uma pele incandescente, não fossem a confirmação de mais um remendo em nós, por mais um fragmento nosso retirado da nossa vontade.
(999)
Ocorre-me, demasiadas vezes, a peculiaridade das coisas aparentemente frágeis, mas onde acabo dominado pela surpresa da sua força. Mesmo na minha ânsia quase insaciável por viajar, quando a persistência da vista, do cheiro e do sabor, me obrigam a escapar, envolto na companhia de uma ideia que não aceita paragens, já deixou de ser possível manter a indiferença de quem, outrora, chegava e voltava a partir sem remorsos. Essa falta de remorso dos que não se apaixonam já não existe em mim. Esse vazio que sempre cismei preencher com mais um destino é agora apenas mais um fantasma que me acompanha - inofensivo. A fome de viajante continua, mas agora já parto sem um vazio, porque encontrei a minha Terra. Uma Mãe carinhosa de braços abertos, sempre atentos aos meus eternos regressos.
Alguns chamam-me "escapista", desconhecendo a minha paixão e devoção. Pouco conseguem entender como podia eu estar morto, para todos os efeitos e consequências, eu estava morto, sem gritos, sem lágrimas ou uivos de frustração, com a única emoção de continuar a andar até morrer. A ideia era sábia - deixar que tudo acabasse, assim mesmo, sem tentar resistir de novo - sair de uma existência, como quem entra por uma porta e não a deixa aberta.
Mas então, e se o escapismo não for nenhum tormento?
E se, depois de escaparmos, houver um regresso, e o mundo não for o mesmo? Alguém me disse que podemos muito bem regressar com armas novas ( alguém me disse isso, algures ...).
Saudades...
São raros os dias em que não lhe sinto a falta, pelo menos duzentas vezes! Ruídos e estalidos; brancos e pálidos; cinza e chuva com gelo; e cores nos céus da noite!
São raros o meus momentos de repouso quando estou distante, com demasiada impotência, sou forçado a abandonar, afastar-me, apenas com a certeza absoluta de regressar.
É necessário. Pela minha sanidade. Por um beijo. Por um doce respirar que me sussurra um amor que nunca será merecido.