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"Comungar contigo sobre fantasmas.

As minhas sombras.

A tua sombreada sobriedade a encher labirintos.

Dédalo orgulhoso."

 

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Assim como o Outono chama ...

999

A verdadeira razão porque tento manter, nos raros momentos onde tudo o que ocupa os meus últimos instantes de insónia em estilhaços, é alguma consciência racional e puramente egoísta. São aqueles minutos sagrados para mim. Um estado onde tento que se conservem as reservas finais de energia física. É uma pequena maquinação mental - o derradeiro toque enquanto me sento na mesa com a última chávena de café, junto à janela aberta no primeiro raiar do dia, no que seria a mais absoluta escuridão, não fosse pela meia-luz, onde consigo ler. Um encerrar voluntário num silêncio quase palpável. Nestes minutos finais, no local onde me encontro, porque tenho o privilégio de invocar este silenciar, leio num estranho turbilhão. Umas vezes uns outras vezes outros.

Por vezes bebo das tuas palavras.

Alguns estranham esta rotina que tenho. Quando consigo descansar. 

Mas preciso desta obscuridade e silêncio. Este forçar, ao terminar de tantas horas acordado, de um último canto de cisne que pode passar perfeitamente por ler uns e outros. Por ler-te, entre pequenos tragos de café. Por insistir demasiadas vezes, que mesmo o que muitas vezes jorra de ti em estado obscuro, ainda assim consegue ser o mais próximo para mim de uma canção da manhã tantas vezes proclamada por bardos e outras lendas.

Reconheço-te essa fascinante obscuridade. Mesmo se as tuas sombras não são as minhas. Acho que as tuas sabem bem menos a condenação - bem mais a uma redenção que pareces ter atingido.

Invejo-te, sabes?

Sou egoísta porque insisto em vampirizar a energia vital de uma certa escrita que pulsa sem corrupção do teu pensamento, nestes instantes finais, antes de me render ao silêncio que alguns chamam  sepulcral e a um escuro pacificador. Consigo caminhar ao teu lado sem que me pressintas porque afinal esta é uma arte minha. 

Comungar contigo sobre fantasmas. As minhas sombras. A tua sombreada sobriedade a encher labirintos.

Dédalo orgulhoso.

Fleuma,

 

Escrevia-me muitas vezes com a certeza de quem traçava um manifesto. Muitas vezes convulsivo, intenso, a roçar a alegria de quem se apercebe, numa súbita epifania, da firmeza das suas conclusões. Mesmo no seu respirar, na forma direita como caminhava, notei sempre uma potência que, nesses momentos, e porque eu era um idiota, fui incapaz de rasgar esse brilho que me cegava, para conseguir "ver" mais longe. Hoje eu sei. Hoje talvez eu consiga ser um pouco menos idiota. É tarde, mas mesmo assim, ficou a virtude de certas palavras escritas. Epitáfios escritos. Um consolo para os dias de saudade e caminhar perdido.

Saudade.

Odeio esta palavra de gumes afiados.

Algo, em tudo isto, me ensinou a navegar à vela nos meus labirintos e nas minhas escarpas escorregadias. Por vezes, a luz de um farol acende-se numa frase escrita por outro pulso. No centro da turbulência deixo de imaginar que sou uma ilha. Nos traços deixados por alguém consigo ser um pedaço de um continente. Não se explica. Eu não sei explicar. Nem sequer faço um esforço para explicar. Mas é como uma carícia apaziguadora - um beijo final antes do assombro de um sono.

Creio piamente na virtude do erro. Os meus erros, as minhas falhas, forçam cicatrizes que nunca conseguirei sarar. Erros, para finalmente compreender onde pertenço. Há nestes erros a doce sabedoria de um primeiro banho frio no inicio do grande Inverno, quando são as nossas próprias mãos que cavam um buraco no gelo e nele entramos. Uma harmonia com a solidão pessoal e com a dos outros na partilha do calor dos corpos, na suavidade revigorante de um trago de álcool lendário. Foram os meus erros que transformaram as saídas dos meus labirintos em espasmos diante das montanhas geladas e colossais, tornaram as minhas escarpas escorregadias em Equinócios e Auroras Boreais, partículas solares na escuridão silenciosa, submissão da minha condição pequena.

Vontade de rir. Vontade de abrir os braços na vastidão. Aceitar um abraço em volta do meu pescoço com palavras sussurradas numa linguagem que dança na língua. 

Mesmo na torrente de erros já não sou tão idiota. Quero esses erros para conseguir "ver". Mesmo que por manifestos ou por frases que alguém deixa voar ao abandono.

Fleuma,

 

 

 

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Hoje, dorme serena.

Fecha os olhos.

Sossega.

Hoje não existem monstros.

 

Somos criaturas teimosas ao ponto da obsessão. Insistimos arrogantemente na ideia da separação pessoal de emoções, como se as conseguíssemos partir em metades, e assim, esconder o que nos consome em pequenos compartimentos fechados com cadeados. Transformar a criatura humana num símbolo virtuoso é uma velha batalha.

Inútil. Impossível.

A teoria da meditação, uma tentativa de expurgar emoções "negativas" e apenas conservar o que nos interessa, é uma falsidade com a aparência de cura pessoal. Precisamente porque tenta separar o inseparável, como se não fossemos uma totalidade impossível de separação - como se fosse possível funcionar por partes afastadas e da forma que mais nos interessa.

Nada é mais ilusório do que a satisfação de quem se acha emocionalmente purgado apenas porque assim pensou, meditou, rezou, chorou ou gritou, e com isso presumir prosseguir num qualquer caminho de virtude segura.

Talvez o processo seja o oposto. Se calhar significa aceitar tanto o demónio como o anjo. Entender, finalmente, que os opostos não funcionam separados; só existe uma verdadeira Luz porque conseguimos sentir a Escuridão. Não existe maior capacidade de sobreviver, maior declaração de potentado individual do que o saborear de uma Luz depois de um longo caminho de Escuridão. Nenhuma cicatriz se torna verdadeiramente nossa se não conseguirmos seguir o caminho oposto, da claridade mais feliz e amena para o escuro mais cerrado.

Medite-se uma eternidade mas não se sente a recompensa do calor ameno sem a pulsão do frio. O êxtase de dois corpos unidos é uma dor que vamos experimentando e conhecendo, uma dor física e mental, um inferno que termina num paraíso. Impossível separar. Isolar. 

Não é verdade que a melodia mais bela surge nos instantes mais sombrios? A desilusão mais amarga não brota sempre depois dos sonhos mais doces? Um beijo, um sussurrar salvador, uma mão esticada, não são aqueles momentos de alquimia perfeita para quem encontrou a saída de um poço escuro?

 

 “Uma pessoa não é iluminada por imaginar figuras de luz, mas por estar ciente da escuridão.” -Carl Jung

Fleuma,

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The Taste Of Leather On Your  Lips

 

Não há nada mais frágil do que o toque. Nada se torna mais importante do que esse instante que percorre o corpo, sem receio de explorar, rompendo correntes, silencioso, deslizante. É um feitiço impossível para muitos, mas existem criaturas impossíveis, cujo o mero agitar dos dedos num corpo agita uma tempestade desconhecida momentos antes. Uma capacidade de forçar a submissão pela pressão de um beijo. A suprema arte de uma língua húmida que viaja de um peito cansado e agitado, percorrendo o pescoço tenso, explodindo no topo de um queixo oferecido ao torpor. A suavidade de um pé  no nosso braço dorido. O cheiro do cabelo roçando o nosso nariz num encantamento desconhecido.

É esta fragilidade que fascina a minha paixão por tudo o que fragiliza as minhas imperfeições, como a minha incapacidade de resistir ao que me submete sem recurso à força bruta. Porque sempre me alimentei de combates e forças contrárias, que sangram, que arrastam dolorosamente. Nunca para a leveza do contacto de um roçar de outro corpo - talvez porque mais suave e menos rugoso que o meu corpo. Estranho. E fascinante, na criatura que toca e pressiona com a sabedoria de quem aprendeu a dominar sem proferir uma palavra, apenas porque é assim.

Assim deve ser.

Para criaturas como eu existe a sede de aprender esse toque, mesmo sabendo-o breve como uma preciosidade, a inocência da ignorância de anos na procura desse tocar e quando por fim o conseguiu sentir, consumir cada momento até ao fim. Até à glorificação que apenas certas artes concedem.

Existe tanto de glória como de abismo na gentileza opressiva desse toque. Uma certeza de entrega, e principalmente, um prometer de que algo se irá cumprir, uma promessa sem falhar. Para que fique retido em mim esse momento da mais absoluta entrega, apenas basta que lhe pressinta o brilho dos olhos e respirar sereno, enquanto se revela em todo aquele esplendor.

Cósmico.

Porque o respirar e os olhos também tocam. 

Afastam o Inferno.

Culpado.

Fleuma,

 

 

" aos olhos de um louco..."

Eu desejo apenas a eternidade dos momentos, sabendo que não sou eterno. Talvez por arrogância. Talvez porque desconheço outra forma de sentir certos momentos. Não sei. Não quero saber. Nunca me interessou a maldição do que seria uma eternidade vivida, mas certos instantes deveriam ser para sempre gravados, como moléculas dispersas, genes egoístas, que se recusam a ceder à dádiva de morrer. Nestes momentos, eu recuso a ideia de que nada é eterno. Existem em potência, durante as noites em que me permito a liberdade do que sou realmente. Eu. Em comunhão, a girar por outros Universos, mas ainda assim: Eu.

Momentos para respirar uma outra alquimia. Um rugir dos sentidos, afiados numa equação de unidade onde consigo tornar-me parte de um todo - nem que seja apenas por alguns momentos. Uma ironia suprema, este varrer da solidão para um canto distante, como quem tranca a sete chaves o monstro.

Gosto, nestes precisos momentos, de deixar de me conhecer. Gosto de abrir a porta às sombras e deixar que entre um perfeito desconhecido, antes adormecido dentro de mim. Vergo-me a ele enquanto me encanta até que me torne negro, desfigurado de qualquer outra emoção senão a que me despe de tudo o que não seja liberdade, quando todo o resto se revela vazio, distante e irreconhecível. 

O coração é uma trovoada na escuridão. Os olhos sonham entre os véus negros desses instantes. Os ouvidos escutam o que antes desconheço.

Deixo entrar o odor deste desejo de momentos eternos.

E nestes instantes que desejava, fossem para sempre, entre os meus próprios demónios, oiço a minha voz a crescer...

Como se, por vezes, o verbo fosse a verdadeira oração para continuar a viver.

Fleuma,

(999)

Ali, as tardes são calmas, densas em sobriedade, carregam consigo aquele sabor da mais intensa paixão para quem prefere o descanso da obscuridade sem ruídos. É onde o tempo se encolhe sobre si enquanto a imaginação diz que sim, que o Universo é nosso, que apenas enche as nossas mãos. O pensamento, nestas tardes, só consegue existir em nós porque se torna numa constelação imensa, não é possível domar o que gravita por nós naquela imensidão de silêncio distante, no formigar constante da nossa fragilidade pequena, absurda.

Gosto de me sentar na cadeira que baloiça sem ruído, de braços e pernas estendidas e abertas, na mais absoluta e descomposta reverência, quando, nesse entardecer, faz menos frio e não se vislumbra a neve nem o gelo, nem sequer lá muito longe; deixar que o calor de um sol brilhante mas fugaz, toque, astuto, na minha face sem os óculos escuros que tanto amo, aquecendo-a tão suavemente, carinhosamente cálido, rasgando as imensas janelas de vidro cristalino, forçando os olhos para distâncias impossíveis, ajoelhando a respiração num aquietar brando, em surdina.

Na calma imóvel desta tarde, quando tudo em nosso redor se acalma numa luz suave, resisto a tudo o que seja movimento, recuso-me a mexer um tendão, como um animal encadeado por algo precioso, apenas sabendo que está vivo porque respira em compasso, e consegue inspirar o aroma possante do café mais negro, uma corrente de protecção contra um desvanecimento consentido. Nos olhos semicerrados, um testemunhar translúcido, cravejado no peito expandido e incapaz de compreender o portento de saudade e nostalgia com que certas tardes nos fustigam os dias.

E torna-se um fim. Um mistério. Um meio de justificação.

Para o espírito sobrecarregado este seria o fim perfeito. Suavemente percorrendo o caminho final. De coração incinerado. Absorto na sua própria felicidade.

Fleuma,

 

A tua voz é um culto de profanação aos instantes em que o silêncio mais pesa. Ainda hoje sou um cego com as mãos estendidas, não sabendo uma outra forma de explicar como consegues abrir a porta e entrar. Mesmo assim, creio que posso ceder a estes momentos de doce arrogância, e não pedir desculpa, porque quero que essa voz seja minha, que se sente dentro de mim.

Um sussurro é um universo aberto, sabes? Consigo que se torne um fim, uma transformação, aquele bater de asas apenas escutado por quem realmente viaja sem medo.

Mas por algum estranho desígnio, eu nunca consigo usar as palavras mais belas, as emoções mais cristalinas, para te iluminar o caminho. Antes tento que pressintas por memórias que vou desfiando desajeitado, incapaz de escrever com o pulso seguro, gravando um outro caminho, mais seguro e menos sombrio. Sei que te habituaste a sombras, a esta minha obsessão impregnada em líquidos estranhos, mas não sinto em ti o sabor do ódio pelo que sou. É como se, ao abrir a porta, fosses portadora de uma estranha poção, algo indistinto a esta obsessão, que te deixa respirar livremente em certas atmosferas.

Gosto disso. De atmosferas. Do rasgo claro que surge no escuro, nos passos suaves de quem caminha silenciosa, temperando a insónia, num entalhar de solidão.






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