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"Journey Through Darkness"

Kurt Weston,

fotografo invisual

A ironia é um daqueles gigantes silenciosos que caminha entre nós. As mãos em cima dos nossos ombros exercem a pressão que pode esmagar e, aparentemente, apenas conseguimos senti-la na sua força mutilante quando é tarde.

Quando entramos em casa e olhamos para a cadeira onde, outrora, alguém se sentava, com a chávena de chá na mão - só tecemos amargas considerações sobre a saudade quando desaparece quem já demos como dado adquirido.

Como desejar o frio nos dias de calor debilitante; como ganhar aquele prémio tão cobiçado e tudo o que sobra veste o manto indescritível de nada! Vazio. Vago.

Talvez a ironia questione a natureza do solitário nos dias onde o cheiro daquele corpo não está presente. Que silêncio conseguirá ser mais pesado do que aquele que nos espanta quando uns lábios se colam aos nossos, quando imaginávamos estar tudo alinhado naquela nossa tão sensata solidão?

Uma vez mais, não sei. Irónico, também.

É quase sarcástico que uma serena ironia seja responsável pelo desmoronar de muros altos como torres. Porque não entrou repentina. Antes na ponta dos pés, como um astuto ladrão de campas. Instalou-se no monstro que necessita de ver para crer -naquele cujos olhos fazem viver respirando quimeras atmosféricas, quando o olhar é rapace e por vezes, demasiadas vezes, verbaliza volumes silenciosos.

Talvez seja uma ironia ainda maior e exista afinal, um Deus, com um supremo humor que ironiza, na existência de um Ateu que se julga convicto. Na ironia de uma criatura cega de olhos baços, por vezes levemente tingidos de azul, possuir a capacidade de morder o flanco do incauto que julga o mundo pelo olhar atento. Entre espaços cheios de prateleiras e livros, banhados pela abóbada no telhado que jorra tanta luz, que não raras vezes, os olhos que vêem devem cerrar-se.

É a distância destes dias, obrigados a afastamento, que fecunda esta gigantesca ironia. É uma saudade tão dolorosa não conseguir ouvir a voz serena e o tic toc da bengala nos móveis. Ou os passeios, entre os suspiros dos enormes ciprestes, enquanto, de braço dado, caminhamos falando - porque ele se recusa ao meu silêncio e demasiada reflexão. 

É como retornar onde pertenço. Uma soberba ironia esta: Caminhar como despojado pela mão de um invisual que consegue retirar-me do poço. Sistematicamente.

E Corto, o cão enorme, potente, olhos do velho cego, reconhece-me! Sempre. Atropela-me de alegria e ladra como uma criatura infernal, enquanto o velho cego emite risadas sonoras e infantis. 

Corto arrasta o meu corpo maciço para a praia para uma disputa amigável de força bruta; enquanto rebolamos na areia fria, o velho invisual pressente e aponta vencedores - quase sempre o seu cão fiel.

Irónico, que esteja a escrever estas palavras e me sinta percorrido pela nostalgia e uma intensa felicidade.

Que neste preciso instante necessite de voltar a eles. Que irei regressar até morrer. 

Que morrerei. Ironicamente feliz.

Odeio ironias.


4 comentários

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naomedeemouvidos 17.02.2021

É impossível ficar indiferente à beleza dessa memória. É um atrevimento enorme, mas acho-a belíssima desde a primeira vez que a vi aqui.
Fica bem.
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Fleuma 18.02.2021

Sem qualquer vestígio de drama, posso afirmar-te que é vital para mim manter estas memórias e principalmente, contacto com estas duas criaturas.

Seria fastidioso para ti se eu conseguisse, coisa que não consigo, explicar como se revelam importantes para mim.

Por isso revisitei esta memória recente. E por isso insisto em retornar a eles.

Fica bem.
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naomedeemouvidos 18.02.2021

O meu atrevimento nunca aspiraria a tanto. Há memórias que são só nossas. Gosto, apenas, de ouvir o que podes partilhar.

E percebo na pele essa necessidade de regresso.

Tu também.

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