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Natalia Drepina

 

Primeiro é a carne e o sangue.

Talvez não aceites isto. Se calhar é melhor que sejam as razões a comandar o que vem primeiro. E se calhar estás certa, mas eu prefiro ser o Animal que é metade carne e metade sangue, e apenas depois deixar jorrar o peso da consciência racional, essa prisão que embaraça os sentidos.

Por isso, primeiro é a carne e o sangue.

E tenho tanto para te contar sobre a minha carne e o meu sangue. Tanto sobre a inconsciência da alma. De como é devoradora esta gnose, este centro nervoso que alimenta tanta fome. Por isso sei do teu desvelo enquanto adormeces os pensamentos  no amanhecer, entre sonhos e sinais distantes. Sei como mudas de coração e alteras os teus passos.

Quase certa. Quase.

É a carne que sente primeiro o toque mais suave. É nesse primado absoluto dos sentidos que afasto a tristeza, a sombra e a escuridão. Talvez algo demasiado terreno para ti. Talvez o teu primado seja antes um sorriso intenso rasgado em luz; porque existem desses risos por aí, mas eu preciso de me entregar ao toque, por mais subtil que seja.

O sangue repete o catecismo da carne. O sangue dança quando a carne se entrega. É uma fúria lacerada em rasgos perfeitos de sensualidade sombria, rasgada com artifícios metódicos de desejo e consumo, uma pacificação nervosa, inquieta. Perigosa.

Mas nenhuma razão, nenhum pensamento de antecipação, consegue ser mais sublime do que aquele momento perfeito, aquele lapso no tempo, em que os nossos olhos brilham no escuro. 

Quando somos apenas carne e sangue.

 

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Adormeci ao som de palavras desconhecidas, orgulhosamente ditas por gente mais velha. Adormeci, quando o espírito, mesmo cansado, se recusava a ceder aos feitiços do sono. Para mim, cínico e descrente, teimosamente em fuga de um niilismo cada vez belo, deslumbrar-me nestas palavras tem aquele fulgor intenso e proibido de uma estrela de alva, como uma mortificação antes de um reconhecimento.

Adormeci quando se falava de Fraternidade, incapaz de aceitar o sonho da Igualdade, mas dolorosamente encantado pela melodia desta palavra; disseram-me que adormeci pacificamente, como uma criança, embalado por um feitiço conjurado, brindado, rendido a essa suprema ilusão que habita este miserável planeta, que teima em transformar criaturas imperfeitas em heróis: a Liberdade.

Creio que, por algumas horas de sono, deixei entrar estas e outras palavras afinadas por bocas antigas, com muito mais vida. Como um fantasma entre monólitos desconhecidos, tragicamente perdido, embriagado por portentos de libertação e devoções a uma unidade que me transcende.

E antes de adormecer, mesmo antes de fechar os olhos, como um animal espantado pelo desconhecimento, senti o cheiro perversamente quente, vi o vermelho vampiro, dos cravos amontoados ao meu lado. 

Adormeci embalado pela ilusão de outras palavras. Sonhadas. Quase capaz de acreditar nelas.

Fleuma,

(999)

 

Lamento estes silêncios absurdos, quando o que deveria suceder eram palavras, sons, descansos no pensamento. Lamento. Lamento a minha aspereza, a minha incapacidade  de verter uma lágrima.

Lamento que tudo se tenha transformado neste silêncio.  Mas a tristeza é estranhamente sóbria em mim, nestes dias; não a tristeza poética, vestida de agitações ternas e ainda assim, esperando um regresso ao passado recente. Esta é uma tristeza diferente, mesmo para mim. É uma procura de segurança. É como se esta tristeza tivesse um corpo sólido para me  reconfortar, mesmo que tudo seja angústia e desespero. 

Não existem lágrimas que exprimam certas ausências, apenas uma agonia que não tem punhos para magoar, mas morde raivosa, é rica em lamentos e desejos de regresso ao passado. Rasga os sonhos e deixa apenas o sabor do fracasso.

Eu consigo seguir os seus traços fielmente, descrever todas as suas horas de insónia, como a chuva que cai lentamente nestes dias. E afinal, não fui apenas eu que fiquei silencioso: algo se foi e deixou aqui uma monstruosa onda de raiva impotente, sem subtilezas, mas afogada numa estranha dor crua e de coração partido.

Não se pode escapar ao que não se consegue controlar. Lamentar é apenas uma ínfima parcela desta tristeza silenciosa que parece devorar os nossos dias. Consigo, estranhamente, sentir o sabor amargo e doce de uma melancolia que há muito  tempo me foi descrita, um reflexo do que perdi e do que quero, desesperadamente, recuperar.

Agarro estes pensamentos na minha incapacidade de escrever com a grandeza certa para despedaçar os silêncios. Traçar com a elegância do punho solene, esta criatura dentro de mim que me consome e mesmo assim me reconforta. Romper as correntes e deixar sair esta torrente de ódio, frustração e mágoa. Esta fragilidade inexplicável.

Se calhar era verdade o que me dizia:

" ... só quando sentirmos, realmente conseguirmos provar o sabor da verdadeira tristeza, poderemos aceitar a Morte como ela realmente é, a luz da salvação."

 

Fleuma,

 

 

 

Hoje choveu. Primeiro em gotas frias e grossas, vindas de um céu cinzento escuro como chumbo, apenas traçado por instantes prateados como pensamentos distantes. Depois, a chuva tornou-se neve, atormentada pelo cantar pesaroso dos ventos do Norte. Recordei os nossos passos na neve, o bater do frio, as canções da floresta, o calor da voz do Corvo vermelho que aquece como um toque de amor, mas mais profundo.

Recordei-me.

O sangue a viajar em mim, alegre, insolente, em bruto. Sem medos e sem cicatrizes. Uma essência fractal, como os raros raios de luz que atravessam os ramos secos e mergulham nos mantos de neve. Ainda assim, um sangue a fervilhar por promessas de redenção e salvação, enquanto me deixava embriagar pelos Céus lá em cima, muito acima dos braços dos pinheiros gelados.

Juro que me senti vivo! A estalar em faíscas, como um fogo primário adormecido em mim. A Sombra de uma outra Sombra, capaz de cantar e dançar entre as chispas do Fogo Maldito.

Esta noite choveu. Choveu muito. E sou capaz de jurar que consegui ouvir,  nas bátegas surdas, a tua voz a cantar e o teu riso a erguer-me  das sombras.

 

Fleuma,

(999)

A morte tem um estranho fulgor nos momentos em que conseguimos escutar o último suspiro de outra criatura. Estranhamente, é mais, muito mais, do que imaginamos. É muito mais esmagador escutar esse ponto terminal incapazes de rezar, retendo a respiração como se fosse nossa a vontade de acompanhar, abraçar apertado para que não escorregue de nós, enquanto cedemos ao instinto de aceitar a inevitabilidade.

E a morte acaba por ter a cor de um certo desespero astuto do que sabe a triunfo, um sabor a traição para quem fica, uma saudade tão presente que, acabamos por testemunhar, acabará também por nos assassinar lentamente.

Talvez não se devam lamentar os que morrem. Talvez já estejam junto aos portões de Valhalla. Pode ser que a existência até tenha sido imensa, de uma libertação cega, mas fica um vazio sísmico impossível de encher. Um rancor por palavras não expressas, uma gargalhada que não apareceu no momento certo, uma ausência interminável.

Estes são dias de viagem e cada vez maior distância. Tanto para dizer e tanto tremor para o fazer. São artefactos de uma solidão que parece pintar a minha vida com uma estranha beleza. Assim mesmo. Como se colocasse uma chama muito especial em todos os finais de tarde e o ar da noite ficasse mais fresco. Sinto o peso da culpa porque sinto a saudade e o vazio de quem já não está ao meu lado. Penso no significado da dor que sinto. Sei que, como sempre, a dor é pessoal. Pertence-me. Provavelmente a única, verdadeiramente única, coisa que me pertence. Por isso, fecho as portas para que as memórias não fujam. Acorrento o que me resta. Até o seu fantasma.

Egoísta. Em arrogância.

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