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É fácil, demasiado fácil, cultivar a arte de desaparecer; e mesmo que alguns transformem essa arte num oficio exímio, numa virtude quase intangível, com o tempo e a prática, depressa se consegue desaparecer. É fácil. Fácil.

O que nunca é fácil é aceder à virtude que aceita a inevitabilidade de uma promessa não cumprida. O prometido que não é cumprido não cria em nós apenas um espaço que desaparece, é um fosso que cresce em círculos de solidão indesejada. Senão, porque razão uma mãe aceita de forma cega e obstinada a promessa de que a vida de um filho será mais longa do que a sua? Senão, porque razão, não cumprida essa promessa, se transcendem todas as fronteiras do mais racional e pragmático aceitar do fim inevitável, transformando-se num abismo tão pessoal que se torna inexpugnável? Quando algo que sempre julgámos nosso por promessa desaparece, muitas vezes, demasiadas vezes, porque alguém se tornou mestre nessa arte é ainda mais cortante, porque a desilusão que nos abraça é um veneno em que apenas um ignorante cego não pressente o labirinto onde acaba de entrar.

Eu não consigo esquecer uma promessa feita, por mais insignificante que seja. Recuso-me a não cumprir o que prometo ao ritmo de obsessão. Não me esqueço e não perdoo uma promessa que me foi feita e não cumprida, porque reconheço o caminho do fosso - mesmo sabendo que sou um artificie nessa arte de desaparecer. Tudo o que nos resta é uma exposição sem abrigo à tempestade; um olhar de animal assustado em volta. 

Creio que quando a nossa existência se agarra desesperada a uma promessa feita por outra pessoa, e afinal, tudo o que fica, são ecos e um vazio desprotegido, esse é o verdadeiro teste da nossa capacidade de sobreviver a um desespero que não tem rival entre outros desesperos.

Uns tombam de frente em rendição.

Outros rasgam e arrancam o pedaço negro que ficou plantado mesmo que isso signifique existir envenenado.

E a arte de desaparecer acaba por se transformar muitas vezes naquela minúscula centelha que aponta a saída.

(Fleuma)

 

(O NOME DO VENTO)

Quando chegares a este lugar mais alto respira comigo.  Reconheço esse varrer de emoções que transpiram nesse lugar alto. Essa nostalgia que irá cruzar a tua mente como uma serpente que se recolhe, de olhos fixos, perdidos no horizonte.

Respira, enquanto as nuvens tombam entre os braços esticados do nevoeiro pálido, debaixo de um céu rachado, cinza prata, inclemente. Sossega a tua voz, muda, em elação. Aqui dançam os ventos. Cantam e assobiam melodias de antes, deixam memórias de tantos sons! Ocultados pelo uivar dos Deuses!

Quero que respires comigo neste vento agreste mais velho do que o próprio tempo, de pés assentes neste solo que é a nossa própria casa, de queixo erguido acima dos ombros vergados pelo peso de tantos dias a caminhar.  A sabedoria dos Deuses escrita nas tuas sombras, a  escuridão transformada em alquimia de luz, diz-se... E eu sei.

Deixa morrer as palavras nesse abismo de silêncio, que a voz sufoque em submissão, esmagada, coberta por véus de sedução maldita, inebriada, transfixa.

Quero que, ainda assim, permaneças direita, orgulhosa, a sangrar, mas inquebrável. Destinada, mas pelas tuas próprias mãos. Criatura em desafio, agachada no seu próprio paraíso. Imersa nesta arte de fuga e enquanto os ventos falam de si no final deste caminho.

Mesmo nos dias em que horas conspiram para o esquecimento não deixes que adormeça a memória de onde foste verdadeiramente feliz.

Livre.

(Fleuma)

 

 

 

 

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Agrada-me de forma solene a lenta deterioração ideológica nas criaturas que pensam comandar os destinos dos outros. É um dos meus raros momentos de alegria genuína assistir a essa decrepitude moral, assente num curvar humilhante perante a estatística do falhanço enquanto vão agitando os braços na procura de algo que venha em seu socorro. Esse patético momento, a minha referência mais do que absoluta para a incapacidade humana em sustentar algum altruísmo coletivo, revela todas as arbitrariedades da massificação das ideologias mais corruptas, insensatas e castradoras do individuo, em nome de uma palavra, uma ideia de perfeição falhada: Democracia - igualdade para todos - responsabilidade para todos.

E não. Não tenho outra solução para esta farsa que não habite em mim próprio. Não tenho nenhuma outra resposta para esta grande Democracia que se imagina como Grande Verdade, que não afirme exatamente o seu contrário. É impossível para mim não imaginar tudo isto como uma nova forma de tirania mascarada com as boas intenções da mais imperfeita das criaturas. Nós.

Não pretendo oferecer consolo, por mais parco que seja, porque temos o que merecemos, pela nossa inépcia, preguiça na reação e conforto no pensamento. Acho apenas delicioso este fraterno conceito de uma Grande Verdade que afinal não existe! Este martelar histérico e constante de um populismo imbecil e manco ora de uma Esquerda disfuncional e esquecida do seu passado, ora de uma Direita debiloide que apenas serve para reproduzir obscenidades e fantasmas fascistas. Esquerda e Direita em frente a um espelho na mesma imitação de macacos ensinados.

A Verdade é que afinal não existe uma Grande e única Verdade, e que tudo se torna muito pior com esta conclusão: a ironia de sermos uma extensão de Nada. De continuarmos a tentar transformar esta inércia na nossa forma vital.

(Fleuma)

 

É amargo o sabor que permanece quando alguém se despede com as palavras " vou para casa", e acabamos por descobrir que nunca mais voltam para nós. Quando descobrimos que afinal esse "vou para casa" é um fim total, o testemunho de um Nada tão vazio como inundado pela desilusão. 

Somos cegos ao ponto de uma ignorância estúpida - esta é uma primeira chicotada para nós, os que ainda permanecem no caminho de casa. Depois? Muitas outras vergastadas, cada fustigar um novo corte para relembrar, cada recordação, uma  nova forma de punição que sabemos, é merecida. Não existe maior inferno do que aquele que nos revela em carne crua e sem piedade, a nossa mais estúpida e profunda cegueira perante o que está em rota de colisão com a nossa própria face.

Este "vou para casa" sem um regresso nunca me consolou como despedida, sempre serviu apenas para retalhar em culpas e remorsos escuros. Sempre envenenou os meus sentidos com aquele ódio cego e intolerante a todas as tentativas de sossego pessoal, a qualquer ideia, por mais distante que seja, de consolo sem culpa. Como se neste "vou para casa" houvesse aquele suspirar irónico perante uma piada sem graça. Talvez fosse bem melhor aceitar que foi uma decisão forjada nas minhas costas por quem também já se afogava e decidiu não resistir. 

Pura e simplesmente isto. 

Pura e simplesmente a maior libertação que raramente conseguimos vislumbrar. Apenas quando é tarde de mais. 

O inferno é exatamente o nosso. Pessoal. Criado pela nossa vontade de manter vivo,  a cintilar como um pequeno verme, que com o assobiar dos anos, vai consumindo e crescendo como um colosso, nunca desaparecendo realmente. Está presente nas manhãs mais claras e de brisa suave; naquelas tardes, entre tragos de café negro e na memória do primeiro sabor de uma bolacha com morango e canela; e nas noites, principalmente na insónia mais perene, quando a solidão nos esbofeteia a arrogância e a cegueira. 

Este "vou para casa"é uma chave que abre a porta para uma saudade dolorosa e uma nostalgia invencível. 

Tudo, rigorosamente tudo, se esfuma neste ódio intimo em frente a este espelho de mim próprio. A esta falta de vontade de aceitar onde falhei.

(Fleuma!)

Podemos tentar reproduzir algum sentido de ordem num caos permanente. Alinhar os objectos numa tentativa absurda de quantificar o que achamos ser nosso e apenas nosso. Sonhar com uma suposta capacidade perfeita para planear os dias, enquanto deixamos as noites entregues à inconsciência de morte que não conseguimos controlar. Vestir a roupa da nossa sorte. Beijar muitas vezes a medalha do santo preferido. Tudo serve. Tudo importa.

Meditar sob o peso das incertezas, enquanto vamos escondendo dentro de nós uma lei de probabilidade que consiga deixar-nos mais humanos. 

E se eu disser que procuro incessantemente essa sagrada e secreta geometria da sorte? Que não procuro a glória, mas antes quero alinhar a possibilidade de conhecer todos os sintomas antes do seu desaparecimento da memória? 

Que a minha respiração se aquieta de olhos cerrados enquanto percorro as linhas de um corpo nú e vou lamentando o que deveria ter dito antes e não disse.

(Fleuma)

 

 

 

Um dia destes vou escrever-te sobre paixões blasfemas. Como é possível transformar o frio mais cortante num calor abrasador que tortura os sentidos e consome cada segundo de duração. Vou descrever-te passo a passo o caminho dos olhos que brilham no escuro mais denso: sabias que isso é possível? Deixar fluir o animal escondido até apurar os sentidos a um limite quase doloroso, transformando cada gesto, cada sopro, numa mensagem maldita que nos encaminha para uma rendição imposta à alma e ao corpo.

Um dia vou citar-te passagens de um catecismo em sombras e onde batem as emoções mais sibilantes. Onde cresce a doutrina da rendição em nome da vontade ímpia de sacrificar o corpo às paixões mais sinuosas, onde a carne esmaga os pensamentos.

Onde a loucura se consome em gritos sem sussurros, entre espasmos nocturnos.

Tingir-te com as palavras enquanto te refugias de mim no teu balandrau negro.

Oferecer-te a eminência de uma atmosfera negra num sumptuoso manto escondido no tempo.

(Fleuma...)

"Leave your breath, as you ascend the clouds.
Subconscious travels, to the depths of space.
Trapped in darkness, discovering the untold."

Eternal Valley

 

A distância entre uma noite em frente a uma multidão que nos escuta, num teste onde verdadeiramente se rasgam todas as barreiras de solidão e afastamento auto imposto, e uma vontade, nunca realmente saciada, de afastamento quase draconiano, é o que mais considero como a definição de amor. Se calhar uma das muitas definições de amor. Se calhar não é nobre e feito de emoções cristalinas devotas. É demasiado pessoal , demasiado voltado para o Arquétipo Si - Mesmo, tão ostensivamente perigoso nesta era de globalização. Mas não consigo vislumbrar amor mais intenso do que nesta passagem: abrir as portas à entrada de outras criaturas para depois, num gesto premeditado e salvador, partir para outras distâncias e solidão consentida. 

Apaixono-me uma e outra vez nesta dicotomia amorosa. Gosto de perseguir estes mundos abençoados enquanto cultivo essa tranquilidade de quem pode ainda escolher, perfeitamente consciente desse privilégio, saboreando o conhecimento de quem cedeu demasiadas vezes.

Sacrificou para ganhar.

(Fleuma...)

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