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Às vezes basta cruzar as portas e voltar à rua. Deixar que se fechem atrás de nós num reconhecimento sentido de que terminou, naquele sentimento que suspira uma secreta paz alegre. Voltar a pisar o cimento no regresso de olhos postos longe, num emaranhado que balança entre a saudade que ficará e esse instante quase despercebido de algo que se liberta sem retorno.
Adeus.
Quantas vezes me afoguei nesta palavra?
Tão poucas e raras porque sempre foi definitivo esse adeus.
E parecemos não ter uma clara noção do que encerra em nós um verdadeiro fim de caminhos cruzados, em que se torna este mundo quando cruzamos as portas e não voltaremos a regressar. O peso da certeza nos passos que se afastam cada vez mais depressa. O que significa esse preciso instante no que restará após a despedida. Um adeus impregnado naquele cinismo do que é realmente, inequivocamente, sentido em cada fibra nossa.
... E afinal fica tanto por dizer!
... Como neste lugar.
(Fleuma)
Perdi o controlo.
Pura e simplesmente.
O que tornou o processo ainda mais catártico e transviado do cismar habitual em que reconheço o meu próprio cogitar, a passagem entre os labirintos e a ânsia da mão que se estendeu. E é estranho que um gesto tão suave e assertivo, com uma longitude tão breve se transforme num pulsar tão violento para mim, volátil e fora de tempo. Esta é uma dissidência de sensações nos meus cálculos de antecipação, uma agrura que tento exilar por egoísmo de sobreviver há tanto tempo que já perdi a conta, sem a reparação do sucesso. É como se por vezes não sentir seja uma espécie de paz podre que consegue evitar uma conflagração violenta dos meus instintos, provocando um desabamento em torrente irrecuperável, um esticar emocional que mutila todos esses anos a esculpir uma armadura blindada, aberta apenas aos meus escolhidos.
Uma arrogância minha. Claro. Como se fosse capaz de filtrar os momentos de dano segundos antes do embate com uma eficiência predatória!
Mas creio que foram as suas lágrimas a cair nos dedos grossos da minha mão que criou a faísca da combustão. Foi esse quase inaudível gemido de fraqueza, aquele libertar de lágrimas tão friamente genuíno e cansado. Tão estranho e não reconhecido em mim mas tão potente naqueles precisos minutos, na mais absoluta demonstração de fragilidade humana, naufrágio e necessidade de abrigo na tempestade.
Humana demasiado humana.
Abri os braços e ofereci-lhe o meu peito.
Apertei com força. Demasiada força.
Chorou no meu ombro durante muito tempo.
E estranhamente, perdi o controlo.
Pura e simplesmente.
Naquele momento no tempo pareceu-me certo.
Apenas isso.
(Fleuma)
Os livros de notas estão cheios de fragmentos, estilhaços de intenções pessoais, conclusões curtas e encontros.
Como...
Duas criaturas juntas, sentadas na varanda a meio da noite, olhos postos nos pirilampos e com milhares de estrelas no céu nocturno. Olhos ora num lado ora no outro. Diria que o silêncio tem sabor nestes momentos, onde a noite se torna violentamente bela, e que se revela demasiadamente fácil aceitar a ideia de que as constelações falam uma linguagem própria, apenas revelada naqueles precisos instantes, fragmentos onde não é possível apenas testemunhar mas necessário registar em qualquer lado que seja.
Este registo de uma aparente banalidade é uma submersão nos fragmentos que alimentam os passos silenciosos de outros. O que pode perfeitamente esboçar na indiferença de tanta gente - os meus fragmentos religiosamente preservados, talvez venham, numa dessas noites de desencanto de uma outra alma, a ser anotados numa margem do pensamento como traços do que sou.
E porque acho que não se devem folhear estilhaços não consigo passar página por página os livros de notas dos outros, mesmo que por vezes os retenha anotando caminhos e olhares esquivos. Traços das palavras que começam potentes e algures pelo meio escurecem pensativas, vão deslizando para fragmentos, estilhaços de catarse que muitas vezes recortam os dedos a quem o tenta.
(Fleuma)
Vejo os meus dias através do olhar das noites de sono, na resistência ao adormecer, como um pressentimento de morte sem regresso. Gosto de me alongar na insistência em explicar que estou atento ao que me rodeia - talvez até demasiado atento. Que este mundo se revelou afinal numa armadilha sinistra e de impossível tolice e que mesmo assim eu consigo isolar pensamentos e refúgios, que ainda é possível encontrar abrigo nas distâncias percorridas.
Valáquia é um desses locais entrincheirado nos meus caminhos. Escondida e timidamente desconhecida tem a persistência do meu Amor porque gosto dessa timidez desconcertante, porque me apaixono ardentemente nos caminhos onde é pungente o cheiro do passado, e só o silêncio se despe para os sentidos. Este é um respirar sem sofreguidão, um sussurrar de passos de outrora entre as paredes dos castelos, onde a noite se veste de mitos...
E de manhã!?
As mulheres são belas e os homens são austeros e de olhar fixo. É um pequeno universo num outro sistema de estrelas - aqui ainda é possível escutar o eco dos nossos passos como se fossem cânticos do pensamento, o silêncio força uma paixão sem limites, a antiguidade é doce como o colo de uma amante.
Neste ponto único é tão fácil parar e escutar o sossego da paisagem solitária, enquanto o coração dança pelos caminhos perdidos e estreitos. Neles a água parece escorrer para o nosso prazer e um o beijo tem aquele tom voraz das paixões verdadeiras.
Únicas.
Para sempre.
(Fleuma)
Nada na minha viagem tem claramente demonstrado essa ideia de que tudo tem um destino definido, como se algures uma qualquer entidade assim o decida por mim. Antes pelo contrário. Tudo o que surge é um densa mistura de caos onde vou desesperadamente tentando construir alicerces de ordem. Mas não consigo deixar de insistir na estranha ideia de uma pausa, ligeira ou mesmo tão profunda que consegue intensificar os meus passos. É tão estranho e complexo e por vezes a escrita parece ser a minha salvação, como extensões do que penso e não consigo justificar. Uma escrita que alguém num dos seus momentos de partilha comigo afirmou ser densa, às vezes quase impenetrável, talhada por esconderijos e labirintos. E eu acabei por deixar assentar essa visão sombria do que escrevo neste local assombrado. Aqui eu oiço os meus pensamentos muito claramente mas tento não deixar que me consumam na loucura. Tento e tento.
No caminho vou, desajeitadamente, misturando químicos para os meus antídotos, entre eles a descoberta que encerra a virtude de conseguir amar algo sem o compromisso da linguagem. Porque se trata de uma maravilha para criaturas como eu, que não sabem escrever com a luxuria de outros. Esta será, então, a minha justificação para a densidade quase impenetrável porque não consigo encontrar outra. E porque gosto de Sombras, gosto de pensar nelas enquanto não durmo, e elas nunca são cuidadosas no seu respirar. Mas também sei que tentam salvar-me em todos os momentos e talvez seja por isso que ainda não queimei este local - para conseguir deixar escapar as suas imagens.
(Fleuma)
É já quase noite e no despertar de um sono tardio de horas quando a insónia se afastou para um dos cantos escuros do quarto. Quando os sentidos se tornaram claros e lúcidos apareceu uma vontade de reler as palavras de outros - distantes e diferentes.
Mesmo que agora seja uma parede erguida pela tua mão e onde era a tua varanda, ainda que já não existam descrições de passagens nem sequer ecos de passos sobre ideias, reconheço-te as marcas, por vezes taciturnas e, estranho, sem o esquisso da impaciência incrédula perante os dias que correm.
Acontece-me nesses precisos instantes em que pareço regressar da penumbra de um sono pesado e feito de esquecimento, por vezes acendem-se memórias de rostos, de gestos e até de palavras escutadas e lidas, em fragmentos dispersos que eu tento juntar. Uma artimanha minha para segurar a consciência e não voltar a regressar ao abraço da almofada. E mesmo que essas palavras escritas sejam coisa nenhuma para o teu pulso nada lhes apaga aquele breve momento de luz em clarão.
Por isso as retenho em despertar.
(Fleuma)
O sossego destes últimos dias cria um espaço de descrença em mim.
Se calhar é uma quimera minha procurar esta calma quando tudo parece girar numa entropia que consentimos, mas gosto disto, como acho virtuosos os dias em que durmo e não sonho. Um estado oculto raro e quase desconhecido. Quase.
Este silêncio neutro, a calma que respiro, quebra a dormência da minha insónia e consegue carregar o meu adormecer com um peso que me assombra. Assusta-me não estar debaixo dessa permanência alerta. É um território quase desconhecido essa magia dos olhos que pesam de cansaço, esse extasiar de quem lentamente deixa cerrar as pálpebras para se desvanecer numa espécie de morte aceite. Nada se torna realmente mais glorificante do que essa calma espessa, esse silêncio sepulcral, que antecede a confirmação dessa certeza, de que o sono pesado e inconsciente chegou.
E que é fútil qualquer esforço de resistência.
(Fleuma)
Uma forma estrita de inferno e paraíso pessoal subsiste na memória e na incapacidade de esquecimento. Na persistência do pensamento que nunca nos abandona, um porto de abrigo que consola os dias nas recordações ou um tormento existencial corrosivo e venenoso. Este paraíso tem outros nomes, todos eles em luzes abundantes e longe de ruas escuras e desertas. Esse inferno que memoriza e não esquece é um antro de demónios todos eles com um nome próprio - rancor, ódio, imbecilidade, tacanhice ... numa lista infindável. Mas também tem outros nomes divinos que habitam labirintos de tempestade mas onde vagueiam outras auroras - coragem, comunhão de sombras, conhecimento, reconciliação ... uma imensa legião!
Alguns escolhem descrever em si mesmos essas memórias e são como um purgatório, habitam escarpas próximas, demasiado próximas do céu; outros insistem no afogamento das recordações num ajoelhar intimo de devoção a um inferno muito pessoal. Tudo isto rebate em algo que escutei há muitos anos, "somos forjados pela dor, existimos por ela e para ela, nada se lhe compara!". E creio que é a mais pura verdade. Na nossa capacidade em recriar o nosso próprio sistema de punição pessoal. Na nossa capacidade de exercitar repetições que apenas provocam o renascer dos mesmos efeitos - a própria definição de loucura.
(Fleuma)