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Oiço com frequência o elogio à capacidade da memória de certas pessoas, quase mecânica, onde basta a pressão de um botão para uma impressão clara e sem falhas. A minha, talvez porque pratico cada vez mais esse estranho e obscuro culto de procurar o isolamento físico entre as florestas e as montanhas, tem o padrão sombreado das estantes com pensamentos sem títulos ou notas de orientação.  Apenas eu, porque me arrasto há anos entre as estantes e labirintos da minha memória, consigo sentir esse sabor tão profano e delicado de uma recordação que desperta em mim a impressão de um grande momento a acontecer. E por vezes são momentos que surgem do passado. Mesmo sem as anotações de margem, ainda que não conseguindo a eficácia da máquina mental, eu sei que as memórias são como as pessoas, às vezes surgem à nossa frente como um livro que cai de uma prateleira. 

Conheço criaturas que são como as florestas; observadas na distância parecem sólidas e unidas como árvores densas, compreensíveis e em harmonia, mas quanto mais me aproximo mais se separam, mais se rasgam as luzes e as sombras num cegar momentâneo. São memórias que surgem sem forma, para logo a seguir crescerem em detalhes que enchem tudo à sua volta.

São como florestas que dormem na névoa cinzenta, mas também emitem sons pardos que pensamos perdidos, cintilam em pequenos rasgos de luz solar, caminham para nós entre os estalidos das folhas e dos ramos secos das manhãs sossegadas; são tantas vezes, pequenos animais de olhos brilhantes, que pela nossa estupidez desajeitada, podem fugir amedrontados e desaparecer entre as estantes, acabando apenas por restar o silêncio e as flores. 

Creio que estes grandes momentos são seduções fragmentadas que ajudam a transformar as punições da existência; estão é muitas vezes descoloridos pelo tempo no caos da nossa lembrança, e pelo nosso estúpido hábito de alimentar o silêncio do esquecimento.

(Fleuma)







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