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O Espírito e o Vinho

(999)

Se estivermos atentos é fácil perceber que escondido no sorriso dançam incertezas; não se mostram sempre, e são como aqueles jogos luminosos entre as folhas das árvores que se agitam na luz do sol e na sombra. Um sorriso aberto que se torna estranho quando a atenção se demora um pouco mais na tonalidade fantasma que aparece envergonhada e escondida, intermitente e distante, recolhe-se desligando as luzes. Sedentos, iluminam os olhos e descobrem a alma, reclinam o espírito e despertam nas palavras. Os que, mesmo assim, não falam e apenas olham distantes, habitam outros espíritos, outras escarpas - porque o vinho não agita o seu sono como um pai ao filho antes de sair,  mas antes se torna uma mãe que sussurra uma melodia encantada ao ouvido da sua cria. E para estes parece não haver maior preciosidade. 

Se a noite parece dispersar os espíritos como se fossem cinzas de mais um fogo extinguido, se o que bate dentro do peito é a cadência que nos aproxima do inevitável esmorecer, então tudo justifica esse portento cor de sangue como companhia de uma lucidez obstinada, tudo parece submeter a razão a um beijo tinto de desejo proibido. Inclina o espírito para o livro sagrado e aceita um trago de sangue de um filho de Deus. Escorre uma fome escondida entre sorrisos e sombras ...

E é preciso saborear até ao último trago esse beijo maldito, ímpio de saliva carnal, para despertar o vinho do espírito, esse instante em que te tornas absoluta em meus olhos perdidos. 

 

(Fleuma)

 

 

 

 

 

Sempre questionei como seria caminhar pelos corredores da casa que sempre me pareceu demasiado grande para quem é cego. Mesmo que nesses corredores espaçosos caminhe também ao seu lado um gigante negro de olhos sagazes e vigilantes. Corto conhece todos os  recantos da Grande casa. Corto sabe de todos os passos da criatura cega de olhos azuis baços, caminha ao seu lado em perfeita harmonia, forçando os ângulos com uma suavidade sem descrição para um gigante que sistematicamente força em mim o pensamento mitológico. Habita dentro do Cão negro uma energia que deslumbra as minhas emoções, um instinto de proteção demasiado inteligente, demasiado presente - talvez porque saiba demasiado sobre as dores e desilusões do homem cego. Pelos corredores da casa espaçosa ou entre os ventos que assobiam pelo meio dos ciprestes da alameda que termina e começa nos portões de ferro gigantescos da propriedade, até ao cume que cai sem remorsos para as ondas, tudo me parece imenso ao lado do homem cego. 

E sei que habita nele uma escuridão. Não porque não vê. Desdobra o mundo que o rodeia em cheiros, por sons e por  toques. É como o Cão negro - apenas sem os olhos sagazes. As suas inquietações estão enterradas na profundidade dos primeiros dias do despertar e do reconhecimento de uma existência sem luzes. As suas sombras inquietam-se quando o calor do sol desliza pela face que num instante se torna severa como desperta de um sonho. O vento frio que sopra da margem da praia cinzenta parece cantar uma melodia ao seu ouvido que apenas o Cão entende. Eu não. Permaneço ao lado de ambos como um imbecil deslocado. Vai girando a cabeça com uma graciosidade tímida, às vezes rasgando um sorriso embaraçado por um som, e o Cão responde cerrado os olhos húmidos. Eu cruzo os meus braços com  força numa patética tentativa de descoberta do segredo do seu mundo. 

Sento-me à frente dos dois na biblioteca oval mesmo por baixo da enorme claraboia de vidro transparente. 

Abro um livro que escolho e leio em voz alta porque muitos daqueles volumes não estão escritos para cegos.

Também não foram escritos para Cães grandes e negros. 

Encanta-me ficar ali. Demasiado.

De manhãzinha o sol jorra pelo teto num banho de luz que nos envolve, iluminando a minha roupa e o pelo negro do Cão. Naqueles momentos esporádicos um calor suave habita dentro de mim como uma chama que se apaga quando me retiro. 

Ao entardecer, se for paciente, consigo um vislumbre raro de uma réstia iluminada e dourada de um dia de Outono. Estranhamente, são estes os instantes que sempre me recordam a despedida, o fim de algo; olho para aquelas duas criaturas tão diferentes e tão iguais e não consigo afogar este pensamento.

E quando a noite já vai longa, ali, naquele centro do Universo, acendo a luz do imenso candeeiro e ficamos numa bola cósmica iluminada; eu e o grande Cão negro - secretamente - assombramos os olhos com a dança de sombras que se espalham para lá desta órbita de luz  e vão percorrendo as filas de livros que nos rodeiam. 

Em todos estes instantes, de livro nas mãos, vou lendo, enquanto o homem cego deixa cair a cabeça para trás e olha para cima sem ver, e o Cão inclina o grande focinho silencioso ora para um lado ora para outro. É como um sagrado ritual que vai enchendo os meus dias quando os visito - entre copos de vinho e as conversas trocamos as nossas sombras - eu pelo que vejo e ele pelo que adivinha.  Não existe em mim nenhum sentimento de piedade pelo homem cego. Nem sequer essa arrogante  presunção. Antes a certeza absoluta de um testemunhar inefável e demasiado precioso da mais cristalina definição de Singularidade.

E eu gosto de Singularidades.

Justificam a minha existência.

(Fleuma)

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"A única confissão sincera é aquela que fazemos indiretamente - ao falarmos dos outros.“
Emil Cioran

 

Eu sempre olhei para ele como o aproximar de uma tempestade, quanto mais próximo mais perfeita se torna.  Nunca houve em mim esse principio de cultivar a ideia do culto, transformar algo e muito menos alguém num objeto de adoração intocável. Todos rigorosamente todos são imperfeitos e incapazes, por mais admiração que exista. No entanto, havia dentro dele uma tempestade em torvelinho, um método de loucura quase a cheirar a niilismo descompensado e despreocupado. Uma escuridão saturnal que facilmente assustava porque demasiadas vezes se tornava espessa e impenetrável.

A minha atenção repousava teimosamente no seu sentido de humor que manipulava com a arte de quem possui algo em si como força natural e por isso domina como respira - eloquente e capaz de me provocar o riso. Um demónio de ironia por vezes tão áspera que tornava esse sentido de humor numa sinfonia profana e solene. Surgia como um fantasma, por espaços e repentinamente, rasgava-me a face em traços de descanso descontraído, e logo a seguir desaparecia, deixando-me coberto naquela fome de quem se sabe incapaz do riso fácil e libertador. Havia algo naquele sentido de humor escurecido que conseguia caminhar de pés descalços com a minha dificuldade em aceitar graças irónicas. Rasgava os instantes mais sérios e abria as portas ao pensamento mais iconoclasta que se atrevesse a cruzar a minha mente naqueles dias.

Cruzei muitas vezes os braços. Inclinei as costas para trás na mais submissa das pacificações, enquanto  escutava os seus rasgos implacáveis, tantas vezes em partilha com outros igualmente detidos. 

Nunca imaginando que um dia iria perseguir um fantasma.

(Fleuma)

 

 

 






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