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A frequência com que faço exactamente o mesmo caminho para chegar e sentir o abrigo da velha cabana no meio de nada é a mesma de outros tempos, quando a velho ainda me acompanhava numa espécie de ritual de iniciação passado de geração em geração. Creio que o velho senhor muito mais do que eu na minha arrogância, conhecia as virtudes da ritualização da solitude mais áspera, cultivada pelos anos passo a passo, não como uma obrigação mas como uma sujeição consentida naquele amor tão intensamente pessoal, que se não for domado nos transforma irremediavelmente. Nesses dias sempre lhe pressenti uma despedida nos olhos azuis turvos pela velhice enigmática, pela maneira como girava a cabeça pelo vazio branco à nossa volta, naquele estremecer tranquilo de antigo pássaro que nunca parece perder a altivez dos anos, exímio no trajecto até à cabana de madeira neste estranho universo de vazio invernal. Recordo-me de jurar em silêncio a mim próprio nunca abandonar este caminho até à cabana, de venerar o seu aprimorar de sentidos e o sentimento de ausência tão potente que se torna na torrente que volta a encher o meu mundo. O velho compreendia isso como se eu fosse uma sua ramificação, descobri muito depois e enquanto caminhava por aqui em absoluta solidão. Creio que nestes passos nem a Morte tem fome de me levar. Até Ela parece aceitar a pacificação deste caminho no frio branco e inclemente do Norte até à entrada do abrigo, como um proveito que me concede pelo respeito a quem caminha. Sei que o velho senhor sempre soube desses portentos em que a distância nos parece mergulhar sem no entanto nos afogar. Desses baptismos e encontros. Demónios e Deuses que habitam em nós. Em mim. E eu aprendi a centelha de um amor que apenas se reconhece quando atravessamos esta solidão desoladora, porque é neste vácuo seminal que se sente a falta dos ausentes, e quando a velha cabana aquecida nos revela o assombro de um verdadeiro abraço de salvação.
Consigo caminhar durante horas e em dispersão, ainda como se esse velho senhor estivesse ao meu lado, a respirar tranquilamente, arrebatados pela ausência de peso nos pensamentos, com as botas a pisar a neve como amarras a este mundo que nunca parece ser o meu, sentindo a veneração do silêncio à volta num inclinar de peregrino. E juro que ainda agora lhe sinto os passos suavizados pela neve nas botas a entrar na cabana. Que observo a sua mestria enquanto acende a lareira e esfrega as mãos sem as grossas luvas. E juro que ainda agora adormeço profundamente no baloiçar das nossas cadeiras a beber chocolate quente e a comer nacos de pão escuro com queijo, enquanto lá fora é noite de mil auroras boreais.
Poderia morrer neste mesmo instante.
(Fleuma)