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Existe um caminho que eu conheço como a palma da minha mão onde tantas são as vezes que ainda por estes dias, insisto em perder-me. É estranho, sinto-me pequeno, frágil, neste caminho, e mesmo assim, talvez levado por uma paixão que não consigo controlar, são muitas as vezes que nele entro; por vezes acompanhado, muitas vezes sozinho, como um dos poucos afortunados que imagina conhecer e nunca aqui se perder. Um instinto muito meu costuma dizer-me aos gritos, que não é normal seguir assim, e cisma sempre porque caminho por estes lados sem a ideia premeditada de regressar.
Gosto de o deixar cismar. Gosto de o sufocar com as mãos da inconsciência mais surda. Não gosto da sua teimosia.
Prefiro acreditar que a felicidade existe nos instantes em que fico perdido e deslumbrado neste caminho, mesmo sabendo que isso é uma mentira.
Porque não consigo fugir de nada estando perdido. Sei perfeitamente que onde quer que me perca, eu sigo comigo próprio - com as minhas virtudes e desvirtudes.
Não me interessa.
Eu não quero saber.
Vou continuar a tentar perder-me neste caminho que imagino conhecer como a palma da minha mão.
Eu acredito em velhos feiticeiros ...
Paixão ...
“Somente o que está escondido é profundo e verdadeiro. Daí a força dos sentimentos vis.”
Emil Ciorán
Tu consegues saborear quando me perco irremediavelmente. Sentir o sabor das manhãs em que desperto de sonhos intranquilos, quando o mundo é apenas mais um dos muitos labirintos onde caminho. Quando te prometo, e recuso faltar-te, mesmo que isso custe pedaços de mim.
Tu sabes o caminho de todas as minhas estradas, como conheces o meu nome; por meu espanto, todos os traços e desenhos do meu corpo são perfeitamente reconhecidos por ti, e também conheces, na ponta da tua língua, nas tuas unhas penetrantes, os caminhos que vão dar a eles.
Tu já saboreaste a cor dos meus olhos, e sentiste o frio dos meus pesadelos nas noites que se tornam longas; já reclinaste a tua face em mim, enquanto dormes e eu zelo por ti.
E tantas vezes já sentiste o sabor da minha fome de ti. E tantas vezes já descobriste onde estão os meus céus escuros, enquanto te sentas ao meu lado e olhas as estrelas comigo. Eu vou murmurando algo sobre a vastidão e imensidão que acabo por esquecer, mas tu não.
Tu sempre me recordas.
Eu já perdi pessoas.
Mesmo numa existência pouco longa, eu já perdi pessoas de uma forma irreparável; por vezes, e dolorosamente, apenas conservo pensamentos envoltos na minha memória, de alguém que perdi. Mas é estranho quando isto acontece porque não é bem como perder um pai ou uma mãe, como o vazio que sente uma criança que imagina uma mão amiga na sua e depois descobre que não. É algo ainda mais visceral e mortificante. Inexplicável para mim.
Tento colocar este turbilhão muitas vezes num papel, como uma tentativa, um mapear de coisas, normalmente agrestes, porque sei ter perdido alguém demasiado importante para mim. E nas palavras que escrevo é possível encontrar um eco de outros tempos e de outras pessoas, raras, que por serem tão poucas, o seu valor não se calcula. Mesmo que, no que vou desajeitadamente escrevendo, muitas dessas palavras tenham aquele sabor negro dos elogios fúnebres, a emoção de quem lança as cinzas ao vento ou no mar.
Não existe muito consolo.
Mas é necessário para mim. Tão importante como respirar. Porque senão o fosso vai aumentando. Depressa. Em pensamentos e sombras. E o que fica é ideia de solidão e a falta de vontade para a combater. É como dividir tudo isto em duas metades de um livro e ter de escolher uma parte, e na minha recusa a aceitar isso, tento uma redenção nesta escrita. Mesmo sem talento e mesmo sem uma musa que me ajude a encontrar o caminho.
Creio piamente numa estranha equação ensinada, que gosto de manter junto aos meus dias mais sombrios; deixar entrar e permanecerem as paixões, por mais singulares que sejam; a solidão da distância, uma absurda punição a que submeto os meus dias; e o sabor doce-amargo de uma loucura que aprendi a aceitar como parte de mim.
Um dia destes, talvez tenha o talento necessário para descrever este distúrbio lunático. E talvez consiga dar-lhe um nome.
É justo que o faça.
Mesmo que não consiga fechar o imenso buraco escavado pelos poucas pessoas que vou perdendo.
Enquanto olho para ti, penso em encantamentos antigos. Sei que conheces alguns, capazes de curar dores e doenças; também sei da tua sabedoria entre sombras, que consegue erguer um coração do sono da desilusão.
Mas eu sei de um toque que te encanta irremediavelmente; sei de outro que consegue rasgar armadilhas e abrir fechaduras escondidas; sei de caminhos encantados por suspiros quentes e beijos que transformo em amuletos de virtudes mágicas.
Enquanto te vejo, é na tua arte que testemunho o saciar do fogo apenas pelo deslumbramento; de um ódio que se torna transparente, como as águas debaixo de um sol intenso.
Ainda não sei de todos os encantamentos que são teus por devoção. Apenas porque sou uma criatura dobrada sobre a minha própria luz e sombra, são breves os instantes em que escuto a tua canção que adormece o vento e acalma a tempestade, a preciosidade que leva um navio para uma margem segura. Nessa canção é fácil encontrar o meu caminho de casa, sussurrar-te memórias antigas como o teu feitiço, e às vezes, porque me torno insolente contigo, tenho sonhos de poder, glória e sabedoria de mim próprio.
Acredito em ti...
E enquanto olho para ti, sei que tens outro encantamento que ainda hoje não consigo desvendar; o maior e o mais belo de todos; essa tentação que sabe a chuva e a sol ameno, a prazer que me recuso a confessar, a pacificação após a guerra, esse é o teu segredo supremo. Nunca revelado a mim.
Parassonias ...
Mas está lá. E eu lembro-me, vou sempre lembrar-me, nos suaves momentos antes de adormecer, nos instantes que antecedem a insónia e o sono profundo, está presente. Na voz sussurrante de algum Deus da Terra ou do Paraíso, no silvo em gargalhada do Caos inocente, também entre a voz dos vivos, áspera e dolorosa, como fuligem de uma fria Ordem: impossível.
A voz dos Mortos...
Vagueia no sono até morrermos.
Gostaria de conhecer todas as palavras para falar da Morte. Gostaria disso e não ficar sempre com o sabor amargo de ser demasiado, e mesmo assim não o suficiente. Traçar os meus planos até ao meu último suspiro, mesmo que se revelem imperfeitos. Sempre imperfeitos. E esta coisa de morrer chega tão vagarosa: uma relutância em libertar os lençóis todos os dias que é tão semelhante a uma Morte.
É estranho, por vezes sonho com uma Morte solitária, sem ninguém ao meu lado para me ver morrer; deixar de ver o vapor da minha respiração a embaciar os vidros. É estranho sonhar com algo que será sempre um último suspiro em solidão - ainda que rodeado por dezenas de pessoas. Mas é como um último gesto, uma última voz de comando, um derradeiro silêncio de palavras, desejar ardentemente reter memórias, antes que desapareçam como pássaros.
"Todos vamos morrer, e é isso que nos torna pessoas de sorte. Existe uma imensa maioria que nunca vai morrer, pois nunca vai nascer. As pessoas que em potencial poderiam estar no meu lugar, mas que nunca verão a luz do dia, superam em número os grãos de areia do Saara. Entre estes fantasmas com certeza há poetas superiores a Keats. E cientistas superiores a Newton. Disso sabemos porque o conjunto de pessoas possíveis que o nosso DNA permite supera maciçamente o número de pessoas que existem. A despeito dessa probabilidade chocante, somos você e eu, em toda a nossa banalidade... que aqui estamos ..."
Richard Dawkins