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É já quase noite e no despertar de um sono tardio de horas quando a insónia se afastou para um dos cantos escuros do quarto. Quando os sentidos se tornaram claros e lúcidos apareceu uma vontade de reler as palavras de outros - distantes e diferentes.
Mesmo que agora seja uma parede erguida pela tua mão e onde era a tua varanda, ainda que já não existam descrições de passagens nem sequer ecos de passos sobre ideias, reconheço-te as marcas, por vezes taciturnas e, estranho, sem o esquisso da impaciência incrédula perante os dias que correm.
Acontece-me nesses precisos instantes em que pareço regressar da penumbra de um sono pesado e feito de esquecimento, por vezes acendem-se memórias de rostos, de gestos e até de palavras escutadas e lidas, em fragmentos dispersos que eu tento juntar. Uma artimanha minha para segurar a consciência e não voltar a regressar ao abraço da almofada. E mesmo que essas palavras escritas sejam coisa nenhuma para o teu pulso nada lhes apaga aquele breve momento de luz em clarão.
Por isso as retenho em despertar.
(Fleuma)
O sossego destes últimos dias cria um espaço de descrença em mim.
Se calhar é uma quimera minha procurar esta calma quando tudo parece girar numa entropia que consentimos, mas gosto disto, como acho virtuosos os dias em que durmo e não sonho. Um estado oculto raro e quase desconhecido. Quase.
Este silêncio neutro, a calma que respiro, quebra a dormência da minha insónia e consegue carregar o meu adormecer com um peso que me assombra. Assusta-me não estar debaixo dessa permanência alerta. É um território quase desconhecido essa magia dos olhos que pesam de cansaço, esse extasiar de quem lentamente deixa cerrar as pálpebras para se desvanecer numa espécie de morte aceite. Nada se torna realmente mais glorificante do que essa calma espessa, esse silêncio sepulcral, que antecede a confirmação dessa certeza, de que o sono pesado e inconsciente chegou.
E que é fútil qualquer esforço de resistência.
(Fleuma)
Uma forma estrita de inferno e paraíso pessoal subsiste na memória e na incapacidade de esquecimento. Na persistência do pensamento que nunca nos abandona, um porto de abrigo que consola os dias nas recordações ou um tormento existencial corrosivo e venenoso. Este paraíso tem outros nomes, todos eles em luzes abundantes e longe de ruas escuras e desertas. Esse inferno que memoriza e não esquece é um antro de demónios todos eles com um nome próprio - rancor, ódio, imbecilidade, tacanhice ... numa lista infindável. Mas também tem outros nomes divinos que habitam labirintos de tempestade mas onde vagueiam outras auroras - coragem, comunhão de sombras, conhecimento, reconciliação ... uma imensa legião!
Alguns escolhem descrever em si mesmos essas memórias e são como um purgatório, habitam escarpas próximas, demasiado próximas do céu; outros insistem no afogamento das recordações num ajoelhar intimo de devoção a um inferno muito pessoal. Tudo isto rebate em algo que escutei há muitos anos, "somos forjados pela dor, existimos por ela e para ela, nada se lhe compara!". E creio que é a mais pura verdade. Na nossa capacidade em recriar o nosso próprio sistema de punição pessoal. Na nossa capacidade de exercitar repetições que apenas provocam o renascer dos mesmos efeitos - a própria definição de loucura.
(Fleuma)
Na primeira vez os olhos não conseguem permanecer distantes, incapazes de compreender aqueles primeiros instantes de portento. Nestes estranhos momentos, a ilusão da permanência deixa de ser apenas um mero sonho, acredito. Uma primeira vez, para deixar que sobreviva dentro de mim aquele pensamento que alimenta a chama de que algo irá continuar muito além de meros instantes, de que não será apenas breve e depois esmorece. Sempre bateu mais forte o coração assustado nestes primeiros instantes da mais absurda incompreensão, como se este vacilar diante disto, nada, rigorosamente nada mais fosse do que aceitar uma derrota de fragilidade pessoal. Há uma submissão a uma certa vitória dos outros em mim que sempre me trouxe o sabor amargo da cedência, uma sinistra glorificação de morte interior que me consome os dias, por vezes durante meses; um passear na escuridão a que me submeto com aquele rigor antropófago da mente que procura uma saída para uma evidência, não pela arrogância de quem se acha irredutível, mas antes pela chicotada de quem reconhece uma semente de esperança em si, mesmo sabendo-a rápida e ilusória.
Às vezes basta a pequena chispa de uma voz para desencadear as minhas tempestades. A vitória de quem acendeu este rastilho sobre quem se deixa adormecer na ilusão de que algo irá permanecer para sempre, é um caminho escorregadio e perigoso para a sanidade pessoal. É uma cedência do cinismo frio e analítico, demónios inconstantes, à descoberta da presença em mim de uma emoção que demasiadas vezes julgo desaparecida: o espanto que me submete a visão sem a possibilidade de distancia. Apenas uns poucos o conseguem com uma cadência embriagante. E quando nasce pela potência da surpresa, quando aparece no meu caminho sem aviso, quando consigo sentir aquele precioso estremecer de espanto repentino, tudo o que importa nesses precisos minutos é essa dádiva que me força a esquecer um passado em que decidi matar a minha última esperança.
( Fleuma )
Sempre questionei como seria caminhar pelos corredores da casa que sempre me pareceu demasiado grande para quem é cego. Mesmo que nesses corredores espaçosos caminhe também ao seu lado um gigante negro de olhos sagazes e vigilantes. Corto conhece todos os recantos da Grande casa. Corto sabe de todos os passos da criatura cega de olhos azuis baços, caminha ao seu lado em perfeita harmonia, forçando os ângulos com uma suavidade sem descrição para um gigante que sistematicamente força em mim o pensamento mitológico. Habita dentro do Cão negro uma energia que deslumbra as minhas emoções, um instinto de proteção demasiado inteligente, demasiado presente - talvez porque saiba demasiado sobre as dores e desilusões do homem cego. Pelos corredores da casa espaçosa ou entre os ventos que assobiam pelo meio dos ciprestes da alameda que termina e começa nos portões de ferro gigantescos da propriedade, até ao cume que cai sem remorsos para as ondas, tudo me parece imenso ao lado do homem cego.
E sei que habita nele uma escuridão. Não porque não vê. Desdobra o mundo que o rodeia em cheiros, por sons e por toques. É como o Cão negro - apenas sem os olhos sagazes. As suas inquietações estão enterradas na profundidade dos primeiros dias do despertar e do reconhecimento de uma existência sem luzes. As suas sombras inquietam-se quando o calor do sol desliza pela face que num instante se torna severa como desperta de um sonho. O vento frio que sopra da margem da praia cinzenta parece cantar uma melodia ao seu ouvido que apenas o Cão entende. Eu não. Permaneço ao lado de ambos como um imbecil deslocado. Vai girando a cabeça com uma graciosidade tímida, às vezes rasgando um sorriso embaraçado por um som, e o Cão responde cerrado os olhos húmidos. Eu cruzo os meus braços com força numa patética tentativa de descoberta do segredo do seu mundo.
Sento-me à frente dos dois na biblioteca oval mesmo por baixo da enorme claraboia de vidro transparente.
Abro um livro que escolho e leio em voz alta porque muitos daqueles volumes não estão escritos para cegos.
Também não foram escritos para Cães grandes e negros.
Encanta-me ficar ali. Demasiado.
De manhãzinha o sol jorra pelo teto num banho de luz que nos envolve, iluminando a minha roupa e o pelo negro do Cão. Naqueles momentos esporádicos um calor suave habita dentro de mim como uma chama que se apaga quando me retiro.
Ao entardecer, se for paciente, consigo um vislumbre raro de uma réstia iluminada e dourada de um dia de Outono. Estranhamente, são estes os instantes que sempre me recordam a despedida, o fim de algo; olho para aquelas duas criaturas tão diferentes e tão iguais e não consigo afogar este pensamento.
E quando a noite já vai longa, ali, naquele centro do Universo, acendo a luz do imenso candeeiro e ficamos numa bola cósmica iluminada; eu e o grande Cão negro - secretamente - assombramos os olhos com a dança de sombras que se espalham para lá desta órbita de luz e vão percorrendo as filas de livros que nos rodeiam.
Em todos estes instantes, de livro nas mãos, vou lendo, enquanto o homem cego deixa cair a cabeça para trás e olha para cima sem ver, e o Cão inclina o grande focinho silencioso ora para um lado ora para outro. É como um sagrado ritual que vai enchendo os meus dias quando os visito - entre copos de vinho e as conversas trocamos as nossas sombras - eu pelo que vejo e ele pelo que adivinha. Não existe em mim nenhum sentimento de piedade pelo homem cego. Nem sequer essa arrogante presunção. Antes a certeza absoluta de um testemunhar inefável e demasiado precioso da mais cristalina definição de Singularidade.
E eu gosto de Singularidades.
Justificam a minha existência.
(Fleuma)
Aquele preciso instante de lucidez que nos torna loucos.
Falou comigo com a violência sôfrega que o tempo memorizou em si, consagrando olhares e silêncios. Nos ouvidos embrutecidos soaram os caminhos dos riachos com que tantas e tantas vezes sonhei no passado!
Gosto de me ajoelhar junto a ela, reconhecer-lhe a pele perfumada, deitar o meu tronco nas suas pernas enquanto os seus dedos longos e suaves varrem o meu cabelo.
Gosto.
Silencia os meus torpores noturnos enquanto lhe ofereço a minha quase desconhecida tranquilidade, um brotar animalesco de quem se abriga de tormentas procurando permanecer ali, imutável, inerte, sem mover um músculo. Algures, entre o gelo e o calor fogoso do seu corpo, entre o lobo e o corvo, a sua canção consome o meu ódio, as minhas fraquezas, sossegando os meus dias.
(Fleuma)
Gosto de ruminar sobre a luz das estrelas com ele.
Estranho.
Pressinto sempre que sabe muito mais do que eu.
(Fleuma)
Reconheço esse fascínio pelo fantasmagórico - seguir os passos como se eu fosse um fantasma. Caminhar junto, no lado esquerdo, como um velho demónio, enquanto vou olhando com olhos que não os meus, labirintos escondidos do mundo, a outra sombra despida de margens e portas fechadas. Entre as batidas ansiosas das noites de insónia, silencioso, testemunhar um último estremecer antes do adormecer do corpo finalmente pacificado. Sair muito antes do amanhecer. Sem sentir a caricia de uma manhã radiosa
Esse é um estado ideal, perfeito, de instantes desconhecidos - conhecidos apenas entre silêncios partilhados. E não existe maior graciosidade do que aquela em que os sabores mais amargos são como antecipações de uma outra coisa, mesmo que mais negra e marcada a fundo. Doce.
E é estranha a textura desta alquimia - pelo menos para mim - é de uma alquimia que se revela. Não a consigo tingir senão das minhas próprias cores. Acho que essa seria a verdadeira fórmula de uma tempestade perfeita - detalhar o caminho até chegar a compreender este fascínio. Se calhar não interessa a mais ninguém a não ser a mim próprio. Mas sei que vivo faminto por demasiado tempo. Sei deste instinto.
Não me esqueças - caminho pelo lado esquerdo da tua mão.
(Fleuma)