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Deveria ter sido evidente. Claro e perfeitamente evidente. Mas como tudo o que se assemelha a uma rotina, todos os dias vista e sentida, não aconteceu. No fundo, o que fomenta e consome os hábitos: está lá. Porém não parece estar porque se apresenta como um dado adquirido. Seguro e sem novidade. Olha-se, mas não se vê. Toca-se, mas não se sente.
Mas tinha de ser evidente, não?
Pela taciturna limpeza do corpo. Longos minutos a esfregar o corpo, como se a pele estivesse ausente. E a água do chuveiro sempre a correr. A temperatura demasiado quente a queimar o corpo. Fosse verão ou no fosso do inverno. Pela falta de interesse nos dias que passavam. E as noites eram de sono solto em longas horas de afastamento.
No início, o caminhar pela casa era suave e desconcertado. Depois passou a ser errático e hesitante. Na rua, os passos largos e firmes cederam ao arrastar e a paragens frequentes em frente ás montras de vidro. Paragens longas e apáticas. Sim ... deveria ter sido claramente evidente. O que torna tudo muito mais inaceitável, terrivelmente incapaz de deter uma réstia de compreensão, foi a cegueira consentida de não ver o olhar ...
Como se torna possível nada fazer perante o olhar vago? Onde está escrito que é necessária uma licença médica para deduzir que quem olha por horas um mesmo ponto, ausentando-se do que o rodeia como se estivesse muito para lá do infinito, não se encontra numa manobra Zen; não reflecte sobre o estado do mundo. Apenas quando a entrada é feita entre paredes brancas e silêncio sepulcral tudo se consuma. Para uns, a liberdade de viverem uma novo recomeço ( afinal ainda me restam uns anitos de vida, não? ), para um outro, o resto dos anitos de vida enterrado no abismo.
Quando falamos, escondo o meu ódio rancoroso pelos "anitos" de vida dos outros. E observo o esforço de um outro para manter acesa uma pequena chama. Um pálido reflexo de quem sabe que vive num poço, que caiu sem saber e já deixou de se consumir na tentativa de subir. É isso, exactamente isso, que aqueles olhos castanhos mostram. Cada fibra de existência dependente da medicação sintética. Porque deus não existe ...
Porquê? - pergunto eu.
Se existe - abre os braços para envolver o espaço branco - ele não anda por estes lados.
E inevitavelmente, rasga um sorriso. Revelador de escuridão. Dor e desilusão.