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Nunca conheci Emil Cioran, mas tenho a consciência de que ele sabia algo sobre mim. " Nos Cumes do Desespero", no "Breviário de Decomposição", nos "Silogismos da Loucura", " O Livro das Ilusões", foram páginas caídas como tempestades nas minhas mãos, naqueles dias em que a sede de libertação caminhava a passos gigantes para um desespero pessoal de descrença lunática, estendida para um abismo sem fim. Estranhamente, o Seu pessimismo não esmagou ainda mais a minha visão pessoal. Antes pelo contrário, Cioran falou sobre os meus dias de uma forma elegante, quase paternal. Como um pai paciente a sussurrar a realidade ao ouvido de um filho próximo, tão perto, da loucura.
Se, em mim, Nietzsche fez despertar a "morte de Deus" numa idade excessivamente jovem, talvez abrindo a tampa de um poço negro que deveria ter permanecido selado, as palavras de Emil Cioran agarraram o meu pescoço, torcendo-o apenas levemente, para que os meus olhos se abrissem mais longe com a sua veia trágico-poética, transformado num conselheiro oficial dos "espíritos autenticamente atormentados".
Passo a passo, em cada página lida e relida centenas e centenas de vezes por mim, durante semanas e meses, ao ponto de reconhecer as curvas e inflexões da Sua capacidade que torna o Pessimismo numa arte genial, encontrei a chave que descerrou o cadeado de muitas correntes. Creio que aconteceu quando aceitei a virtude da própria melancolia conseguir ser mais interessante do que a alegria, que eu teimosamente achava ser uma falha minha. Reconhecer a minha capacidade e necessidade de sentir o medo, tornou-se cristalina com Cioran, porque afinal, pura e simplesmente todos somos feitos de medo e inseguranças.
Mas, e visceralmente em mim, Emil Cioran é a suprema potência da alquimia da Insónia. Cioran é, precisamente para os que não dormem. A companhia de um "Igual", a capacidade de trazer aquele sono abençoado, o aconchego do genial louco que consegue ungir a nossa dor mais profunda e intensa, pela compreensão dessa mesma dor, um olhar, um tocar, uma voz de consolo e entrega, umas letras ...
No filósofo Emil Cioran a Insónia refina, tem a virtude imutável de nos tornar milimetricamente originais: " Só o conjunto das nossas Insónias nos destinge dos animais e dos nossos semelhantes". Aceitar a incapacidade de adormecer rapidamente e a sono solto como uma forma de iluminação interior e conseguir, mesmo assim, reconhecer como o adormecer se converte na nossa mais preciosa necessidade.
Emil Cioran é como um pai porque, na verdade, sabe mais de mim do que eu próprio sei. Escreveu sobre os meus labirintos, sabe das minhas sombras, encosta-se na minha escuridão. Abriu as Suas mãos ao meu desejo arrogante de querer sonhar com impossíveis e não desistir de o tentar, consentir sem medo quem me ame desenfreadamente, mesmo sabendo que o monstro se oculta desconfiado.
Fleuma,
A Arte do estremecimento ...
Apenas os que não dormem em sono solto sabem verdadeiramente das horas que correm. Conhecem os seus caminhos lentos até ao crepúsculo, os prazeres primários dos silêncios absolutos, a valsa esquecida do olhar que observa, animal silencioso na escuridão. A visão torna-se cerrado na fragilidade de quem dorme inocente, exposta, enquanto respira suavemente, entregue ao amparo do sono em esquecimento. São muitas as vezes que se perdem as horas na penumbra da insónia, essa mestra possessiva e tirana, numa imobilidade opressiva para aqueles de quem o adormecer é um companheiro, enquanto se desfiam pensamentos ruidosos pela noite dentro, num prazer escondido, quase proibido, de vigília nocturna; cada movimento da sombra dormente, cada suspiro de descanso, cada roçar do corpo nos lençóis, passa a ser nosso. Intimamente nosso.
Apenas os que não dormem o sono das águas tranquilas anseiam pelas batidas suaves e distantes de um coração em descanso, a sua melodia, que sabem entoar entre pensamentos, os olhos transformados, que na escuridão, brilham preciosidades, tantas vezes proibidas. É entre estes espasmos sem sono, que certas criaturas verdadeiramente se reconhecem como unas, moléculas singulares, mundo indiviso, onde é quase, quase possível respirar com uma certeza que gostam de imaginar cósmica, divina. Um processo de solidão que encerra o vento nocturno, os ruídos da noite, o reconfortar gelado de certezas, as texturas de certas memórias, tão pálidas como as luzes dos pirilampos.
Quando os primeiros raios de sol rasgam estes encantamentos e a alquimia do derradeiro cansaço finalmente consome este não-dormir, cedemos à tirania de um sono que retira de nós as correntes de uma insanidade que muitos desconhecem.
Fleuma,
A eternidade num instante