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Os restos do dia ...
O método mais cruel de subjugação pessoal tem a química da companhia. A constatação das virtudes de uma certa cumplicidade, essa visão de um vazio por encher, onde algo nos falta, é uma chicotada na ilusão de estarmos sós e em paz. Conjurar o destempero de uma solidão é uma arte - um crivo que nos arrasta para longe naquele encanto de embalar virtuoso das notas escutadas antes do sono de criança. Reconheço essa arte porque são demasiadas as vezes que por ela me deixo guiar.
Cego.
E no entanto sempre pressenti uma necessidade de espaço ocupado por outro. Não apenas no pensamento, mas na emoção de sentir o calor de um corpo junto a mim. Algo primário, entranhado e inquietantemente reconfortante como uma saída de fuga. Essa cumplicidade acaba por se tornar um processo vital de sobrevivência pessoal, onde o afastamento e a necessidade de espaço vasto e isolado aumenta dolorosamente a vontade de uma companhia. E como se torna necessário, nesse isolamento, o som de um riso ou uma palavra segredada!
Eu aprendi tanto com este paradoxo! Um egoísta debruçado na companhia de outra criatura. Esse valor inestimável provado e saboreado com todo o requinte no silêncio; esse pulsar tranquilo do corpo nu que descansa ao lado enquanto a noite se estende. Esta é uma verdade insofismável - uns são viajantes outros são portos de abrigo.
Quanto mais necessária se torna a distância maior é o desejo de outro.
(Fleuma)
A Dor e outros Prazeres
999
Atravessar a passagem de alguém sempre me fascinou. O efeito causado por esse cruzamento é ainda mais fascinante; em muito raras vezes, algo fica como marca, e recuso-me a deixar fugir esses traços no tempo. As outras, as que pretendo esquecer, são muitas. Demasiadas. São marcas profundas, pesarosas, antigas, a troçar precisamente disso: esquecimento.
Mas são os cruzamentos que recuso deixar escapar que assombram os meus dias. São essas raras encruzilhadas onde não permito o esquecimento, e vou, metodicamente, tentando regressar uma e outra vez. Essa raridade preciosa que existe em Algo ou Alguém não é uma virtude comum a todas as criaturas ou coisas. Não. É um ponto de referência que consegue desviar a minha vontade naqueles sinais vestidos de portento que demonstram precisamente o que falta em mim, esse Algo ou Alguém onde poisar, esses traços únicos de lucidez distante, a noção de ter encontrado algo que perdi.
Faltam-me demasiado tempo esses alambiques escondidos, expressões de Algo estranho em mim. Faltam-me muitas vezes as palavras para o descrever, e então, em outras passagens e encruzilhadas, aprendo e conheço.
Reconheço.
(Fleuma)
Funkenflug
(999)
Aqueles primeiros passos. Recordo-me bem do caminho estreito pela enseada escura e do estarrecer, enquanto caminhava entre os dois gigantescos promontório de gelo, ali, mesmo junto à praia gelada. Certas memórias são como amantes ciumentas, nunca deixam de permanecer entre as nossas sombras, predadoras em lugar distante, mas em espera. E creio que guardar uma e outra lembrança é mesmo a chave de uma certa reconciliação - uma emoção que nesses dias, havia escapado de mim.
Lembro-me vivamente desse dia/noite. E recordo-me desses promontórios gelados e pálidos, faróis naquele cinzento escuro, gigantes a varrer o céu de chumbo carregado de frio e gelo. Não gosto de me esquecer deles. Gosto de os rever uma e outra vez como um regresso longo e intensamente familiar a Casa - a minha morada. Regresso e caminho até às águas frias enterrando as botas pesadas na areia escura. As correntes aqui são fortes mas a água não explode na margem, antes convida ao nosso silêncio mais espesso, vergados pelo som taciturno do correr da ondulação.
Este espaço pode bem ser o inferno gelado, escuro e melancólico, de muitos. Uma permanente saudade dos brilhos de um Sol tantas vezes ausente. Um bater ritmado para a loucura que quase, quase deixa um vislumbre do fim do caminho. Se não deixarmos abrir as janelas, se mantivermos as portas fechadas com cadeados, é fácil, demasiado simples abrir página a página, o catecismo pessoal dos flagelos mais cruéis, neste mundo sombreado.
Sempre que regresso traço a minha imperfeita humanidade, a minha racionalidade mais estoica regressa a um grau humilhantemente raso, a tormenta de euforia e uma tristeza absurda, pálida, consome aqueles passos até às margens negras. O peso mais colossal espreme a respiração, um medo primário soa aos ouvidos com uma voz rouca de velho conhecido. Tudo reconhecido e tudo já antes sentido.
E depois?
E por fim?
Uma solidão de fortaleza. Um lugar antes indicado e agora visitado sozinho. Reconhecimento e entropia em comunhão. Uma dispersão substituída por certezas que ainda hoje não consigo explicar. Mas deixo que entrem em mim e nestes preciosos instantes ermos e despovoados, sou verdadeiramente mestre de mim próprio. É terrivelmente assustadora esta realidade, porque me abandona numa dimensão de perceção tão cristalina, tão absurdamente liberta de inutilidades desnecessárias, que se fosse um estado permanente já me teria transformado num louco delirante. Horas a fio junto ao mar num turbilhão indescritível, em assomo de recordações, arrancando memórias novas, sonhando perdido.
Não procuro justificar nada disto. Todos temos formas de loucura implantadas em nós. Não há um traço de injustiça neste local perdido mesmo para os que vivem próximos. Apenas a virtude da quietude submissa que afirma realmente o que somos na escala planetária; é terrivelmente assustador chegar a esse local - ainda hoje. Porque antes tudo era apenas desilusão e um torpor venenoso. E esse local poderia muito bem ter sido o meu último poisar.
Mas não. Estranhamente não.
Apaixonei-me perdidamente. Sem retorno. Numa paixão cega.
Como Eu.
(Fleuma)
Hans Lindström
Ad Nauseam