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"Ninguém venceu a obsessão da morte pela lucidez e pelo
conhecimento. Não existia nenhum argumento contra ela. Ela não
tem do seu lado a eternidade? Só a vida tem que defender-se sem
trégua; a morte já nasceu vitoriosa. E como não vai ser vitoriosa se o
nada é seu pai e o horror,  a sua mãe? Só podemos vencer a morte
desgastando-a. A penetrante obsessão que sentimos por ela 
desgasta - nos e, por sua vez, se desgasta" (EMIL CIORAN)

(999)

 

O pesadelo está presente, resguardado num recinto escuro da mente; alerta e nunca dorme. Sistematicamente surdo às minhas tentativas para que adormeça, e finalmente se esfume no pó. Nunca mais, desde aqueles minutos iniciais de conhecimento e diagnóstico, fechou os olhos, por segundos que sejam, a uma vigia de surdina cinicamente empoleirada nos meus ombros.

Testemunho a sua existência com a resignação dos que tantas vezes se atiram a um muro sólido, na esperança (estupidamente!) de não esmagar o crânio, sempre que ultrapasso as portas giratórias, como olhos imensos de um mau sonho, na sua companhia, para mais um examinar minucioso. 

Odeio portas giratórias com o vigor dos assassinos mais sádicos. Abomino paredes brancas, falsas profetas da ideia imbecil de repouso e pacificação.

A guerreira cresceu muito. Já não necessita de sair pelos seus pés e regressar ao meu colo por exaustão. Mas até a sua lendária  força de espírito oscila quando atravessamos aquele portal de recordações. 

Sei que sim.

Atravessa o seu braço no meu. Como suporte. E aperta. Pressinto-lhe uma força física que me surpreende sempre!

Somos reconhecidos. Tento encolher toda a minha massa corporal numa bola inútil. Desço os olhos para o chão. Mas sei que o cabelo puxado para trás das orelhas, o  casaco negro e longo e as botas pesadas da mesma cor, tornam inúteis as minhas dissertações sobre entradas e saídas discretas.

Ela também não consegue. Está como eu - alta mas mais sinuosa. O cabelo está mais longo que o meu. Mais esfuziante. Menos "castanho lixo" como gosta de me dizer enquanto olha para mim. 

O vestido longo que cobre o seu corpo, o rosto branco e delicado e os olhos de um verde mais escuro que os meus, tornam pois, impossível evitar o reconhecimento. Principalmente pelos que testemunharam o antes e o depois. 

Abismos entre anos.

Nestes minutos, enquanto corre livremente o pesadelo, aguardamos mais um resultado e a sua sentença. Vou  deixando que a razão se cale, persistindo teimosamente na ideia que, para ela, ainda é demasiado cedo para a Morte. Vou mantendo uma serena euforia pela sua extrema juventude. Mordo todos os meus conceitos para que esta juventude e suprema beleza resista.

Exijo morrer antes. Desde o principio que foi assim. E nunca mudará.

Entramos na pequena sala. Odiosamente branca. Eu e ela. Veteranos de mil batalhas em cinzas. No outro lado da mesa uma voz feminina e mascarada pergunta algo e apenas oiço a sua resposta firme com um sorriso sonoro - " Sim Dra. é mesmo a cor dos olhos dele!"; o surrealismo deste breve trecho de palavras entre máscaras e saudações banais, torna este pesadelo numa outra Besta;  como que revigorado e agora dotado de um sinistro sentido de humor.

Reparo, como nas outras sentenças, que a minha respiração está cortada. Reparo que se assim não fosse pura e simplesmente estrangularia a pessoa do outro lado da mesa: Pela perda de tempo e conclusão.

Noto que o pesadelo se alonga. Que os meus ouvidos crescem e que estou num limiar de exaustão que apenas se conseguirá desprender quando ouvir o que exijo escutar.

- " Está óptima! Não poderia estar melhor! Perfeita!", do outro lado da mesa. 

Na maldita sala branca.

E respiro então. O coração regressa ao seu passeio de  rotina. Os pensamentos alinham-se. Os ombros erguem-se e parecem deixar a senhora desconfortável. Acabo por sorrir debaixo da máscara, secretamente divertido com o seu embaraço.

Quando, mais uma vez, saímos pelas portas giratórias, toneladas retiradas de ambos, caminhamos de braço dado, ela rindo, enquanto sussurra as palavras da sua canção preferida, que eu fazia soar nos auscultadores enquanto ela permanecia deitada, exausta de olhos vermelhos,  e que glorifica tudo o que ela sempre será: Guerreira sem par de virtudes intocáveis. Sabendo o que venceu. Sabendo que quem ousar macular a sua integridade terá uma morte lenta e dolorosa. 

Garantidamente.

E eu uma vez mais consigo afastar o pesadelo para um outro labirinto até a um próximo confronto.

A pacificação nasce de novo com a partilha do seu pequeno prazer de eleição ...

Três bolas gigantes de gelado de chocolate com molho  de café a escorrer em cascata.

Pequeno troféu para o descanso da guerreira.

 

 

 


2 comentários

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naomedeemouvidos 06.03.2021

Venho só deixar-te um beijo enorme.
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Fleuma 06.03.2021

Aceito.

Eu e os meus fantasmas.

Saúde e um grande abraço.

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