Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Sempre questionei como seria caminhar pelos corredores da casa que sempre me pareceu demasiado grande para quem é cego. Mesmo que nesses corredores espaçosos caminhe também ao seu lado um gigante negro de olhos sagazes e vigilantes. Corto conhece todos os recantos da Grande casa. Corto sabe de todos os passos da criatura cega de olhos azuis baços, caminha ao seu lado em perfeita harmonia, forçando os ângulos com uma suavidade sem descrição para um gigante que sistematicamente força em mim o pensamento mitológico. Habita dentro do Cão negro uma energia que deslumbra as minhas emoções, um instinto de proteção demasiado inteligente, demasiado presente - talvez porque saiba demasiado sobre as dores e desilusões do homem cego. Pelos corredores da casa espaçosa ou entre os ventos que assobiam pelo meio dos ciprestes da alameda que termina e começa nos portões de ferro gigantescos da propriedade, até ao cume que cai sem remorsos para as ondas, tudo me parece imenso ao lado do homem cego.
E sei que habita nele uma escuridão. Não porque não vê. Desdobra o mundo que o rodeia em cheiros, por sons e por toques. É como o Cão negro - apenas sem os olhos sagazes. As suas inquietações estão enterradas na profundidade dos primeiros dias do despertar e do reconhecimento de uma existência sem luzes. As suas sombras inquietam-se quando o calor do sol desliza pela face que num instante se torna severa como desperta de um sonho. O vento frio que sopra da margem da praia cinzenta parece cantar uma melodia ao seu ouvido que apenas o Cão entende. Eu não. Permaneço ao lado de ambos como um imbecil deslocado. Vai girando a cabeça com uma graciosidade tímida, às vezes rasgando um sorriso embaraçado por um som, e o Cão responde cerrado os olhos húmidos. Eu cruzo os meus braços com força numa patética tentativa de descoberta do segredo do seu mundo.
Sento-me à frente dos dois na biblioteca oval mesmo por baixo da enorme claraboia de vidro transparente.
Abro um livro que escolho e leio em voz alta porque muitos daqueles volumes não estão escritos para cegos.
Também não foram escritos para Cães grandes e negros.
Encanta-me ficar ali. Demasiado.
De manhãzinha o sol jorra pelo teto num banho de luz que nos envolve, iluminando a minha roupa e o pelo negro do Cão. Naqueles momentos esporádicos um calor suave habita dentro de mim como uma chama que se apaga quando me retiro.
Ao entardecer, se for paciente, consigo um vislumbre raro de uma réstia iluminada e dourada de um dia de Outono. Estranhamente, são estes os instantes que sempre me recordam a despedida, o fim de algo; olho para aquelas duas criaturas tão diferentes e tão iguais e não consigo afogar este pensamento.
E quando a noite já vai longa, ali, naquele centro do Universo, acendo a luz do imenso candeeiro e ficamos numa bola cósmica iluminada; eu e o grande Cão negro - secretamente - assombramos os olhos com a dança de sombras que se espalham para lá desta órbita de luz e vão percorrendo as filas de livros que nos rodeiam.
Em todos estes instantes, de livro nas mãos, vou lendo, enquanto o homem cego deixa cair a cabeça para trás e olha para cima sem ver, e o Cão inclina o grande focinho silencioso ora para um lado ora para outro. É como um sagrado ritual que vai enchendo os meus dias quando os visito - entre copos de vinho e as conversas trocamos as nossas sombras - eu pelo que vejo e ele pelo que adivinha. Não existe em mim nenhum sentimento de piedade pelo homem cego. Nem sequer essa arrogante presunção. Antes a certeza absoluta de um testemunhar inefável e demasiado precioso da mais cristalina definição de Singularidade.
E eu gosto de Singularidades.
Justificam a minha existência.
(Fleuma)