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“É a autoridade, não a verdade, que faz a lei.”

THOMAS HOBBES

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O perigo reside na incapacidade de aceitação de toda e qualquer noção que se desvie da norma habitual, estabelecida, gravada, imposta, em nome de um bem comum. É como se, subitamente, todas as ideias de livre-pensamento, livre-arbítrio, fossem remetidas para um canto de condenação, enquanto se vão impondo trejeitos, gestos, pequenos esgares de quem governa, em nome de uma retórica de felicidade, protecção, e principalmente, bem-estar colectivo. Porque é disso mesmo que se trata: imposição pela incapacidade de reagir, pelo medo da Morte, e porque é desesperante ser forçado a sair de uma zona de conforto imaginária, deixar a rotina prevista dos dias, mais se torna necessário que sejam outros a agir por nós.  

Na raça humana, nunca será possível a convivência sem Ideologias Autoritárias. Porque são a cola das sociedades, esta imposição forçada de limites, confinamentos e máscaras que nos retiram o reconhecimento. Temos uma necessidade ancestral, infantil, frágil, da protecção dos outros. Necessitamos de aprovação e conformidade. Por isso, qualquer expressão de individualidade,  vontade de escolher, que se oponha, suscita uma reacção opressiva e tirana. 

Não existe realmente, uma ilusão nesta incapacidade de agir sós. Pouco importa a mais grotesca distorção do conceito de Ciência que deve sistematizar o questionar de si mesma, quando esta, por estes dias, se tornou divina e inquestionável - mesmo que padeça das dores da contradição -, é impossível qualquer pensamento remissivo, porque esta "nova Ciência" caminha a passos largos para um estado de graça que a tornará dogmática e sacrossanta. Contra todas as virtudes da dúvida e do questionar mais básico.

Não deveria ser necessário insistir na ideia de liberdade pessoal, mesmo que essa nunca seja total. Nem sequer seria necessária a insistência na virtude pessoal de escolher o que queremos ou não dentro do nosso corpo, mas porque se trata de uma "democracia", a maioria consome a minoria, e porque essa "democracia" nada mais é do que uma forma benigna da ditadura mais cega, é absolutamente essencial manter acessa a virtude do individualismo, porque sabemos como se tornam fáceis as cerimónias de marcha a passo de ganso e saudação de braço levantado ou as revoluções vermelhas de aniquilação colectiva.

Somos todos culpados. Todos!

Porque somos incapazes de manter a nossa privacidade, porque temos uma fome tão intensa de protagonismo, depositamos nas tecnologias de comunicação a nossa confiança mais cega, por isso seguimos tudo o que está dito e escrito como um guia de sobrevivência, ao nível mais alto da imbecilidade. E talvez seja merecido. Afinal, Roland Barthes tinha razão: o Fascismo não consiste em impedir que as pessoas falem. Antes pelo contrário, consiste em forçar as pessoas a falar. E são as redes de comunicação com toda a extracção de informação pessoal, propaganda ideológica, e falta de privacidade, muito mais precisa do que a linguagem, que, sistematicamente, se revelam a base perfeita para doutrinas totalitárias. 

É no som do Flautista de Hamelin que se justifica a "guerra de todos contra todos" de Hobbes e o nascimento  dos extremismos.

 


4 comentários

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outradecoisanenhuma 02.02.2022

Seria uma discussão fantástica. Até porque “gosto” mais da democracia do que tu, parece-me. Não sei sob que outro regime poderia viver. O tempo que vivi em Marrocos não conta, foi sempre um tempo contado e tinha um fim com data marcada. Além disso, vivia sob um certo privilégio: apesar de um contornar muitas vezes, foi batota.

Sou sensível à ideia de um “bem comum” e preciso de algumas regras, embora, às vezes, tenha dúvidas sobre se as regras servem mais para me protegerem dos outros ou de mim própria. Mas vejo esse perigo de que falas; essa “aceitação” sem sobressalto, como se pudéssemos passar pela vida sem um arranhão. Como se isso fosse viver, sequer. Simultaneamente, vivemos um tempo extraordinário; gostava muito de viver o tempo suficiente para olhá-lo com a distância que merece.

E queria uma regra que te obrigasse a escrever todos os dias.

Fica bem.
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Fleuma 03.02.2022

Não se trata simplesmente de não "gostar" da democracia. No seu conceito mais puro é algo muito belo. Sinceramente. O meu problema sempre foi, porque me considero profundamente individualista, esse "bem comum" de que falas.

Sou contra todo o tipo de doutrinas totalitárias. Absolutamente. E a democracia, pragmaticamente observada, friamente dissecada, é totalitária. Impõe a maioria sobre a minoria. Deixamos de escolher pela nossa visão. É muito, muito dificil para mim.

Mas, se o meu "individual" é impossivel, utópico, egoista, até, porque sózinho não é possivel a sobrevivência, podes tu afirmar, infelizmente, a democracia total é também impossivel, utópica e excessivamente valorizada. Tanto que o seu conceito é sistemáticamente abusado, deturpado, vandalizado, e apenas quem vive debaixo de uma pedra não vê que esta não existe.realmente.

Não testemunhei ainda, uma ditadura em potência. Espero não testemunhar. Sei que, volutáriamente, terminaria a minha vida. Sei que esta "democracia" é, apesar de tudo, um mal menor, porque não somos perfeitos, mas está cada vez mais presente a proximidade de um esmagamento a qualquer ideia de autonomia pessoal, por pouca que seja. Isso aterroriza-me!

Aconselho-te uma leitura atenta da dissertação de Nietzsche sobre a democracia. È maravilhosamente lúcida.

Sim, é um tempo extraordinário de convulsão. E sabemos que as convulsões acabam por trazer mudanças. Talvez a democracia se torne realmente no que deveria. Mas não pela ideia de igualdade entre todos - conceito absurdo e impossivel - embora engenhoso.

Já agora, H.P.Lovecraft é absolutamente apaixonante!

Um beijo e um abraço.
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outradecoisanenhuma 05.02.2022

Acho que há uma diferença – e não é menor – entre individualismo e egoísmo. Também acho que qualquer um dos conceitos – qualquer um dos estados, qualquer uma das vivências, como quiseres chamar-lhe, e não te vejo nada como um egoísta – e o “viver democrático” são dificilmente conciliáveis. Apesar de eu própria ser das que procuram mais consensos do que rupturas, creio, vejo as imperfeições e os perigos subjacentes à democracia; e preciso de “mim”, sem dúvida, do meu “eu” imperfeito, mas, até certo ponto, convivo bem com a democracia. E creio que há uma igualdade a que se pode aspirar, mas não aquela que se pretende fabricar à custa de uma espécie de piedade artificial e absurda que nos pretende remeter a todos para o eterno papel de vítima, entre o intocável e o inocente. Essa ideia, sim, a de que todos podemos – ou de que todos o desejamos – viver a salvo de qualquer ameaça é absurda e perigosa, concordo contigo.

Como disse, é uma discussão fascinante.

H.P. Lovecraft é demoníaco de bom. Acabei de comprar aquela versão ilustrada de “O Despertar de Cthulhu”. Adoro-a.

Um beijo. Fica bem.
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Fleuma 05.02.2022

Como dizes, uma discussão que seria muito interessante, fascinante.

Faz-me uma gentileza, tudo, mas tudo o que te seja possivel ler de Lovecraft, lê...

Mesmo que eu seja suspeito, uma vez que é um dos meus escritores preferidos.

Fica bem.

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