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Sempre questionei como seria caminhar pelos corredores da casa que sempre me pareceu demasiado grande para quem é cego. Mesmo que nesses corredores espaçosos caminhe também ao seu lado um gigante negro de olhos sagazes e vigilantes. Corto conhece todos os  recantos da Grande casa. Corto sabe de todos os passos da criatura cega de olhos azuis baços, caminha ao seu lado em perfeita harmonia, forçando os ângulos com uma suavidade sem descrição para um gigante que sistematicamente força em mim o pensamento mitológico. Habita dentro do Cão negro uma energia que deslumbra as minhas emoções, um instinto de proteção demasiado inteligente, demasiado presente - talvez porque saiba demasiado sobre as dores e desilusões do homem cego. Pelos corredores da casa espaçosa ou entre os ventos que assobiam pelo meio dos ciprestes da alameda que termina e começa nos portões de ferro gigantescos da propriedade, até ao cume que cai sem remorsos para as ondas, tudo me parece imenso ao lado do homem cego. 

E sei que habita nele uma escuridão. Não porque não vê. Desdobra o mundo que o rodeia em cheiros, por sons e por  toques. É como o Cão negro - apenas sem os olhos sagazes. As suas inquietações estão enterradas na profundidade dos primeiros dias do despertar e do reconhecimento de uma existência sem luzes. As suas sombras inquietam-se quando o calor do sol desliza pela face que num instante se torna severa como desperta de um sonho. O vento frio que sopra da margem da praia cinzenta parece cantar uma melodia ao seu ouvido que apenas o Cão entende. Eu não. Permaneço ao lado de ambos como um imbecil deslocado. Vai girando a cabeça com uma graciosidade tímida, às vezes rasgando um sorriso embaraçado por um som, e o Cão responde cerrado os olhos húmidos. Eu cruzo os meus braços com  força numa patética tentativa de descoberta do segredo do seu mundo. 

Sento-me à frente dos dois na biblioteca oval mesmo por baixo da enorme claraboia de vidro transparente. 

Abro um livro que escolho e leio em voz alta porque muitos daqueles volumes não estão escritos para cegos.

Também não foram escritos para Cães grandes e negros. 

Encanta-me ficar ali. Demasiado.

De manhãzinha o sol jorra pelo teto num banho de luz que nos envolve, iluminando a minha roupa e o pelo negro do Cão. Naqueles momentos esporádicos um calor suave habita dentro de mim como uma chama que se apaga quando me retiro. 

Ao entardecer, se for paciente, consigo um vislumbre raro de uma réstia iluminada e dourada de um dia de Outono. Estranhamente, são estes os instantes que sempre me recordam a despedida, o fim de algo; olho para aquelas duas criaturas tão diferentes e tão iguais e não consigo afogar este pensamento.

E quando a noite já vai longa, ali, naquele centro do Universo, acendo a luz do imenso candeeiro e ficamos numa bola cósmica iluminada; eu e o grande Cão negro - secretamente - assombramos os olhos com a dança de sombras que se espalham para lá desta órbita de luz  e vão percorrendo as filas de livros que nos rodeiam. 

Em todos estes instantes, de livro nas mãos, vou lendo, enquanto o homem cego deixa cair a cabeça para trás e olha para cima sem ver, e o Cão inclina o grande focinho silencioso ora para um lado ora para outro. É como um sagrado ritual que vai enchendo os meus dias quando os visito - entre copos de vinho e as conversas trocamos as nossas sombras - eu pelo que vejo e ele pelo que adivinha.  Não existe em mim nenhum sentimento de piedade pelo homem cego. Nem sequer essa arrogante  presunção. Antes a certeza absoluta de um testemunhar inefável e demasiado precioso da mais cristalina definição de Singularidade.

E eu gosto de Singularidades.

Justificam a minha existência.

(Fleuma)

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"A única confissão sincera é aquela que fazemos indiretamente - ao falarmos dos outros.“
Emil Cioran

 

Eu sempre olhei para ele como o aproximar de uma tempestade, quanto mais próximo mais perfeita se torna.  Nunca houve em mim esse principio de cultivar a ideia do culto, transformar algo e muito menos alguém num objeto de adoração intocável. Todos rigorosamente todos são imperfeitos e incapazes, por mais admiração que exista. No entanto, havia dentro dele uma tempestade em torvelinho, um método de loucura quase a cheirar a niilismo descompensado e despreocupado. Uma escuridão saturnal que facilmente assustava porque demasiadas vezes se tornava espessa e impenetrável.

A minha atenção repousava teimosamente no seu sentido de humor que manipulava com a arte de quem possui algo em si como força natural e por isso domina como respira - eloquente e capaz de me provocar o riso. Um demónio de ironia por vezes tão áspera que tornava esse sentido de humor numa sinfonia profana e solene. Surgia como um fantasma, por espaços e repentinamente, rasgava-me a face em traços de descanso descontraído, e logo a seguir desaparecia, deixando-me coberto naquela fome de quem se sabe incapaz do riso fácil e libertador. Havia algo naquele sentido de humor escurecido que conseguia caminhar de pés descalços com a minha dificuldade em aceitar graças irónicas. Rasgava os instantes mais sérios e abria as portas ao pensamento mais iconoclasta que se atrevesse a cruzar a minha mente naqueles dias.

Cruzei muitas vezes os braços. Inclinei as costas para trás na mais submissa das pacificações, enquanto  escutava os seus rasgos implacáveis, tantas vezes em partilha com outros igualmente detidos. 

Nunca imaginando que um dia iria perseguir um fantasma.

(Fleuma)

 

 

 

 

Atmosferas são como pessoas. Reconheço uma intensa paixão por pessoas atmosféricas, que oscilam por ventos agrestes caminhando por labirintos gelados, e por fim, por fim, deliciosamente se tornam suavemente cálidas. Estas criaturas são pactos de um sangue atmosférico, cruelmente dotadas daquele vigor sanguíneo cuidadosamente calibrado para forçar a paixão mais bruta e crua. Nunca nos amam por pedaços. Nunca pretendem a nossa mudança. Conquistam a nossa totalidade. Absorvem a nossa sombra de braços abertos. Bebem de tempestades. Das nossas agitações e espasmos.

Amo-as.

Intensamente.

Em raiva. 

Essas atmosferas são como um arrebatamento em delírio que respira em nós. Algumas, serão as que desejo ver nos últimos instantes de uma existência sombria, as mais belas e brilhantes, as mais violentas e lacerantes. 

E nesses últimos instantes, antes desse Nada absoluto, em egoísmo, vou desejar guardar toda a beleza dessa brutalidade, toda a salvação desses braços que se abriram para mim.

(Fleuma)

Aquele preciso instante de lucidez que nos torna loucos.

 

 

Falou comigo com a violência sôfrega que o tempo memorizou em si, consagrando olhares e silêncios. Nos ouvidos embrutecidos soaram os caminhos dos riachos com que tantas e tantas vezes sonhei no passado!

Gosto de me ajoelhar junto a ela, reconhecer-lhe a pele perfumada, deitar o meu tronco nas suas pernas enquanto os seus dedos longos e suaves varrem o meu cabelo. 

Gosto. 

Silencia os meus torpores noturnos enquanto lhe ofereço a minha quase desconhecida tranquilidade, um brotar animalesco de quem se abriga de tormentas procurando permanecer ali, imutável, inerte, sem mover um músculo. Algures, entre o gelo e o calor fogoso do seu corpo, entre o lobo e o corvo, a sua canção consome o meu ódio, as minhas fraquezas, sossegando os meus dias.

(Fleuma)

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Gosto de ruminar sobre a luz das estrelas com ele.

Estranho.

Pressinto sempre que sabe muito mais do que eu.

(Fleuma)

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Qual é realmente a possibilidade, num dado instante, da eternidade? Ainda que por um momento de loucura? Mesmo para o descrente em vidas eternas? Ainda que sentada num último ponto de luz que insiste em desaparecer deixando apenas uma ínfima memória.

Memória. 

É isso.

São os teus passos que deixam aquele sentimento de um legado perdido agora recuperado. São as tuas palavras que me recordam as cinzas de lugares perdidos. 

Isso mesmo. Eternidade.

Creio que transforma o vácuo dos que já não estão comigo. Acho que esse "para sempre" é uma panaceia que tenta encher o espaço criado, como se isso fosse realmente possível. E vou vampirizando tudo o que é deixado no caminho - sempre descrente - querendo sempre mais.

Hoje escutei essa melodia distante vinda de ti. 

Acordei de um sono sem memórias e foi como se tivesse regressado da Morte. Senti-me imenso! Vivo! Alinhado com o que vibra dentro de ti. Salvo. Protegido.

Estarei a ficar louco?

(Fleuma)

 

Reconheço esse fascínio pelo fantasmagórico - seguir os  passos como se eu fosse um fantasma. Caminhar junto, no lado esquerdo, como um velho demónio, enquanto vou olhando com olhos que não os meus, labirintos escondidos do mundo, a outra sombra despida de margens e portas fechadas. Entre as batidas ansiosas das noites de insónia, silencioso, testemunhar um último estremecer antes do adormecer do corpo finalmente pacificado. Sair muito antes do amanhecer. Sem sentir a caricia de uma manhã radiosa

Esse é um estado ideal, perfeito, de instantes desconhecidos - conhecidos apenas entre silêncios partilhados. E não existe maior graciosidade do que aquela em que os sabores mais amargos são como antecipações de uma outra coisa, mesmo que mais negra e marcada a fundo. Doce. 

E é estranha a textura desta alquimia - pelo menos para mim - é de uma alquimia que se revela. Não a consigo tingir senão das minhas próprias cores. Acho que essa seria a verdadeira fórmula de uma tempestade perfeita - detalhar o caminho até chegar a compreender este fascínio.  Se calhar não interessa a mais ninguém a não ser a mim próprio. Mas sei que vivo faminto por demasiado tempo. Sei deste instinto.

Não me esqueças -  caminho pelo lado esquerdo da tua mão.

(Fleuma)

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O primeiro passo para essa reconciliação cintilou na noite em que deixei de me importar com o que outros pensavam de mim. Foi uma estranha emoção essa. Estranha e sufocante. E claro que nunca surgiria rapidamente. Jamais. Levei anos a pensar que o erro era meu, a ensaiar mudanças forçadas num Inferno meu, muito pessoal. E afinal, nem sequer deveria ter ido muito mais longe - apenas aceitar no que me transformei a partir dessa "reconciliação", porque  assim deveria ter sido.

Desde o inicio. 

Repito todos os dias o mesmo pensamento aceitando a ideia batida e rebatida,  gosto desta regra que me dita uma existência por ciclos, e da minha vontade de não deixar que se altere nada neste caminho. Por isso hoje, agora, uma outra criatura caminha por este lado. Nada tem de realmente superior, este sentimento. Não se tornou mais perigoso. Antes mais lógico sobre no que quero transformar o resto dos meus dias. E creio que só por isto tudo o resto tem sido justificado.

Alguns pressentem nisto um reclinar de espírito para o que mais sombrio habita em mim. E eu nunca encontrei qualquer desconforto nessa ideia. O que parece assustar as pessoas é a capacidade do Individualismo neste momento em que tudo é imaginado como coletivo e global. O que torna sombrio o Individuo é um certo livre arbítrio, que não aceita a hipocrisia dos que professam apenas a liberdade de pensamento e discurso  aos que são semelhantes. O que torna perigoso o Individuo é a mais absoluta descrença na doutrina de um "bem global" que irá criar uma igualdade mundial. Uma sistematização que afirma mentiras e ilusões.

(Fleuma)

 

 

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