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Era uma vez uma cadeira que sonhou ser um trono de ferro.

 

Sonhou enquanto serviu. Quando era muito mais nova. Nos momentos de quem lia virado para a varanda e com o sol poente. Não deu pelos anos que passaram. Quando o muito mais nova deu assento ao velho. Onde a visão do sol poente deu lugar a um canto desbotado. Um lugar nada próprio para um trono de ferro. Como aliás, a pequena cadeira ansiava ter sido.

 

Os anos passados a sustentar o peso deixaram a cadeira manca. Por isso, apenas suportada em três pernas, os movimentos da sua existência de fina e fraca madeira, eram curtos. Apenas arrastada de um canto para o outro e de novo encostada a um canto, o decrépito assento pressentiu o fim. O seu volume, engrossado por anos de frio e calor, os seus braços gordos manchados de gordura dos que nela tiveram assento e ali limparam os dedos pegajosos pela última barra de chocolate comido, foram vis revelações. Porque razão não era já um trono de ferro? Onde reis e rainhas, deuses e deusas poderiam pernoitar e decidir. 

 

O coração da velha cadeira também a atraiçoou. Sem ritmo. Sempre em cuidados para se manter a compasso tornou-a amargurada. Nem o mais espesso verniz negro a contentava. Nem o sintoma mais positivo podia evitar que a velha cadeira se amargurasse. Assim, numa daquelas noites  em que achava escutar os lobos quando vivia num reles apartamento no meio de uma pilha de outras casas, voltou a ousar imaginar. Poder sonhar de novo. Queria viajar e mesmo que nunca o fizesse, porque como pequena cadeira que era, não se deslocava realmente, imaginou. Sonhou países que nunca vira e achava ser o suficiente, deixar bradar a imaginação. E imaginou ter visto lobos, grandes e negros. Ou brancos como a neve, com olhos de fogo e bafo gelado. Mas não. Não, triste e tonta cadeira. Manca e enlutada por décadas a sonhar ser de ferro. Um trono de deuses!

 

Em desespero, por fim vencida, a pequena e velha cadeira, em decrépita solidão nunca consentida antes forçada a um canto, decidiu que o mundo conspirava contra si. Que afinal não fora feita para ser trono de ferro. Era vitima! Maltratada e injustiçada! Como se uma pequena cadeira pudesse aspirar a mais do que ser manca e encostada a um canto. E assim tem permanecido. Roendo intrigas a um canto escuro. Até ao fim dos poucos dias que lhe restam.

 

Talvez o pequeno empecilho, coxo de ácida velhice tivesse antes desejado outra coisa. Algo bem mais próprio a uma condição que sempre foi a sua. Em vez de sonhar com a grandeza de um trono de ferro onde reis e rainhas reinam, teria sido bem melhor desejar ter sido um diminuto banco para que tais monarcas ou deuses, estendendo as pernas, descansassem os pés empoeirados.

 

 

Por um erro de cálculo, se calhar uma absurda incapacidade para deduzir inevitabilidades, muitos são os que não reconhecem o absurdo de existirem. Por isso me arrepia pensar em eternidade num mundo como este! Seria a perfeita justificação do inferno. Não do céu das alminhas metafísicas. Imagino o que será viver para sempre rodeado pela inutilidade de quem não reconhece um fim. Onde a incapacidade de prescrever os passos a dar e assim aceitar um retiro digno é tão gritante que assume contornos dementes.

 

Não sei até que ponto a eternidade não se converteria num digno castigo para estes absurdos existenciais, agora que penso nisso. Um tempo sem fim, arrastando-se por locais que apenas imaginam ser possíveis. Choramingando em cima de fantasias acima, tão acima, das suas cabeças. Creio que seria desígnio, justiça poética. Mas eu não estaria presente. Até porque sei que não resistiria a tanto absurdo.

 

Dizem-me os mais velhos, de boca desdentada e sorriso franco, que a velhice traz consigo uma colheita de sabedoria. Bem, ainda não sei se os mais velhos contam a verdade. O que testemunho é francamente o contrário. Para uma grande maioria, a velhice não é ( como deveria ser...) um ajustar de contas com o passado. Um recolher de ventos semeados e uma séria tentativa de terminar os tempos que se tornam mais curtos numa plácida reclusão. Descanso merecido e esclarecedor. Mas não: alguns absurdos permanecem naquele limbo ditador de uma triste e falsa arrogância. Tentando a guerra em nome de anos passados e que já não voltam. E porque já não possuem outras quimeras onde possam agarrar alguma recordação feliz são os outros os culpados. Devem pagar o preço.

 

Divirto-me com isto, claro. E se estiver mais atento nestas coisas mais mundanas, reconheço cheiros e ódios. Porque há quem não mude nunca! Por isso se torna  fácil identificar elos fracos e abrigos feitos de palha onde pensam estar longe da vista. Erros estúpidos sempre cometidos e em nome de uma absurda existência.






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