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Preludio a la siembra
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Nunca a luz do sol me fascinou particularmente. Nunca aceitei o calor dos dias de sol intenso como bálsamo para os ossos e necessário para que sinta qualquer memória de renascimento. E são demasiadas as vezes em que são as memórias a causar o florescer das cores do Outono e o carinho do Inverno. Demasiadas.
A mente humana subsiste na associação de odores e sons. Os olhos e os ouvidos são o registo mais sombrio por onde passo e quando os meus dedos se fecham no corrimão das escadas as impossibilidades tornam-se possibilidades. A torrente de recordações retida a custo jorra.
" tenho um ódio de estimação a portas de vidro que se abrem para gente doente; ao barulho das rodas de borracha a chiar pelos corredores de pedra; a senhas de cores diversas e ao olhar indiferente de quem chama do outro lado do balcão, sempre com as mesmas perguntas. sinto-me perfeitamente capaz de amaldiçoar a luz do sol todos os dias da minha existência se assim conseguir sossegar a memória da nossa passagem pelas portas de vidro de gente doente. se assim aceitar a cobardia e não pensar no corrimão plantado no meio da escadaria, enquanto não consigo votar ao esquecimento a mão pequena e húmida apertando a minha.
é quase grotesco aquele dia de sol intenso e cego; aquele calor nas costas e o suor a escorrer pelas costas. a memória não atraiçoa quem se ajoelhou diante de ti no corredor de pedra; e se despediu perguntando ( estupidamente questionando...) se estava tudo bem; e creio bem que o acenar da cabeça, ainda coberta de longos cabelos de cor quase ruiva, como vinho tinto, nada mais causou do que o estropiar da pouca dúvida entre o nada e Deus. os olhos disseram não, mesmo não chorando; os lábios foram trincados travando a angústia e incertezas. e quando desapareceu no quarto pensei em monstros que abrem a boca e engolem crianças; nunca mais deixei de ter esta emoção quando entro em quartos.
e durante horas, dias transformados em semanas a fio esteve deitada e poucas vezes de pé; consegui pressentir a morte sentada naquela face; troçando nos olhos vermelhos ladeados por negro, na pele outrora branca e lisa e agora soltando pequenos flocos e nos lábios escurecidos pela radiação. ali e em espera atenta para ceifar.
todos os dias eu morria um pouco com a criança. imbecilmente desistia de esperar, mesmo observando como se debatia e lutava; não vertendo uma lágrima pelo crânio rapado mas irritando-se quando eu rapei o meu com demasiado e longo cabelo; mesmo quando se forçava a comer para depois vomitar querendo engordar um pouco!
imbecil! nunca se pensa em desistir perante quem quer passear pelo jardim nem que seja às nossas costas! caminhar vinte escassos metros e regressar ao colo. nunca!
só um estúpido não concebe resistência quase mística na fragilidade que batalha para viver, ficar acordada e escutar a minha voz lendo passagens de Hans Christian Andersen como esquecimento.
será necessário que cale estas memórias principalmente nos dias de sol. que espante demónios paulatinamente colocando-os debaixo de toneladas de rocha. encontro demasiadas justificações para ódios, frustrações e maus instintos diante demasiadas coisas e pessoas, que nem sequer são culpadas. sinto demasiado cinismo perante as tragédias dos outros.
egoísmo? sim. dane-se!
retenho ainda esta centelha de alimento que me serve para consumo esfomeado.
saindo pelas portas de vidro onde entram os doentes do mundo. eu num tremor de triunfo e agarrando a mão de novo suave e apertado-a para que não me fugisse; ela, mais envelhecida porque afinal os verdadeiros combatentes são uma casta que envelhece mais depressa e por isso de veneração obrigatória! retirando o gorro azul de pontas longas e olhando para o céu sinistramente cor de chumbo e o pequeno nariz avermelhado cheirando a humidade extrema da manhãzinha cedo; a cabeça agora e de novo com cabelo raso e vermelho cor de vinho naquela beleza rara e perfeitamente triunfante sobre o efeito que irá provocar nos corações dos incautos que se encantem por ela; no passo apressado sem necessidade de colo; precocemente adulta e de olhos astutamente preparados para as desgraças de uma vida que por vezes é apenas merda explicita!
naqueles minutos sofri o punir exemplar pelos dias de dúvida mesmo sem desistir. e não é de todo agradável, é doloroso. muito. mas é o que o penitente merece.
quando lhe perguntei o que iríamos fazer pediu que fossemos a uma casa de gelados; simplesmente pediu duas imensas bolas de gelado de chocolate negro e bolacha; o Universo não respirou nesses minutos, aquietou-se para observar e aprender com uma criatura quase mística em liberdade plena e sem a sua armadura de guerreira absoluta.
enquanto eu ia absorvendo o mutilar e a humilhação de quem aprendeu algo que sempre julgou saber"