Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Não podia ter sido melhor o dia que tanta gente se preocupa em festejar comendo e oferecendo prendas. Que assim se torna mais simples e tão fácil esquecer o erro desta noite. Para mim uma oferta inesquecível. Que estes são tempos de riqueza dada em perfumes e roupas. Ou em faustosas refeições, longe do frio da noite. Mesmo que entre rostos conhecidos e nem por isso bem-vindos.
O dia anterior ao falso nascimento do profeta começou realmente ao almoço. Encontrei-a à minha espera. Sentada na cama do hospital e com as pernas penduradas que se agitavam com a suavidade que apenas uma criança sabe. Quando está assim sei que está melhor. Conseguiu mais uma pequena que a mim me parece gigantesca vitória. Na semana anterior registou um aumento de peso real de 2 quilos! Há meses que tal não acontecia. Havia também um rubor seráfico na sua face e os olhos não estavam tingidos daquele vermelho odioso dos dias de radiação.
Saltou da cama e correu para mim enquanto eu simulo encolher-me de medo e aquela gargalhada, entre um abraço apertado justifica tudo! Mesmo a habilidade que aquele pequeno duende tem em deixar-me os olhos cansados húmidos. O ritual, diante da falsa severidade materna ou sucessivas risadas das outras crianças da ala, é sempre o mesmo. Com ela no meu colo dou duas voltas e volto ao centro. Patético e embaraçoso. Mas é o nosso ritual de contacto.
Mas foi melhor do que eu esperava. E eu espero sempre muito. Tanto que me deixa esmagado. Caminhou comigo de mão dada. Sempre a queixar-se da força com que eu apertava mas nunca largando a minha mão. Passámos o corredor em voltas para desvio de outros pacientes. Normalmente ficamos ali. Mas naquela tarde saímos para a rua e caminhamos no jardim. Estava agasalhada mas ainda assim usei o meu casaco comprido para a tapar. Mesmo que a arrastar pelo chão sujo de terra.
Meia-hora. Trinta minutos de passeio. Apanhou algumas ervas verdes e cheirou a terra que lhe escorria entre os dedos finos. Estalava os lábios quando eu lhe enterrava o gorro preto que lhe ofereci no ano passado até às orelhas. Trinta minutos de batidas cardíacas aceleradas. Sempre à espera do seu cansaço ou colapso. Não aconteceu.
Quando começou a ressentir-se das emoções e do esforço físico pediu para voltar ao quarto e deitar-se um pouco. Decidi que iríamos regressar com ela ao meu colo. Negou porque as pessoas grandes não viajam ao colo. Creio que o nosso rir foi sonoro porque ao lado uma casal que passava estranhou.
Foi sentada nos meus ombros até à porta do Hospital. Depois sentou-se no meu braço direito e fomos até à cama lavada de fresco. Lanchou simulando medo diante a minha falsa severidade - que tem de comer para engordar. Permaneci até que adormecesse. Com o meu dia já vencido e exausto pela rara felicidade sentida.
Deixei a prenda em cima da mesinha ao lado da cama. E voltei lá durante a noite. Cerca da meia-noite. Para lhe dar um beijo e renovar a minha promessa de que voltaria no dia seguinte.