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Os livros de notas estão cheios de fragmentos, estilhaços de intenções pessoais, conclusões curtas e encontros.
Como...
Duas criaturas juntas, sentadas na varanda a meio da noite, olhos postos nos pirilampos e com milhares de estrelas no céu nocturno. Olhos ora num lado ora no outro. Diria que o silêncio tem sabor nestes momentos, onde a noite se torna violentamente bela, e que se revela demasiadamente fácil aceitar a ideia de que as constelações falam uma linguagem própria, apenas revelada naqueles precisos instantes, fragmentos onde não é possível apenas testemunhar mas necessário registar em qualquer lado que seja.
Este registo de uma aparente banalidade é uma submersão nos fragmentos que alimentam os passos silenciosos de outros. O que pode perfeitamente esboçar na indiferença de tanta gente - os meus fragmentos religiosamente preservados, talvez venham, numa dessas noites de desencanto de uma outra alma, a ser anotados numa margem do pensamento como traços do que sou.
E porque acho que não se devem folhear estilhaços não consigo passar página por página os livros de notas dos outros, mesmo que por vezes os retenha anotando caminhos e olhares esquivos. Traços das palavras que começam potentes e algures pelo meio escurecem pensativas, vão deslizando para fragmentos, estilhaços de catarse que muitas vezes recortam os dedos a quem o tenta.
(Fleuma)
Caminha em linha recta. Caminha pelas noites ardentes do Verão. Sem pressa, entre as cordas do sonho. Passo a passo pelo amanhecer do amanhecer. E não existe muito mais que não esteja já a morrer. Sem a solenidade encantada do bardo poeta, frente a frente como insectos num jarro de morte, perdidos sem saber o caminho de regresso. Caminha em passo recto ao largo das máquinas de Cristo, pelos olhos cerrados dos recusados, por margens e rochas e crânios na beira da estrada, naquele arejar de quem passa sem um gemido. Caminha pelo solo de liberdade onde cava a própria sepultura e de onde se ergue todas as noites. É tudo para si próprio e caminha em linha direita, pela prisão da aranha, passeia na linha do pensamento, pelo esquisso fino e ténue, a linha branca entre todas as outras marcas de linhas, o meio de todos os traços, a troca de olhares.
Esta noite caminhou no frio mais cruel. Sentiu os ventos entre as portas. De noite deixou o veneno escorrer pela sola dos pés até ao chão gelado. Quis matar o monstro com a fome.
Esta noite quis punir o monstro com os pensamentos cristalinos e lavados de uma noite clara.
(Fleuma)
É impossível que no fim, esta saudade e esta solidão não se transformem numa punição física.
Lembro-me da primeira vez que li o que escrevia num daqueles dias de silêncio absoluto e cadavérico, desalinhado com as horas, sem distinguir se era manhã se afinal já estava a anoitecer. Lembro-me como fui deixando avançar os olhos pelas palavras, que acredito, foram escritas com aquela distensão de quem respira uma sofisticação desconhecida em si, naquele acto descuidado de libertar os pensamentos através de emoções que em mim estão adormecidas.
Pressenti um monstro que parecia caminhar sozinho, que parecia ter retirado algo suspeito de dentro de si e o atirou para o chão branco de uma página. Queria ver o que se mexia dentro daquela caixa negra. Acho que a consegui abrir com a imprudência do cansaço...
Miséria, tristeza e uma dor surda à flor da pele.
Uma solidão e ao mesmo tempo uma ânsia de continuar, como se tivesse uma absoluta e cristalina certeza de que morreria se perdesse tudo isto.
(Fleuma)
Vejo os meus dias através do olhar das noites de sono, na resistência ao adormecer, como um pressentimento de morte sem regresso. Gosto de me alongar na insistência em explicar que estou atento ao que me rodeia - talvez até demasiado atento. Que este mundo se revelou afinal numa armadilha sinistra e de impossível tolice e que mesmo assim eu consigo isolar pensamentos e refúgios, que ainda é possível encontrar abrigo nas distâncias percorridas.
Valáquia é um desses locais entrincheirado nos meus caminhos. Escondida e timidamente desconhecida tem a persistência do meu Amor porque gosto dessa timidez desconcertante, porque me apaixono ardentemente nos caminhos onde é pungente o cheiro do passado, e só o silêncio se despe para os sentidos. Este é um respirar sem sofreguidão, um sussurrar de passos de outrora entre as paredes dos castelos, onde a noite se veste de mitos...
E de manhã!?
As mulheres são belas e os homens são austeros e de olhar fixo. É um pequeno universo num outro sistema de estrelas - aqui ainda é possível escutar o eco dos nossos passos como se fossem cânticos do pensamento, o silêncio força uma paixão sem limites, a antiguidade é doce como o colo de uma amante.
Neste ponto único é tão fácil parar e escutar o sossego da paisagem solitária, enquanto o coração dança pelos caminhos perdidos e estreitos. Neles a água parece escorrer para o nosso prazer e um o beijo tem aquele tom voraz das paixões verdadeiras.
Únicas.
Para sempre.
(Fleuma)