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 E. Cioran

 

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O grotesco e o desespero

 


De todas as formas do grotesco, a mais estranha, a mais complicada, me parece ser aquela que mergulha as suas raízes no desespero. As outras não visam nada além de um paroxismo de segunda mão. Ou existe um paroxismo mais profundo, mais orgânico, do que aquele do desespero? O grotesco aparece quando uma carência vital engendra grandes tormentos. Pois não se vê uma tendência desenfreada à negatividade na mutilação bestial e paradoxal que deforma os traços do semblante para lhes imprimir uma estranha expressividade, neste olhar habitado por sombras e luzes distantes? Intenso e irremediável, o desespero só se objetiva na expressão do grotesco. Este representa, com efeito, a negação absoluta da serenidade - este estado de pureza, de transparência e de lucidez, nas antípodas do desespero -, este que engendra apenas Nada e caos.

 

Provastes da monstruosa satisfação de observar-vos no gelo depois de inumeráveis noites em claro? Submeteste-vos à tortura de insônias em que cada instante da noite é sentido, em que se está só no mundo e se sente viver o drama essencial da história?; estes instantes onde nada mais tem o menor significado e tudo cessa de existir, pois sentis elevar-se em vós chamas temíveis e vossa própria existência aparece-vos como única num mundo nascido para vos atormentar - já provastes destes inumeráveis instantes, infinitos como o sofrimento, em que o espelho envia-vos a imagem mesma do grotesco? Reflete-se aí uma última tensão, à qual se associa uma palidez ao charme demoníaco - a palidez daquele que acaba de atravessar o abismo das trevas. Esta imagem grotesca não surge, com efeito, como expressão de um desespero à semelhança do abismo? Ela não invoca a vertigem abissal das grandes profundezas, o chamado de um bendito infinito pronto a engolir-nos e ao qual nós nos submetemos como a uma fatalidade? Como seria doce poder morrer lançando-se num vazio absoluto! A complexidade do grotesco reside na sua capacidade de exprimir um infinito anterior, bem como um paroxismo extremo. Como este poderia, então, objetivá-lo em contornos claros e definidos? O grotesco nega toda idéia de harmonia ou de perfeição estilística.

 

O grotesco esconde a mais frequente das tragédias que não se exprimem diretamente - aí está uma evidência do motivo de formas múltiplas do drama íntimo serem suscitadas. Quem quer que tenha visto no seu semblante uma hipóstase grotesca não poderá nunca mais mirar-se no espelho, pois ele terá sempre medo de si mesmo. Ao desespero sucede-se uma inquietude plena de tormentos. Que faz, então, o grotesco, senão atualizar e intensificar o medo e a inquietude?

 

 

Emil Cioran, "Nos Cumes do desespero"

 







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