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Um primeiro sinal de comunhão entre sombras:
- Deixar a noite correr em sossego, e de manhã, esconder-me no sono; magoar-me em sonhos, acordar envelhecido, gasto. Esta é uma virtude que cultivo em mim, como se de uma velha, muito antiga prece se tratasse, enquanto vou insistindo num mesmo sentido, longe da vontade que teima em aprisionar os meus passos. Queria muito excitar a minha razão com uma explicação sóbria, filosófica, sobre este pulsar que me isola os caminhos, mas nunca me senti completo nas margens, no conforto de palavras certas.
- E no entanto, sempre procurei uma casa, um abrigo de viagem, por mais breve que seja. Compreendo isso agora, cintilante, delirante, porque se tornou um pensamento de justificação para tanta necessidade de distância, porque se tornou tão essencial como um corpo de Mulher que me abriga os sentidos na tempestade ... Uma casa onde regressar, mesmo que de muito longe: regressar.
- Esta comunhão é como um vinho raro. Frio, embriagante. Percorre os meus sentidos, aquece a minha alma, assombra a razão. Consumido em demasia por uma fome insaciável, dilacera-me os dias na vontade de nunca mais regressar. Mas se eu continuar a procurar um abrigo é como o sabor de um café negro, filtrado, a escaldar, a libertar um odor intenso entre o vapor que sobe pelo buraco da caneca que nos aquece as mãos. Tolda o estômago, deixa-nos a tremer, atentos e tensos.
- Gosto desta comunhão, mesmo sabendo que o vinho e o café não se misturam. Nunca. Mesmo que eu continue a tentar uma e outra vez como um louco que persiste num mesmo sistema para cair nos mesmos resultados.
(Fleuma)
(999)
Observo, distanciado, uns poucos onde procuro almejar pequenas réstias da minha esperança. Gosto de descansar, nestes, os meus olhos, desejando muito mais vezes, conseguir realmente sentir-me próximo deles. Como amigos. Companheiros. Companheiras e vontade de ali permanecer.
Mas, creio que frequentemente, persisto neste cismar que rapidamente me atira para a divagação - nem sempre a mais generosa de racionalidade. Demasiadas vezes nostálgica, que atiça a minha fome de repetição. Nunca mais parar.
Por vezes olho e fico em frente a eles. Expressão com expressão. Partilhando notas e vozes. Ébrio com o que escuto. E com aquele beijo tão sedento, para quem se julga moribundo e afinal, apenas renasce.
Mas os sentidos são, muitas vezes, afagados por palavras directas como pequenas chamas no escuro. Temeroso, observo, temendo a intrusão maligna que acaba, inevitavelmente, por corromper o momento raro e solene.
Mas é isso mesmo.
É como perseguir a eterna ideia do ouro e das estrelas, transformando-a numa metáfora pessoal onde insisto em aprisionar todas as grandes memórias, todos os momentos mais gratos da minha experiência. Não é sequer uma referência ao metal precioso, antes um assentar de joelho na terra e um baixar da cabeça, a algo que para mim é verdadeiramente valioso e sem preço. Algo que permanecerá na minha consciência até ao dia em que morrerei e onde sei que em cada recordar desses momentos, sentirei genuinamente algo semelhante a uma alegria feliz. Pura e intensa.
Não consigo encontrar uma explicação para esta tempestade nestes momentos. Vai contra a minha natureza. Sei disso. Mas é como um raro néctar de sobrevivência animal e primário; traz consigo um estranho calor que aquece o coração e a alma. É por isto que persigo esta ideia e onde certas memórias, as mais maravilhosas memórias, são o mais precioso ouro e as mais brilhantes estrelas. E como sou demasiado egoísta na minha vontade, nunca vou deixar de as perseguir, guardando-as em espaços apenas meus. Só meus.
Não desistirei de acreditar que será esta perseguição do ouro e das estrelas que se sentará ao meu lado no meu último dia na Terra. Que serão as melhores memórias a acompanhar-me no meu último respirar. Antes de fechar os olhos.
Por vezes, nos comentários anónimos que recebo, por norma pouco favoráveis e demasiado frementes nos seus moralismos dourados, duas palavras persistem, como toques sentenciais de quem acha conhecer-me, - "perturbado e estranho".
Como se eu fosse um livro aberto, perfeitamente cristalino, onde bastam as palavras que escrevo neste buraco para que a minha alma seja desvendada. Como se não fosse óbvia toda a minha ânsia por privacidade - devia ainda ser mais cristalino que apenas descrevo traços mínimos, toda a imensidão que resta permanece em sombras. O conhecimento é o que eu quero que seja. Mais nada.
" Perturbado e estranho" podem ser folhas em branco onde gosto de exorcizar demónios pessoais. Meus. Inflexíveis. São as minhas batalhas e as minhas cicatrizes. As minhas vitórias e derrotas - demasiadas para carregar.
Sei de obsessão. Extremismo. De não ser referência ou exemplo. Porque pouco me interessa. Já se torna demasiado penoso tentar viver comigo próprio sem me afogar em ódio e frustração.
" Perturbado e estranho " são parte da exortação enfadonha de quem julga conhecer algo mais do que a sujidade do solo de onde nunca ergue o olhar.
E servirão perfeitamente para o epitáfio deste buraco.
(999)
Que estranho, num vírus, a virtude do distanciamento. Como se fosse agora, nos dias d´hoje, que se exponham máscaras e luvas na mais absurda necessidade de afastamento - como muros contra o avanço dos dedos da morte.
Há muitos anos que aprendi e aceitei a soberba da distância social. Como abrigo da consciência. Como purgatório mental. Creio que tudo se revela quando se sujeita a criatura humana ao extremo isolamento, sem passeios, sem o roncar das ruas encharcadas de gente. E multidões.
Aceitei a necessidade e a distância. Eu e mais alguém - no distanciamento de centenas de quilómetros da cidade, entre a floresta e a neve dos vinte graus abaixo de zero. Assim, não completamente só. Um teste de força mental a partilha de tão intensa solidão é a mais perfeita das sinapses, quando o retiro imposto se veste imaculadamente de lendas contadas, de canções entoadas na voz que eu tão bem conheço e sinto. Como se a praga fosse uma conspiração para me obrigar a compreender onde mora a mais profunda das melodias, num dialecto que se torna cada vez mais meu. Ainda e como se, habilmente, para adormecer o receio e a saudade de outros.
O meu isolamento tem a coroa da melodia da voz mais bela. Serve, para mim. Tem o caminhar na neve mais suave e o vigor dos banhos na água gelada - coisa de saudar o Inverno - disse-me. Mas tem sido também o calor humano de um estranho anjo. Indescritível na discrição da sua beleza. Calor de madeira a estalar e de abraço caloroso.
O vírus parece revelar-se em nós. Em mim. Voltei a aceitar heróis. Não da filosofia ou das guerras. Salvadores que sempre dei como presentes e que agora se revelam num campo de batalha sem trincheiras, tanques ou misseis. Se alguma virtude tem o vírus para o descrente é a da revelação. Olhar para esta realidade e compreender que em breve surgirá uma outra mitologia; novos mitos. Habitam entre as camas e ventiladores. Ajudam a sacudir a mão da Morte nas horas que não dormem e parecem assustar o desespero de quem teme morrer.
E enquanto embalo esta nova noção, consolo, novos mitos que quero alimentar, vou alargando espaço além dos próprios heróis que já permiti na minha mitologia.
Eu ...
A felicidade não deveria proporcionar a sensação de preenchimento. Nem sequer acarinhar a ideia de "um todo", de totalidade sem receio. Imagine-se uma felicidade suprema, da mais completa entrega e confiança; onde todos os dias a mais intensa das realizações se tornasse realidade.
Este sonho como absoluta realidade. Que esta felicidade, plenitude e realização, libertasse esta esfera onde caminhamos de toda a opressão e doença. Nada seria maligno. Apenas felicidade.
Imagine-se que seria possível destruir a tirania da utopia, e ser perfeitamente feliz se converteria num absoluto.
Como se consegue sequer, antecipar tamanha noção de tamanho, totalidade e estado divino sempre foi algo que me provocou um esboçar sorridente; talvez porque me fascinam e assustam tais estados de total entrega ao absoluto impossível. Porque se revela impossível uma pequena abstracção que seja com conceitos onde todos os dias seriam de agraciamentos ilimitados, amores imensos e harmonia entre todas as criaturas deste mundo.
Um persistir no pensamento de que nada mais seria de desejar; feliz e perfeito tudo estaria de acordo com o bem de todos. Como se a felicidade fosse o que mais importa ...
Acho que sou feliz nos olhos de uma criança que se aperta contra mim. Acho que este estado de estranha evasão é ser feliz quando caminho lado a lado com ele, a bengala e o cão.
Ou porque me salva a emoção segredada num aperto extremo - "Amo-te".
São testes de força física - vencidos.
É música - exposta a outros ouvidos.
Talvez seja assim que vejo a felicidade que não deverá ser absoluta. Creio que a perfeição se tornaria grotesca sem a sensação de Limite. Limites que são urgentes. Impossibilidades que tornam cada gesto, palavra e sabor, um caminho.
De que serve a totalidade feliz se tudo estiver realizado. Se não restar nada que exija um limite deixando o amargo da desilusão e do desejo falhado.
Como se pode sonhar com a felicidade absoluta sem conhecer o que realmente cobre as criaturas de vida?
Desilusão. Dores. Imperfeição. Limite e fim.
Aprender. Quando todas as dúvidas se tornam cristalinas.
(999)
" Open, Ye Core ..."
Violência controlada. Sente-se escorrer na pele. Bate asas e rodopia pela sala em escuridão. Como que feita de trapos sombrios; alimenta-se do suor banhado na frustração dos dias de incerteza e nos desejos. Desejos tão negros, ali, na distância de um tocar.
Como consegue ser majestosa a doce violência do som! Reunifica os pedaços da alma e alimenta a sofreguidão deste veneno. Envenenado na liberdade criativa sem limites ou deuses.
E é amor, amar esta violência que se deixa domesticar. Como que na placidez dos crentes nas suas virtudes. Como no sossego que nasce da sabedoria. Quando o som cresce em monstruoso e na mente dançam as sombras enamoradas nas palavras atiradas, cuspidas, ásperas como lâminas, e é na escuridão que existem as respostas.
Não nas luzes.
Em sangue. Amo-a. No indescritível comando de uma canção. Toda uma vida de cinzas existe. Acorrentada na noite.
Amo a violência do som negro ainda e quando tudo parece acalmar-se e pela sala restam as faces espantadas e as bocas abertas de sede. Venero a devastação que permanece.
Quando tudo se silencia.
Eu ...
(999)
A ideia de conhecimento pessoal, voltado para dentro e com a extrema necessidade que nasce de aceitar o que transparece, longe de tudo e toda a atenção que não a nossa, revela acima de qualquer nota, a sombra do mais perfeito egoísmo. Engenhoso egoísmo que semeia a virtude de algo apenas nosso e nunca revelado, mesmo quando na troca de confissões intimas. Mesmo perante o olhar persistente do psiquiatra.
Alguém me afirmou que conhecer o que "habita" em nós é como pernoitar numa casa entre montanhas e durante uma tempestade de neve. Quem já testemunhou a fúria assassina da nevasca do Norte entende a incapacidade de responder sobre o que habita em nós. Podemos fechar janelas e criar calor para aquecer. Existirão sempre frestas de imprevisibilidade e escuridão. E espaços que apenas eu conheço e tenho acesso.
E gosto dos meus recantos escuros e frios. E dos teus. Do que consigo transportar em mim enquanto bebo das tuas palavras. De ínfimas possibilidades. Assombros. Promessas cumpridas.
Conhecer.
Não gosto do que canto. É grotesco. Não existe realmente luz nele. Antes a tua canção. Infinitamente mais respirável. Mesmo que sonhadora, é respiração. Desgraçadamente necessária.
(999)
eu
...
O pior dos erros cometidos é a incapacidade de aceitar outros como diferentes. Tornam-se obstinadas as criaturas quando descobrem que outros não são iguais a si. Persistem obstinadas na ideia de alma-gémea, transformando-a caridosamente em reflexo. O seu conceito de transformação é aquele de uma lógica companheira, gostando do mesmo e rezando o mesmo terço. Falsamente aceitando no pensamento de que são seus semelhantes.
Não creio ser igual a ninguém. Não creio que os outros queiram ser iguais a mim. Não me interessa. Tenho caminhos apenas meus mas nem sempre os percorro só. Nesses dias é necessário que peça e muitas vezes estenda a mão, abrindo portas para companhia. Mas estranho é o sentimento de conhecimento e solidão. Estou mais ciente da solidão quando acompanhado. Encaixa na perfeição.
Por estes últimos dias retive a noção da minha falta de beleza exterior. Um pouco pior do que isto: alguém me afirmou perturbado achar ser também muito feio de alma!
Aceito ambos os juízos com a parcimónia e afectação da falta de surpresa. Porem devo reconhecer em meu próprio mérito que se tornou muito mais fácil viver comigo próprio do que com os outros. Que é apenas o meu egoísmo a latejar, mas não somos todos iguais e merecedores do mesmo amor. O oposto é também uma realidade. Existe quem encontre beleza em mim. Na mais profunda essência isto basta.
Eu
(999)
Ninguém na sua perfeita racionalidade deveria esperar retribuição de um olhar frio e distante. E portanto, existem os que persistem, teimosos de convicção. Incapazes eles próprios de aceitar o fracasso e suposta impossibilidade de transpor paredes e muros altos. Creio na minha incapacidade de partilha em larga escala. Não por arrogância ou presunção Deus Ex Machina; é um facto penoso mas existe quem não consiga absorver tanta gente ao pé de si. Por absurdo que seja, consigo com dificuldade, reter um reduzido número de verdadeiros amigos. Impossível conceber rodeado de gente em festas. É sintomaticamente aterrador.
A palavra "amo-te", exprimida com brilho no olhar e por quem consegue descarregar doses letais de certeza emocional, funciona como a destruição do ferrolho; mesmo prevalecendo a minha noção do quanto distorcida e vulgarizada tem sido esta expressão. Ainda que insista no questionar da sua importância, alguém persiste e afirma claramente a noção de excepção que confirma a regra.
Eu nunca imaginei qualquer tipo de imunidade a ser amado. Sei por análise frequente que existe uma dualidade na primeira observação de quem me encontra. Uma nuvem de incerteza muitas vezes extremamente visível; e receio, que acredito ser causado pelo aspecto físico. Não me parece que haja um meio-termo ou outra possível comparação. A minha irritação inicial pelo facto desta reacção ser tão estupidamente comum foi sendo progressivamente substituída por um certo divertimento pessoal; é fácil despertar comportamentos embaraçados a quem receia ou está incerto. Basta que mostre de forma bastante suave os dentes num sorriso afável. Observam que afinal, as presas do urso até parecem inofensivas e se calhar houve precipitação. Mesmo desconhecendo que sou criatura apaixonada pelas artes da mordidela dada e principalmente recebida.
Por um qualquer desvairo existencial, entre tantos "amo-te" atirados ao vento de forma banal e absolutamente asquerosa, existe um, segredado nas horas mais escuras, quando o pensamento se tornou numa massa turva e nebulosa, que possui alquimia de salvação.
Alguém insistiu.
Falta agora que me habitue a aceitar uma derrota.
(999)
A redenção tem um preço. Escorre com um sabor acre. A mim sempre me pareceu. Só os conscientes do naufrágio procuram a redenção, como se de uma amante infiel se tratasse. Vamos desfiando os dias no falso sossego da salvação; talvez dentro de horas anoiteça e consigamos dormir.
Sono.
O verdadeiro pathos para a redenção. Ironicamente, dormir é rendição. Redimir sem batalhar. Nem sequer será o afago terno do abraço transformado em caricia. É não lutar. É descansar. Dormir.
Eu tenho visto tentativas de redenção em poucos rostos. Mentiria se afirmasse acreditar nas faces que sorriem, tentado a salvação. É meu descrédito, mas quem respira uma vontade de redenção não consegue sorrir. Sei antes que vamos apodrecendo um pouco mais em cada tentativa. Temo que um sorriso se revelaria demasiado penoso pela consequência.
Não tenho a certeza mas numa espécie de arremesso deixei de procurar a redenção nas cápsulas e pequenas substâncias redondas como ilusões de esperança, e reconheci a necessidade de vagar sem a doce certeza de que o que foi deixado seria sempre uma garantia de pacificação. Sintética juíza da minha incapacidade de salvação.
Estranhamente, não existe deus na redenção. Apenas uma monstruosa noção de vazio e da sua necessidade de preenchimento. Um brilho intenso nos olhos como numa permanente vontade de devorar. E uma certeza, clara como uma manhã de verão, de que não existe uma cura. Apenas se vive entre mundos.
Nós, procurando um redimir, vamos pontuado o nosso corpo com cicatrizes e imagens, numa vertigem quase messiânica de aviso e arrependimento. Dolorosamente convencidos dos traços deixados transformados em cinzas.