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Diz-me que não é o ódio que faz girar este mundo, que a maior parte das gentes teme aquilo que realmente deseja e que as fará menos tristes.

Explica-me porque razão estarei errado e o amor não é uma náusea que se agarra à alma destruindo-a lentamente. Em sórdida conspiração.

Já são muitas as vezes que tentaste discordar comigo. Sem sucesso. Talvez  porque os meus olhos sejam demasiado honestos?

Mas na verdade, todos continuamos a funcionar mesmo como ruínas vivas. Decrépitas e opacas. E eu? Por acaso serei melhor? Revelo-me todos os dias, em pensamentos obscuros. Esfaqueio quem passa por mim na rua. A mente é uma maravilhosa máquina e se pudesse arrancaria a pele aos que se cruzam comigo na rua.

De qualquer forma, agradeço a tua pacata timidez e compreenção. Se calhar mereço-a, porque me tenho esforçado imenso para esticar o meu limite de tolerância à dôr. E também acho que existem algumas coisas que devem permanecer na escuridão, partidas e com os estilhaços espalhados.

Por vezes, em raras ocasiões que se manifestam como aparições desfocadas, o sofrimento é como uma canção em estado puro. Não consigo pensar em algo escrito por um punho firme ou trémulo. Antes algo que se descreve a si mesmo. E esse sofrimento é algo visceral, nada mais somos do que seus menssageiros.

O "verdadeiro" sofrimento nem sequer é romântico e aos meus olhos é um mistério absoluto. Escrever sobre ele tem tanto de inútil como impossivel é ver aquela luz ao fundo do túnel.

Habituei-me, como veterano de mil guerras, a acrescentar o sofrimento de outros ao meu. Por mais que pareçam improváveis e deslocados da minha própria realidade, habituei-me a juntar pequenos farrapos de sofrimento de alguns aos meus pedaços de escuridão. Normalmente, a conclusão e sabor que ficam é como  olhar o demónio de frente. Um demónio que ganha sempre. Sempre.

A mim, esgota-me. Abana toda a minha estrutura mental e física. Principalmente, dói como tudo. Assenta e retalha e por isso raramente volto a rir. Torna-se algo tão trágico como levar o próprio cão para um piedoso abate e vê-lo a abanar a cauda enquanto se dirige para o destino.

Tudo, mas tudo estala e se corrompe.

"Está tanto calor, disse ela, não podes abrir um pouco a janela? Também me parecia estar um pouco quente, e como o tempo estava invulgarmente ameno, abri a janela. Dava para o jardim das traseiras e para um pequeno bosque, e eu deixei-me ficar de pé por uns momentos a ouvir o suave rumor da chuva. Talvez tenha sido esse o motivo, a chuva suave e o silêncio; o certo é que aconteceu o que acontece de vez em quando: cai sobre nós um vazio enorme, como se a própria falta de sentido da existência entrasse por nós adentro e se estendesse como  uma imensa e despida paisagem." 

Kjell Askildsen

 

Desejo que os meses de Outono já aqui estivessem. Sinceramente.

Bem sei que para a maioria das pessoas, as primeiras chuvas, os primeiros raios de sol sem qualquer calor e principalmente a primeira escuridão realmente densa, deprime.

O outono representa para tanta gente uma apatia e imensa falta de prosseguir. O número de mortes é mais elevado no outono e no inverno, muito pela causa e falta de luz e calor.

Mas eu acho que pode ser a salvação, se deixarmos entrar o outono. Esse deixar chegar, entrar do outono, é um portal para o silêncio e o frio do inverno.

Porque me sinto velho e cansado no verão. Fico com uma estranha sensação de que algo está errado. Prestes a morrer. E é importante respirar, para mim. Respiro e respiro no outono e quero respirar ainda mais. Sei que muitas das coisas que me proponho fazer falham miserávelmente. Respirar, parece ser algo que consigo.

Também sei que o frio e a escuridão serão o mínimo das minhas preocupações na minha velhice. Adivinho uma velhice amarga e cheia de ódio, que tantas e tantas criaturas me deixarão desapontado. Eu sei que continuarei a desapontar a maioria e a manter a luz acesa para uns poucos.

Mas, por muito que pretendam o contrário, por muito que defendam o oposto, eu vou partilhar esta solidão apenas com um pequeno número de sagazes iluminados.

Nega-lo é perfeitamente inútil. Eu vou sempre apaixonar-me e ansiar pelo solene cinzento da solidão outonal, quando se torna cada vez mais frio e negro, dia a dia.

Esta bizarra sedução é o caminho para a minha estação preferida, o inverno.

Eis que surge aquele brilho nos olhos, como se o seu negro fosse engolir toda a luz. Como se nada mais tivesse importância. Por momentos, essa é uma união. Uma imensa e profana unidade.


Escuridão...  volto sempre a ela. Todos os dias e em todas as danças de uma vida feita de fogo, de bizarros mundos e ainda beijos de desespero e paixão.

Acho que não existe inocência em nada. Nem sequer no sorriso de uma criança. Nem por um segundo pode alguma coisa ser inocente. Não, não quando me sinto desta maneira. Quando o ar se torna, de súbito, cego.

 

 

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Não consigo deixar de reparar nele, quando entra pelas portas do bar. Trôpego e distante, quase parecendo caminhar debaixo da água.

São sempre as mesmas horas a que chega. Creio que poderia acertar o  relógio, tal é a pontualidade com se senta na mesma cadeira. No mesmo local de todos os dias.

Assenta os cotovelos na mesa. Ombros encolhidos, quase enterrados nas orelhas. O olhar, esse espelho da alma, assemelha-se a uma paisagem lunar, tal é o distanciamento que lhe advinho. Muito raramente e de forma muito suave, gira a cabeça em volta, como por uma necessidade de afastar o mundo.

Quando chega o primeiro copo de vinho, de muitos outros, num estranho e compassado ritual, retira mais um cigarro do maço. Vira-o de cabeça para baixo e bate ritmicamente com ele na parte de cima da sua mão esquerda. Leva-o aos lábios enquanto observa, alheado, o copo à sua frente.

Inspira longamente e depois, liberta uma imensa nuvem de fumo para o ar. Pequenas gotas de prazer e satisfação escorrem pelos seus lábios. Mas por muito pouco tempo. Mesmo muito escasso tempo.

Depressa muda o tempo para os seus lados. De uma forma que não consigo explicar, pressinto-lhe um desespero surdo. Como uma segunda pele, está lá. Batendo com o coração. E os olhos tornam-se gelados, lunares e desconfortáveis.

 

Fico muito tempo, a observar de forma quase solene. Absorto e hipnotizado pela estranha dispersão de sentimentos que dele emana. E vou-me sentindo frio e absorvo um pouco daquele seu desespero. Como se visse um náufrago e a sua salvação fosse impossivel.

 

 

Pessoalmente, fascina-me e aceito a finitude que traz a morte. Não consigo absorver muito mais do que essa finitude. Não entendo como se possa sequer sonhar ou imaginar algo para além deste fim.

Vejo-me igual a outros milhões, uma imensa colecção de moléculas e água. Nada mais simples e nada mais complexo. Nem percebo porque se pretende engendrar a vida eterna. Quem terá sido o psicopata que, num qualquer dia de aborrecimento existêncial, inventou a eternidade. Um supremo sádico, que decidiu prolongar para sempre a sua triste caminhada.

 

Sou matéria orgânica a quem foi dado um nome. Sou um acumular de células que tem tanto de complicado como imperfeito. Um borrão no universo. Os outros são como eu. Matéria imperfeita. Nada mais.

E parece-me que existe uma imensa maioria que acha este facto redutor da dignidade humana. Não! Temos de ser algo mais. Maior. Não estamos neste mundo apenas para viver alguns lapsos de tempo. Temos de durar mais. Eternamente!

Para mim é um consolo o prémio final: o previlégio da evolução celular, por mais difusa e subtil que seja, e no final, como poeira, poder juntar-me à  escuridão das estrelas.

Nunca se devem lamentar os prazeres secretos que nos assomam tantas vezes. Pequenos trejeitos de personalidade que nos afastam de tudo. Tiques, paixões.

Eu, com todo o peso que a palavra possa ter, sinto uma genuína paixão pela escuridão. Por tudo o que carrega, por todas as noções de bem e mal que transporta, por este conceito e por esta falta de luz, nunca me senti cego. Nunca.

Consigo compreender quem  se sente atemorizado pela falta de luz, quando o breu é tão denso que não vemos um palmo à frente do nariz. A sensação de abandono e perdição deve ser esmagadora. Mas também me parece que advém em muito da necessidade que a maioria tem de se sentir protegida. A noite e a escuridão conseguem transformar-se em labirintos de desespero, sem dúvida.

Mas a solidão que evoca, o silêncio conseguido em horas altas da noite, não se podem comprar ou quantificar. Ultrapassa tudo o que possa reluzir nos dias mais solarengos.

Longe de qualquer conceito meramente supersticioso, mágico ou romancesco, a  escuridão é mais do que o negro ou falta de luz. É um prazer meu, que se transforma em iluminação para os dias difíceis ....

 

 

 

 

 

 

 






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