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Um primeiro sinal de comunhão entre sombras:
- Deixar a noite correr em sossego, e de manhã, esconder-me no sono; magoar-me em sonhos, acordar envelhecido, gasto. Esta é uma virtude que cultivo em mim, como se de uma velha, muito antiga prece se tratasse, enquanto vou insistindo num mesmo sentido, longe da vontade que teima em aprisionar os meus passos. Queria muito excitar a minha razão com uma explicação sóbria, filosófica, sobre este pulsar que me isola os caminhos, mas nunca me senti completo nas margens, no conforto de palavras certas.
- E no entanto, sempre procurei uma casa, um abrigo de viagem, por mais breve que seja. Compreendo isso agora, cintilante, delirante, porque se tornou um pensamento de justificação para tanta necessidade de distância, porque se tornou tão essencial como um corpo de Mulher que me abriga os sentidos na tempestade ... Uma casa onde regressar, mesmo que de muito longe: regressar.
- Esta comunhão é como um vinho raro. Frio, embriagante. Percorre os meus sentidos, aquece a minha alma, assombra a razão. Consumido em demasia por uma fome insaciável, dilacera-me os dias na vontade de nunca mais regressar. Mas se eu continuar a procurar um abrigo é como o sabor de um café negro, filtrado, a escaldar, a libertar um odor intenso entre o vapor que sobe pelo buraco da caneca que nos aquece as mãos. Tolda o estômago, deixa-nos a tremer, atentos e tensos.
- Gosto desta comunhão, mesmo sabendo que o vinho e o café não se misturam. Nunca. Mesmo que eu continue a tentar uma e outra vez como um louco que persiste num mesmo sistema para cair nos mesmos resultados.
(Fleuma)
A mãe-natureza gosta de se sentar no seu trono e que os seus milhões de servos e servas tragam o seu imenso livro em branco em companhia da caneta feita de pó cósmico. É mãe-natureza porque assim foi decidido por quem não sei. Estranhamente, como seu suposto filho, nunca consegui descobrir, imaginar!, que seja, quem será o pai de todos. Mas ... divago e afasto-me do caminho.
A mãe-natureza gosta de criar contos, escrevinhando-os a direito ainda que por linhas tortas. Engendra cenários envoltos em fantasias disfarçadas de realidade. Preconcebe ideias para se manter distraída da triste realização de longevidade. Porque não é eterna. Apenas viveu e viverá tempos além dos meus. É antiga e pouco agradecida. Por isso escreve para se distrair.
A sua caneta cósmica flui inventando personagens, que afinal, o que seriam contos sem criaturas vivas? Ou quase vivas. Mortas muitas vezes sem o saberem. Culpa da mãezinha, essa ingrata para os seus criados. Porque se afoga num estranho sentido de humor, brinca. Uns são assim e outros de outra maneira. Nunca descreve personagens iguais. Fomenta a ilusão de vida onde não existe nada. Descreve personagens de cores diversas, mentes diferentes e comportamentos muitas vezes apenas possíveis de imaginar na sua mente antiga e desregrada.
De todas as criaturas vivas e não vivas, sólidas e quase invisíveis, milhões de existências geradas ao longo de tantas eras que a dita mãe-natureza se recusa teimosamente registar e recordar, surge sempre um remendo aqui e ali que insiste em criar e manter sempre por perto nos contos que pontilha. Não são peças centrais dos seus relevos escritos. São bastas vezes colocadas nas margens mais estreita das folhas. Poderiam ser rebeldes com causas. Satânicos impassivelmente disponíveis para semear o caos. Ou nobres assassinos com piedades ocultas. Até chegariam os mais simples de vida, mais preocupados com o que há para jantar do que salvar o mundo - que a mãe-natureza parece estar virada para o outro lado enquanto o pomar está a ser martirizado.
Não. Nada que se pareça.
Teimosamente, escreve para afastar a solidão e assim espelhar o desprezo que sente pelo resto da sua criação. É seu gosto que sejam fisicamente distorcidas. Personagens de fisionomia ligeiramente porcina e ainda assim, bizarramente atarracadas. Ainda que sejam estranhas na sua compleição, emanam um ar comum. Vulgar de quem se encontra todos os dias. Por tais pormenores, raramente são tidas em atenção.
E porque razão a mãe-natureza se preocupa e ocupa na elaboração destas personagens? Perguntam outros. Quando bem seria não deixar morrer crianças em agonia. Quando seria mais proveitoso resultaria proporcionar um fim feliz e sem desgosto ao cachorro branco e preto que atravessava a estrada e foi atropelado, arrastando-se ainda e em agonia para o passeio, enquanto olha para o céu cinzento sem perceber que está a morrer.
Porque como escritora de pasquim a mãe-natureza prefere a existência artificial do que se revela realmente feio. Não apenas de corpo que aí a escritora brinca ao pormenor: gosta de quem pode ser agreste de aspeto e seráfico de sentimentos. Gosta de personagens belas de corpo mas escuras como a noite na alma. Mas adora, ama e regurgita por criaturas de diáfana imbecilidade e intriga. Pequenas em expressão e tamanho, livres de envelhecer a seu belo prazer - mesmo que roídas e tolhidas por algo que nem a própria e falsa mãe-natureza pode contrariar. A Morte. Esta sim. Nossa real Mãe.
Mas acha que sabe escrever, esta estranha e falsa mãe. No seu sentido de humor distorcido e arcaico vai criando pequenos abortos naturais apenas com um ponto assente: comparar o incomparável, tentando justificar certas existências. E porque é um seu tratamento para o cancro que a consome cuspir abominações.