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Escutar ...

Um joelho no solo ...

A cabeça reclinada ...

Encostada ao espírito ...

Sem adormecer ...

Que o sonho é sibilante apenas ao escutar da insónia ...

(Fleuma)

 

A insistência dos que negam o valor imensurável da violência em nós carrega sempre aquele fardo de uma cegueira obstinada e ignorante, apenas corporizada na ideia de que tudo o que é violento provoca dor e sofrimento. Sei um pouco dessa violência. Da minha violência pessoal. Nada no mundo exterior consegue ser mais brutal e doloroso do que a minha própria capacidade de abuso de força em mim próprio, porque conheço todo o meu catecismo de aflição intima, sou um mestre no manejar do chicote do algoz e pouco me importam os que pensam nisto como uma impossibilidade. Reconheço-lhe certos labirintos de escuro absoluto onde demasiadas vezes me arrasto por buracos, e muitas vezes pareço ceder e ajoelhar. E no entanto é esta a violência deste mundo. Através desta lente tenho visto a mecânica complexa de outras criaturas com uma clareza que as transforma em engenhos preciosos. No reconhecer destas pulsões tenho adormecido num assombro que de uma outra forma, negando, nunca aconteceria. A violenta capacidade do ser humano para fomentar a discórdia, as doutrinas ideológicas que sistematicamente nos arrastam para o abismo e o nosso talento para criar destruição, são apenas algumas derivações desta violência. 

Mas, e essa violência forjada numa brutalidade muito pessoal e que a transforma numa beleza divina? Algo visceral e convulsivo. E a violência torcionária da Natureza que de tão brutal ser se torna num principio único e imutável?

Sou violento! 

Sei que o sou nas minhas paixões e entregas. Eu sei que tudo em mim se reduz demasiadas vezes a testar e a calibrar emoções; necessito de uma mão para sair do fosso onde me deixo resvalar sem a pretensão de voltar a subir. O ódio, a raiva, são tão possantes como o amor que eu sinto, e já bebi muitas vezes deste estranho caldo para aceitar também a violência como um acto de entrega e sacrifício por outros. Esta clareza de quem sabe em cada fibra de si que certos sacrifícios por outros seriam perfeitamente justos e aceites sem um pestanejo tem tanto de violento como de belo. Talvez até seja o que quem me desconhece sempre gosta de afirmar - algo nisto me torna numa criatura perigosa. Não conseguem destrinçar o cinismo e o calculismo frio das minhas devoções. Se o soubessem, nem que fosse apenas por instantes, saberiam que o meu sacrifício seria apenas em nome de alguns, uns poucos; que jamais o faria em nome de um martírio religioso ou político! Que a beleza profana de uma certa violência, para mim, apenas encontra sentido na cedência aos que me arrastam dos buracos e nunca me abandonam.

E pouco me importam os que não acreditam e achariam impossível aceitar esta certeza.

(Fleuma)

 

"Aqueles que amam com grande paixão nunca poderiam amar várias mulheres ao mesmo tempo: quanto mais força há na paixão, mais o seu objecto se impõe."

Emil Cioran - " Nos cumes do desespero"
 
 
 
 
Existe um profundo desespero na minha forma de agarrar o corpo despido nas últimas horas da noite, quando a luz do dia retorna tão tímida, como se o quisesse esbatido com o meu, graduando as minhas sombras e os meus desejos mais famintos. Nestas horas de meia-luz, quando os olhos brilham imensos, cresço desgovernado na animalidade que noutros momentos acorrento, na torrente das pernas suaves nos relevos do meu corpo congestionado, nos dedos longos que pressionam a grossura do meu pescoço que nunca parece ter repouso, na minha sofreguidão infatigável que necessita do sorriso de dentes brancos como a neve, dos cabelos longos e soltos, do cetim da pele que cheira a maresia glaciar, para que se vergue e retire de novo para a escuridão. Não existe em mim nenhuma dessas centelhas poéticas ao amor, antes a dolorosa consequência de uma paixão tão pulsátil que se não lhe escutar o sussurrar ofegante, o morder até às gotas de sangue nos meus ombros, não descansará até que eu fique louco e em pedaços. Nunca senti a urgência daqueles que parecem navegar numa aura de entrega quase etérea, celeste no toque, quase num medo que assuste. Tenho que sentir esse animismo de comunhão com outro animal de sentidos sem essa candura poética, que me consuma este desespero incansável e apague esta consciência nas horas antes do sol. É isto que pulsa em mim, uma raiva de possuir até fundir em corpos nus, entregar a minha alma e energia para que me aceite e domine porque sei da minha própria redenção num abraço apertado corpo contra corpo, no sorrir secretamente triunfante, na ponta dos dedos suaves, cálidos e mestres nos meus lábios, tentadores na língua, adormecendo por fim a minha vontade de morder e rasgar.
 
E nestas horas finais o Tempo é meu, a Vida é minha e apenas minha.
 
O encantamento final é sussurrado aos meus ouvidos e nem os Deuses deixo que o escutem. 
 
(Fleuma)
 
 
 
 

 

(sagrada) Reynisfjara

(Por baixo da Luz fugaz ...)

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A frequência com que faço exactamente o mesmo caminho para chegar e sentir o abrigo da velha cabana no meio de nada é a mesma de outros tempos, quando a velho ainda me acompanhava numa espécie de ritual de iniciação passado de geração em geração. Creio que o velho senhor muito mais do que eu na minha arrogância, conhecia as virtudes da ritualização da solitude mais áspera, cultivada pelos anos passo a passo, não como uma obrigação mas como uma sujeição consentida naquele amor tão intensamente pessoal, que se não for domado nos transforma irremediavelmente. Nesses dias sempre lhe pressenti uma despedida nos olhos azuis turvos pela velhice enigmática, pela maneira como girava a cabeça pelo vazio branco à nossa volta, naquele estremecer tranquilo de antigo pássaro que nunca parece perder a altivez dos anos, exímio no trajecto até à cabana de madeira neste estranho universo de vazio invernal. Recordo-me de jurar em silêncio a mim próprio nunca abandonar este caminho até à cabana, de venerar o seu aprimorar de sentidos e o sentimento de ausência tão potente que se torna na torrente que volta a encher o meu mundo.  O velho compreendia isso como se eu fosse uma sua ramificação, descobri muito depois e enquanto caminhava por aqui em absoluta solidão. Creio que nestes passos nem a Morte tem fome de me levar. Até Ela parece aceitar a pacificação deste caminho no frio branco e inclemente do Norte até à entrada do abrigo, como um proveito que me concede pelo respeito a quem caminha. Sei que o velho senhor sempre soube desses portentos em que a distância nos parece mergulhar sem no entanto nos afogar. Desses baptismos e encontros. Demónios e Deuses que habitam em nós. Em mim. E eu aprendi a centelha de um amor que apenas se reconhece quando atravessamos esta solidão desoladora, porque é neste vácuo seminal que se sente a falta dos ausentes, e quando a velha cabana aquecida nos revela o assombro de um verdadeiro abraço de salvação. 

Consigo caminhar durante horas e em dispersão, ainda como se esse velho senhor estivesse ao meu lado, a respirar tranquilamente, arrebatados pela ausência de peso nos pensamentos, com as botas a pisar a neve como amarras a este mundo que nunca parece ser o meu, sentindo a veneração do silêncio à volta num inclinar de peregrino. E juro que ainda agora lhe sinto os passos suavizados pela neve nas botas a entrar na cabana. Que observo a sua mestria enquanto acende a lareira e esfrega as mãos sem as grossas luvas. E juro que ainda agora adormeço profundamente no baloiçar das nossas cadeiras a beber chocolate quente e a comer nacos de pão escuro com queijo, enquanto lá fora é noite de mil auroras boreais. 

Poderia morrer neste mesmo instante.

(Fleuma)

Um primeiro gesto de violência no agarrar dos pensamentos enquanto foi esfregando a minha consciência na terra até sangrar. Acho que foi necessária essa humilhação muito pessoal, como se toda essa brutalidade fosse um despertar de algo em mim que descansava em coma profundo, alimentado num soro de raiva e ódio tão venenoso que não era possível vomitar, esvaziar de mim. Tudo porque aceitar a cegueira se torna muito mais fácil mesmo que nos aproxime do abismo. 

Sempre foi certa em mim a ideia que impõe as margens da comiseração auto infligida como um acto de fraqueza destrutiva, e sempre foi muito mais do que isso que alimentou e atravessou os meus dias ao extremo de se tornar num eclipse sem fim, um caminhar cego de mãos estendidas, demasiado absorto em pensamentos de morte e no fim destes dias. Um primeiro rasgão tão violento e doloroso que agita os nossos dias a as noites nunca mais é esquecido. O reconhecimento da sua necessidade para a minha sobrevivência abriu as portas para mais golpes. E é tão estranho, quase absurdo, que um processo de flagelo nos torne mais fortes.

No entanto é tão verdadeiro como os instantes desta minha dispersão. 

Um despertar necessário. Alinhado por pontas perfeitas. Tão necessário como as mãos no meu rosto que levantaram a minha  cabeça. Finalmente com os olhos longe do chão.

Tão fundamental como aquela palavra de amor sussurrada aos meus ouvidos.

Uma. Apenas uma.

(Fleuma)

 

É neste preciso instante que eu gosto do cansaço, como uma solene recompensa por tudo aquilo que faço enquanto não chega. Por muito gloriosas que sejam as riquezas da insónia para a alma, o que eu quero é cair na cama sem pensamentos, raspar de mim todos os resíduos do dia, escorrer os seus minutos e mergulhar nesse Nada. 

Gosto. 

... Desses momentos de quase não-existência e prelúdio que nos ensina a morte como esquecimento apagado. 

Gosto!

Achas estranho?

E no entanto hoje estes são os meus pensamentos a rasparem na tua porta de entrada, como assombros distantes, suaves como os caminhos da minha paixão, frementes para não me esquecer de ti, mesmo já não pertencendo a este circulo e mundo. 

Mesmo assim quebro a minha marcha e ainda regresso, nem que seja apenas com a brevidade da ponte dos curtos minutos que antecedem esta quase não-existência dos que adormecem. Finalmente. Esta recompensa final que gosto ainda de cultivar dentro de mim nunca esquecendo para onde vou mesmo olhando para trás.

Talvez nunca seja algo que te apeteça compreender. Talvez seja algo que rapidamente afastes com um gesto suave como quem afasta fumo. Mas eu prefiro negar isso. Quero pensar que consigo ultrapassar as tuas fronteiras e agarrar no teu resguardo, mesmo que no teu poiso mais escuro e raramente palmilhado. Esta é uma virtude de quem dorme sem sonhar porque é de olhos abertos que o sonho tem sabor e alimento. Só por isso vale a pena regressar aqui. 

A Ti ...

(Fleuma)

A VIDA
 
Já não sou grande coisa nisto de viver a vida.
Por vezes acordo e já não a reconheço.
As casas, os carros, a mobília, os livros são um borrão
enquanto as árvores, os pássaros e os cavalos são agradáveis
e nítidos. Também compreendo a música
de uma variedade antiga - pré-século dezanove.
Onde estive eu?
A recontar flores a partir da janela do comboio
entre Sevilha e Granada, touros e oliveiras também.
Não consegui dormir no quarto do Lorca porque estava assombrado.
Até o vinho que levei estava assombrado.
Espanha nunca recuperou deste assassinato.
As suas noites estão repletas dos dentes vermelhos da morte.
Muitos se juntaram a ele. É impossível contar,
para cima e para baixo, pássaros e flores ao mesmo tempo.
 
JIM HARRISSON,
"Que os teus cães mortos não te encontrem no paraíso"
 

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