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Ouroboros
(999)
Se formos atentos será fácil observar que o seu objectivo principal é continuar a viver. Manter a ilusão da necessidade de permanecer perto dos outros. Erguer-se da cama todos os dias numa espécie de ritual antigo, de outrora, antes da desilusão. Agora, neste esforço esticado e continuo, mantém a vida num compasso de espera entre os dias mais solitários, onde mais do que nunca se espelham as máculas de uma escuridão que não quer e não escolheu, mas que se estende pelo seu respirar cansado. Caminha todos os dias porque é apenas disso que ainda sabe com certeza. Mover-se. E o desespero ainda mora nessa ideia distorcida que procura uma motivação para manter a vida. Necessita disso desesperadamente porque nada do que aprendeu lhe serve de consolo nestes dias de hoje. Tudo o que antes foi uma certeza e uma crença é agora uma inutilidade obscena, um apêndice a mais e sem valor.
Entregaria todo o seu passado neste instante pelo conhecimento de hoje, ditado pelo rigor da sabedoria desta amargura, dessas desilusões. Poder não sentir a companhia constante deste vazio. Não antecipar a necessidade de justificar mais um dia ao alvorecer com os pés fora da cama. Não girar os olhos pelo quarto e pelo resto da casa e sentir que lhe falta o ar nos pulmões, porque o que resta parece tão pequeno...
É patético ser forçado a um poiso ermo que não quer e não desejou. Continuar a respirar. Em silêncio e solidão.
E saber disso.
(Fleuma)
A frequência com que faço exactamente o mesmo caminho para chegar e sentir o abrigo da velha cabana no meio de nada é a mesma de outros tempos, quando a velho ainda me acompanhava numa espécie de ritual de iniciação passado de geração em geração. Creio que o velho senhor muito mais do que eu na minha arrogância, conhecia as virtudes da ritualização da solitude mais áspera, cultivada pelos anos passo a passo, não como uma obrigação mas como uma sujeição consentida naquele amor tão intensamente pessoal, que se não for domado nos transforma irremediavelmente. Nesses dias sempre lhe pressenti uma despedida nos olhos azuis turvos pela velhice enigmática, pela maneira como girava a cabeça pelo vazio branco à nossa volta, naquele estremecer tranquilo de antigo pássaro que nunca parece perder a altivez dos anos, exímio no trajecto até à cabana de madeira neste estranho universo de vazio invernal. Recordo-me de jurar em silêncio a mim próprio nunca abandonar este caminho até à cabana, de venerar o seu aprimorar de sentidos e o sentimento de ausência tão potente que se torna na torrente que volta a encher o meu mundo. O velho compreendia isso como se eu fosse uma sua ramificação, descobri muito depois e enquanto caminhava por aqui em absoluta solidão. Creio que nestes passos nem a Morte tem fome de me levar. Até Ela parece aceitar a pacificação deste caminho no frio branco e inclemente do Norte até à entrada do abrigo, como um proveito que me concede pelo respeito a quem caminha. Sei que o velho senhor sempre soube desses portentos em que a distância nos parece mergulhar sem no entanto nos afogar. Desses baptismos e encontros. Demónios e Deuses que habitam em nós. Em mim. E eu aprendi a centelha de um amor que apenas se reconhece quando atravessamos esta solidão desoladora, porque é neste vácuo seminal que se sente a falta dos ausentes, e quando a velha cabana aquecida nos revela o assombro de um verdadeiro abraço de salvação.
Consigo caminhar durante horas e em dispersão, ainda como se esse velho senhor estivesse ao meu lado, a respirar tranquilamente, arrebatados pela ausência de peso nos pensamentos, com as botas a pisar a neve como amarras a este mundo que nunca parece ser o meu, sentindo a veneração do silêncio à volta num inclinar de peregrino. E juro que ainda agora lhe sinto os passos suavizados pela neve nas botas a entrar na cabana. Que observo a sua mestria enquanto acende a lareira e esfrega as mãos sem as grossas luvas. E juro que ainda agora adormeço profundamente no baloiçar das nossas cadeiras a beber chocolate quente e a comer nacos de pão escuro com queijo, enquanto lá fora é noite de mil auroras boreais.
Poderia morrer neste mesmo instante.
(Fleuma)
http://agaffe-easavenidas.blogspot.com/
Por vezes, porque privilegio os silêncios que inexplicavelmente se vão tornando demasiado longos, talvez porque nunca tenha gostado de perturbar os espaços que não são meus, talvez porque o meu respeito por distâncias demasiadas vezes se converta num quase culto, vou deixando cair no esquecimento detalhes que eu sei serem importantes para mim. Creio que se trata de um dos maus presságios que afectam os que como eu, consideram o silêncio como uma arte de respeito e admiração - pelo menos no que escrevem os outros.
Reconheço esta falha em mim. Deixo, por demasiadas vezes, que se afastem da minha órbita criaturas que considero singulares, mesmo que nunca tenha cruzado com elas outro caminho que não o deste local. Não as esqueço. Aqui não admito essa falha. Guardo as suas referências num local reservado da mente e com o passar dos dias e com a distância vou adormecendo na memória. E é apenas preciso um leve rebate como um estalar de dedos para voltar a encontrar uma criatura singular que o silêncio transformou numa espécie de grata recordação.
Voltei a reencontrar as avenidas de uma certa "Gaffe" e a sentir-me como se nunca tivesse realmente partido. Talvez fosse próprio uma ou duas vergastadas de auto flagelação pelo meu silêncio e distância neste caso particular. Talvez.
No entanto, voltar a vampirizar a escrita desta criatura singular, tão única como uma "outradecoisanenhuma" onde voltei a recordar uma certa "Gaffe", foi como voltar a saborear um velho néctar!
Mesmo respeitando silêncios e distâncias não deixarei que volte a adormecer em mim os labirintos da "Gaffe".
Principalmente os seus momentos escritos de sombras cinzentas e melancólicas que, estranhamente, consegue sempre carregar de uma beleza surreal.
Espero que não haja mal em citar este blog singular sem pedir permissão.
Uma vénia, Gaffe!
(Fleuma)
Lembro-me da primeira vez que li o que escrevia num daqueles dias de silêncio absoluto e cadavérico, desalinhado com as horas, sem distinguir se era manhã se afinal já estava a anoitecer. Lembro-me como fui deixando avançar os olhos pelas palavras, que acredito, foram escritas com aquela distensão de quem respira uma sofisticação desconhecida em si, naquele acto descuidado de libertar os pensamentos através de emoções que em mim estão adormecidas.
Pressenti um monstro que parecia caminhar sozinho, que parecia ter retirado algo suspeito de dentro de si e o atirou para o chão branco de uma página. Queria ver o que se mexia dentro daquela caixa negra. Acho que a consegui abrir com a imprudência do cansaço...
Miséria, tristeza e uma dor surda à flor da pele.
Uma solidão e ao mesmo tempo uma ânsia de continuar, como se tivesse uma absoluta e cristalina certeza de que morreria se perdesse tudo isto.
(Fleuma)
Certos locais de escrita são como pequenas candeias que iluminam as noites mais escuras, por vezes fora da nossa rota, apenas visíveis aos que caminham e pressentem os seus ventos distantes. Porque nesses locais de escrita a palavra soa-me a outro vento que poucas vezes senti. É estranha esta virtude que mora nos dedos de certos, a estranha capacidade dos que caminham entre labirintos sem temor de locais ermos e escuros, o seu desapego - este mesmo sabor - sempre foi para mim uma fonte de obsessão, uma porta para o outro lado.
Descobri que em certos locais de escrita as minhas chaves de portas são forjadas no metal cristalino da Saudade e da Nostalgia, que não interessa se é manhã ou entardecer, sequer se é noite de chuva. Que alguém não olhou o monstro em mim e simplesmente estendeu palavras escritas como dedos esticados entre sombras - sem medo dos dentes escondidos.
Certos locais de escrita quando trancam as suas portas deixam no ar a memória de uma casa iluminada por um sol terno do inicio de Outono, banhada em claridade aconchegante. Apetece aspirar os seus sonhos e passos distantes, deixando cintilar a certeza de que uma nova solidão mora agora nesses raros locais.
O caminhante carrega essas memórias fechadas em si.
E é estranho o seu sabor.
(Fleuma)
"Enquanto o padre, esse negador, caluniador e envenenador da vida por profissão for aceite como uma variedade de homem superior, não poderá haver resposta à pergunta: O que é a verdade? A verdade já foi posta de cabeça para baixo quando o advogado do nada foi confundido com o representante da verdade.", F. Nietzsche
Archie Battersbee
“O médico deve acalmar os sofrimentos e as dores não apenas quando este alívio possa trazer cura, mas também quando pode servir para procurar uma morte doce e tranquila.” - Sir Francis Bacon
Lembras-te, nas raras vezes em que a minha ousadia se atreveu a romper o silêncio? Quando tudo o que escrevia eram sombras, escuridão e abismos, tu, quase branda, nesse teu acreditar num mundo melhor, aceitavas os meus trejeitos lúgubres, talvez porque, no fundo, me achavas estranho e perdido em algo, e incapaz de me submeter a essa racionalidade que insistes ser a tua maior força.
É estranho, para mim, agora, provar o ácido do teu pessimismo, sentir-te entre as tuas sombras e medos. É estranho porque te desconheço forças para caminhares orgulhosa nestes dias onde a Ordem é o Caos organizado. Mais estranho, porque nada sei das tuas lâminas de sobrevivência, mas pressinto o teu espanto perante um mundo feito de horrores sombrios, buracos sem sol e bestas cegas.
Poderia romper o silêncio porque sei que sempre tive razão.
Mas não. Não é isso que eu quero.
Também não quero testemunhar-te incrédula. Muito menos escutar a tristeza a escorrer pelas agruras da tua dúvida, enquanto se vão esmagando os tronos dourados da paz e da consciência.
Para isso estou cá eu. Sobrevivente da explosão. Pregador da Queda. Incapaz de confiar no mundo.
Não.
De ti, quero o pequeno, longínquo e frágil raio de luz, que vampirizo para caminhar entre sombras. Quero que sejas diferente, mesmo que sintas ser uma idiotice plena a confiança nos outros; mesmo perante a evidência da minha razão e cinismo, quero que me arrastes por outros labirintos. Quero a tua companhia e que sintas o sabor da textura das minhas escarpas, da persistência da tua preocupação contra a minha lógica.
Ofereço-te um catecismo de um perdão que me esqueci. Perdido. Um poema amargo sobre as cinzas deste mundo. Um fim sem fanfarra.
Oferece-me a tua esperança. Mesmo que seja uma bofetada no meu rosto orgulhoso. Um fragmento a cintilar junto ao abismo.
É isso.
Um rasgo apenas. Uma fenda. Uma saída. Mesmo que tenha o sabor da ilusão e do sonho.
(999)
"O encontro de duas personalidades assemelha-se ao contacto de duas substâncias químicas: se alguma reacção ocorre, ambos sofrem uma transformação." - Carl Jung
O desvelo contido é uma mão que se estende para auxiliar os cegos entre as paredes dos labirintos. Uma arte que, em escassas criaturas, nasceu logo no primeiro respirar, e nunca mais abandonará a sua existência. Assenta nela como uma coroação, e se não formos estupidamente ignorantes, é possível notar um brilho de luz no meio da tempestade. Por vezes, parece desvanecer-se como os sonhos ao acordar. Mas não: às vezes esconde-se, tímida, como quem se envergonha de uma virtude sua e que a maioria não tem. Envergonhada, cruza os braços junto ao peito, como se merecedora de uma qualquer punição.
E são estas estranhas criaturas que, secretamente, também amam as sombras e conseguem nadar entre elas, como se fossem, afinal, parte desse mundo, despertando os sonhos e os desejos mais contidos; escondendo as horas que matam, em lugares encantados - apenas seus. É inefável a beleza dos olhos abertos destes bizarros seres - insistem na esperança! Confiam em fantasmas. Confiam em sonhos. Estranhamente... parecem confiar nessa coisa a que chamam coração, como uma bússola de sentimentos, e não apenas um órgão que bate para a vida. São a irritante frustração dos cínicos insolentes, porque, entre os esconderijos reclinados do seu desvelo, afirmam que o poder do nosso Inferno existe apenas porque os seus prisioneiros insistem em sonhar com o Paraíso.
Gosto destas criaturas. Tão diferentes de mim. Tão fascinantes na sua capacidade de esperança.