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Nada na minha viagem tem claramente demonstrado essa ideia de que tudo tem um destino definido, como se algures uma qualquer entidade assim o decida por mim. Antes pelo contrário. Tudo o que surge é um densa mistura de caos onde vou desesperadamente tentando construir alicerces de ordem. Mas não consigo deixar de insistir na estranha ideia de uma pausa, ligeira ou mesmo tão profunda que consegue intensificar os meus passos. É tão estranho e complexo e por vezes a escrita parece ser a minha salvação, como extensões do que penso e não consigo justificar. Uma escrita que alguém num dos seus momentos de partilha comigo afirmou ser densa, às vezes quase impenetrável, talhada por esconderijos e labirintos. E eu acabei por deixar assentar essa visão sombria do que escrevo neste local assombrado. Aqui eu oiço os meus pensamentos muito claramente mas tento não deixar que me consumam na loucura. Tento e tento.
No caminho vou, desajeitadamente, misturando químicos para os meus antídotos, entre eles a descoberta que encerra a virtude de conseguir amar algo sem o compromisso da linguagem. Porque se trata de uma maravilha para criaturas como eu, que não sabem escrever com a luxuria de outros. Esta será, então, a minha justificação para a densidade quase impenetrável porque não consigo encontrar outra. E porque gosto de Sombras, gosto de pensar nelas enquanto não durmo, e elas nunca são cuidadosas no seu respirar. Mas também sei que tentam salvar-me em todos os momentos e talvez seja por isso que ainda não queimei este local - para conseguir deixar escapar as suas imagens.
(Fleuma)
Chega-me esse prazer em doses imensas; às vezes na mais monástica devoção - florestas densas, rios que escorrem de rompante aos primeiros raios de sol, montanhas brancas até ao céu nublado de chumbo cinzento. Gatos. O negro cego do olho esquerdo e com o direito de cor pérola verde. O pardo, recurvo na companhia, gosta do cheiro da minha chávena de café.
Solidão. Sentida como a respirar durante as horas silenciosas e frias do amanhecer antes do tempo. Isso. Isso mesmo. Alguém gosta de lhe chamar meditação. Eu não. É apenas a intoxicação pela distância que extasia o viajante. Não procuro explicar nem compreender esta embriaguez por mais que caminhe e esteja ausente. Este vácuo nunca fica cheio. Apenas cresce e devora.
E ela?
Ela é o meu paradoxo e entropia resgatado na minha existência.
Misteriosamente, ela traz densidade aos meus instintos; estranhamente, abunda em mim a certeza de que sem ela não existe nada - mas é com ela que a mais simples expressão, o gesto mais desnudado ou o sorriso mais suave se veste do meu prazer mais inefável.
(Fleuma)
Rasgar as memórias como se fosse possível apagar do pensamento as sombras dos dias em que a desilusão parece sentada em cima dos nossos ombros, é um acto perfeito de derrota pessoal, um desconhecer dessa criatura que caminha ao nosso lado todos os dias, dissimulada e esquiva, uma parte de nós inseparável. Essa tentativa inútil que insiste em enterrar certas agonias debaixo dos escombros de uma esperança de melhores dias sem este veneno, é o traço fixo, sem tremor dessa besta perfeita, a que caminha connosco, a que se encontra sentada em cima de nós. Não adianta. Eu sei disso todos os dias. Acabei por desenhar o seu caminho e, principalmente, o lugar onde se esconde.
Não volto a tentar rasgar impossíveis e deixei a humilhação da fuga, recuso-me no entanto, a vergar a cabeça ao vazio oscilante que habita esse labirinto, como quem se reconhece nele, por ele passa com um acenar, e aprendeu a sobreviver com o seu veneno espumoso. Mas ficaram as cicatrizes no pensamento e na pele. Marcas de que me orgulho. Estranhamente orgulhoso como se não soubesse que me vai assassinando lentamente.
E afinal, não é exactamente isso que me arrasta para mais um dia?
(Fleuma)