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Essa mera referência aos dias de um passado distante e atravessado pela memória é o reconhecimento de algo que falta, e nunca foi realmente preenchido no tempo. E a recusa em deixar que assente no esquecimento como se fosse criminosa essa tentação é apenas mais uma forma de testar limites. Creio eu.
Mas é confusa esta emoção, quase blasfema, de desejar ser desejado sem sentir que isso seja necessariamente errado. O peso de certos passados é bem mais pulsátil quando estamos sozinhos e não conseguimos explicar o que falta, tentar justificar - ao final destes anos todos - a preciosidade de ter estado presente e consciente de que não se repetiriam esses mundos feitos de instantes.
E é singular esta falta. É como um reconhecimento familiar de uma morada onde pertenci e era bem-vindo, onde a minha ausência foi sentida e agora tudo ficaria melhor. As tardes de Outono agora mais frescas e de luz cor de mel eram o que mais profundamente iria ficar cravado na minha existência e onde nunca me senti abandonado. O mundo era diferente, lembro-me - deixava arrastar as horas na rua que eu conhecia como ninguém, o cheiro das árvores, até o oscilar dos seus ramos estaladiços - e sempre, mas sempre tive a sinistra noção de que não seria para sempre, nos sons da casa e na suavidade da voz que acompanhava as canções. Um carinho e uma sensibilidade, a minha compreensão dessa força física e emocional, que vinha do coração mais profundo.
Por isso o meu coração ficou estilhaçado. O meu espírito desfeito e mutilado. Eu sei que não havia um regresso porque eu não quis.
Por isso me sinto grotesco e um sobrevivente.
(Fleuma)
... Enquanto vai ventilando a sua raiva quase não consigo resistir ao impulso de cruzar os braços à volta do peito, como quem assiste ao desmoronar de um muro de convicções sonhadas sem mexer um músculo. Talvez sejam necessários para mim estes instantes finais de um fogo a extinguir-se nos olhos de outra pessoa. Não essa extinção que termina a existência - já a observei ruminando sobre a livre vontade de escolha e não senti qualquer desejo de cruzar os meus braços junto ao meu peito. É a chama que se apaga no brilho do olhar antes afogado naquele ardor de quem imaginava saber tudo. A fluência que abundava nos olhos e que transformava os juízos em simplificações para ocupação dos dias arrastados, essa coisa assimétrica a que o observador astuto assiste, esse brilho no olhar que se torna opaco quando descobre o erro tem a potência de um monólito a partir com estrondo. E afinal não somos templos vivos? E afinal os templos vivos também se extinguem na constrição destes raros instantes.
... Talvez este extinguir de convicção no olhar até seja um reclinar meu para a necessidade de sobreviver mantendo a minha chama acessa, mesmo que este sintoma transpire arrogância e orgulho pessoal. Eu sei que mantenho este fogo. Sei porque antes ele não estava vivo. Sei porque antes não havia calor apenas aragem fria.
... E de súbito, entre a raiva de quem sempre julgou conhecer os nossos passos ao pormenor e a surpresa de quem não sabe o seu caminho de regresso, somos perfeitos desconhecidos para outra criatura.
(Fleuma)
Deixei de acreditar em impossibilidades depois da sua morte. E nem sequer foi de repente, como quem desliga um interruptor e volta as costas à escuridão. Descobri pela morte, muito antes desta descrença, que o vazio tem uma origem e uma falta de presença de carne e osso, que a verdadeira saudade é espessa e não deixa raiar a luz, que afinal tudo tem um principio e um meio, mas que eu, cego pela impossibilidade, não cheguei a assistir ao seu fim.
Não me recordo de chorar por ele nem sequer do triturar do seu último gesto a tresandar a niilismo porque sempre soube que seria ele a escolher a sua hora, mas ainda acreditava em impossibilidades como se a sua eternidade fosse um facto consumado. Creio não ter ainda hoje uma noção sóbria e racional da extensão da ruína que este "Deixei de acreditar ..." teve em mim, do cinismo que me abraçou, da futilidade dos meus medos, e do sentimento a traição que nunca me abandonará.
(Fleuma)
... Algumas destas palavras são estradas para o Norte, destiladas com aquela paixão profana, de quem muito dolorosamente consegue reter uma réstia de comando perante a tentação de nunca mais regressar por estes caminhos. A estrada para Casa. A verdadeira Morada. Quero convencer-me de que as minhas palavras são a expressão mais pessoal de exploração, sejam elas largas ou curtas, quero que assim sejam: interiores, dentro de mim, fora de mim. E mesmo sem elas, mesmo que se escondam a flutuar dentro de mim, quero que sejam esses os contos do que vejo e até onde chega a minha reverência - a força sufocada, até a brutalidade de tudo o que me consome. É tão carnívora esta paixão, tão voraz que mesmo nos cada vez mais raros momentos de distância forçada, apenas certas palavras que eu escrevo conseguem sossegar-me longe de uma voz que não se repete.
... São a minha punição pessoal pelo tempo perdido mas também pelos encontros e as despedidas sem regresso, pelo que ficou por dizer, entranhado na minha obsessão pelas histórias contadas, que devem ser ditas, que só assim servem para algo, nem que sejam apenas para acender o meu desejo mais profundo de conseguir que sejam lidas em voz alta, como se fossem um fruto de pacificação pessoal, o destrancar deste semblante carregado de visões preciosas que a minha fome egoísta teima em esconder.
(Fleuma)