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Existe uma estranha alquimia, desconhecida para uma grande maioria, naqueles que permanecem juntos durante anos a fio e sem que se possam vislumbrar falhas na armadura. Algo único parece sustentar estas criaturas que por alguma rara combinação de agentes não cede ao tempo nem sequer à aproximação do fim.
Conheço um casal que permanece num estado de união longo. Longo de quarenta anos. E não consigo perceber um pingo de morte sentimental entre ambos. Cúmplices em potência, sempre que os vejo vão desfigurando as minhas reticências e o meu cinismo mais agreste. Nunca vi um gesto de agressão entre ambos. Um levantar de voz mais crispado. Uma falta de gentileza que possa danificar a minha visão deles. Quase diria que sobrevivem os dias num êxtase bizarro que não os deixa atravessar a barreira da luz.
E por vezes sou brindado com relances de absoluta irrealidade. Se calhar porque me conhecem e me sabem observador, gostam de me retalhar os sentidos em tiras finas. Deixo que me mistifiquem a alma e quase, quase consigo sentir a fragrância de deuses antigos proibidos nos dias de hoje.
Entrava em casa após mais uma noite de trabalho. Era cedo, mas o sol brilhava intenso e entrava a jorro pelas janelas envidraçadas das paredes da escadaria que conduz à porta de saída do prédio. Sei que tal como eu não vão de elevador. Apesar da idade avançada não o fazem. E naquela manhã parecia propositado, mas durante longos segundos a realidade esfumou-se como se estivesse comandada ao prazer daqueles dois. Nunca tivera a possibilidade de os ver a descer as escadas. Estavam no último lance mesmo em frente a mim e antes de se cruzarem comigo e desciam ambos em sintonia. Mas o que me deixou translúcido foi que dois dos seus braços estavam unidos um no outro. E o braço livre do homem apoiava-se na parede junto à escada enquanto a mão livre da mulher agarrava o corrimão de metal da escadaria.
Pareciam algo semelhante a uma muralha ocupando a largura da escadaria. E no preciso momento em que observava esta manobra o braço grosso da luz solar parecia cobrir aqueles corpos. O dela, que sempre se veste a fazer lembrar a estética dos anos 40 e o dele, sempre de fato à medida. Sempre de camisa imaculadamente branca e sem gravata.
Devo ter parecido um perfeito idiota. Assim especado e em delírio mental pela rajada impiedosa daquela atmosfera. Mas o que me fez estremecer da cabeça aos pés como se estivesse em frente a um comboio a alta velocidade e em minha direção foi a frase do senhor quando passou por mim, desta vez apenas de mão dada com a senhora ( coisa que sempre lamentei não ver mais vezes entre duas pessoas que se amam ...), numa voz ligeira e suave.
- " Bom dia ... "
- " Está um bom dia para estar vivo. Não acha, senhor? ... "
Não respondi porque não se deve responder à recompensa de testemunhar algo precioso.