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Essa mera referência aos dias de um passado distante e atravessado pela memória é o reconhecimento de algo que falta, e nunca foi realmente preenchido no tempo. E a recusa em deixar que assente no esquecimento como se fosse criminosa essa tentação é apenas mais uma forma de testar limites. Creio eu.
Mas é confusa esta emoção, quase blasfema, de desejar ser desejado sem sentir que isso seja necessariamente errado. O peso de certos passados é bem mais pulsátil quando estamos sozinhos e não conseguimos explicar o que falta, tentar justificar - ao final destes anos todos - a preciosidade de ter estado presente e consciente de que não se repetiriam esses mundos feitos de instantes.
E é singular esta falta. É como um reconhecimento familiar de uma morada onde pertenci e era bem-vindo, onde a minha ausência foi sentida e agora tudo ficaria melhor. As tardes de Outono agora mais frescas e de luz cor de mel eram o que mais profundamente iria ficar cravado na minha existência e onde nunca me senti abandonado. O mundo era diferente, lembro-me - deixava arrastar as horas na rua que eu conhecia como ninguém, o cheiro das árvores, até o oscilar dos seus ramos estaladiços - e sempre, mas sempre tive a sinistra noção de que não seria para sempre, nos sons da casa e na suavidade da voz que acompanhava as canções. Um carinho e uma sensibilidade, a minha compreensão dessa força física e emocional, que vinha do coração mais profundo.
Por isso o meu coração ficou estilhaçado. O meu espírito desfeito e mutilado. Eu sei que não havia um regresso porque eu não quis.
Por isso me sinto grotesco e um sobrevivente.
(Fleuma)
Raymond Depardon :: San Servolo psychiatric hospital, Venice, 1979 [from Manicomio. Secluded Madness]
Apenas os que estiveram próximos do abismo sabem do seu sabor violento e belo.
Apenas os que estiveram na sua sofreguidão sabem que nunca estarão a salvo Dele.
Só e apenas esses sabem disso.
(Fleuma)
O Espírito e o Vinho
(999)
Se estivermos atentos é fácil perceber que escondido no sorriso dançam incertezas; não se mostram sempre, e são como aqueles jogos luminosos entre as folhas das árvores que se agitam na luz do sol e na sombra. Um sorriso aberto que se torna estranho quando a atenção se demora um pouco mais na tonalidade fantasma que aparece envergonhada e escondida, intermitente e distante, recolhe-se desligando as luzes. Sedentos, iluminam os olhos e descobrem a alma, reclinam o espírito e despertam nas palavras. Os que, mesmo assim, não falam e apenas olham distantes, habitam outros espíritos, outras escarpas - porque o vinho não agita o seu sono como um pai ao filho antes de sair, mas antes se torna uma mãe que sussurra uma melodia encantada ao ouvido da sua cria. E para estes parece não haver maior preciosidade.
Se a noite parece dispersar os espíritos como se fossem cinzas de mais um fogo extinguido, se o que bate dentro do peito é a cadência que nos aproxima do inevitável esmorecer, então tudo justifica esse portento cor de sangue como companhia de uma lucidez obstinada, tudo parece submeter a razão a um beijo tinto de desejo proibido. Inclina o espírito para o livro sagrado e aceita um trago de sangue de um filho de Deus. Escorre uma fome escondida entre sorrisos e sombras ...
E é preciso saborear até ao último trago esse beijo maldito, ímpio de saliva carnal, para despertar o vinho do espírito, esse instante em que te tornas absoluta em meus olhos perdidos.
(Fleuma)
Qual é realmente a possibilidade, num dado instante, da eternidade? Ainda que por um momento de loucura? Mesmo para o descrente em vidas eternas? Ainda que sentada num último ponto de luz que insiste em desaparecer deixando apenas uma ínfima memória.
Memória.
É isso.
São os teus passos que deixam aquele sentimento de um legado perdido agora recuperado. São as tuas palavras que me recordam as cinzas de lugares perdidos.
Isso mesmo. Eternidade.
Creio que transforma o vácuo dos que já não estão comigo. Acho que esse "para sempre" é uma panaceia que tenta encher o espaço criado, como se isso fosse realmente possível. E vou vampirizando tudo o que é deixado no caminho - sempre descrente - querendo sempre mais.
Hoje escutei essa melodia distante vinda de ti.
Acordei de um sono sem memórias e foi como se tivesse regressado da Morte. Senti-me imenso! Vivo! Alinhado com o que vibra dentro de ti. Salvo. Protegido.
Estarei a ficar louco?
(Fleuma)
Um dia destes vou escrever-te sobre paixões blasfemas. Como é possível transformar o frio mais cortante num calor abrasador que tortura os sentidos e consome cada segundo de duração. Vou descrever-te passo a passo o caminho dos olhos que brilham no escuro mais denso: sabias que isso é possível? Deixar fluir o animal escondido até apurar os sentidos a um limite quase doloroso, transformando cada gesto, cada sopro, numa mensagem maldita que nos encaminha para uma rendição imposta à alma e ao corpo.
Um dia vou citar-te passagens de um catecismo em sombras e onde batem as emoções mais sibilantes. Onde cresce a doutrina da rendição em nome da vontade ímpia de sacrificar o corpo às paixões mais sinuosas, onde a carne esmaga os pensamentos.
Onde a loucura se consome em gritos sem sussurros, entre espasmos nocturnos.
Tingir-te com as palavras enquanto te refugias de mim no teu balandrau negro.
Oferecer-te a eminência de uma atmosfera negra num sumptuoso manto escondido no tempo.
(Fleuma...)
A mente é uma sequência de armadilhas colocadas com uma precisão sinistra nas emoções, cantos escondidos do mundo, dispostas como armas de corte onde o rasgar se torna impossível evitar. É como uma suprema ironia esta faculdade da mente - a faculdade de pensar e assim sonhar, assim mesmo decidir, engendrar, arrogantemente vai criando a sua própria antítese nas armadilhas que ela mesmo fabrica, cinicamente colocando uma aqui e uma outra ali, escolhendo ignorar uma gota de pacificação, um descanso sem temores. Não existem dias iluminados sem o golpe do que virá depois. O pensamento absorto em si próprio não aceita o descanso a não ser pela Morte. Nada mais importa.
Para aqueles que já estiveram próximos do passo final antes da queda no abismo e conseguiram resistir ao seu encanto, ficou a cicatriz profunda da tirania do pensamento. Uma chicotada permanente que recorda ao escravo uma armadilha solta e uma próxima ainda por descobrir. Um golpe agora por suturar não sabendo se na próxima haverá retorno.
A mente, essa deliciosa coisa com o sabor do infinito, cria os seus próprios esporos e metástases, florescendo numa escuridão venenosa com nomes que deveriam ser silenciados, um arrastar obsessivo que coloca o seu pé niilista no nosso pescoço, e lentamente, vai esmagando a existência até ao desespero absoluto.
Quem sabe desse quase completo niilismo sabe quantas vezes esteve para morrer. Aprendeu a temer a mente enquanto vai suturando uma e outra laceração, nunca adormecendo a sono solto.
Sempre a esconder o desejo de sonhar porque sabe que a mente não gosta de desejos e sonhos.
(Fleuma)
A eternidade num instante
Vou falar-te de labirintos estreitos onde se rasgam os ombros nas farpas dos pensamentos. Creio que lhe chamam demónios. Também, algures, outros lhe chamaram Legião. Gosto dessa palavra: Legião.
Porque somos exactamente isso dentro de nós.
Legiões.
Mas nada temas quando escrevo assim. Não sou realmente eu mas antes o cansaço, esse demónio. Creio que são estes os momentos em que é necessário deixar reclinar o espírito, enquanto espero que se apaguem as últimas luzes da insónia. O cansaço tem destes mistérios, sabes? É enquanto vou deslizando indolentemente para um sono de esquecimento absoluto, na mais cerrada escuridão, que insisto em deixar as portas abertas para outros demónios entrarem. Talvez seja uma semente de esperança, um último desejo, mas resisto a fechar os olhos, a deixar o desconhecimento de Mim extravasar e percorrer cego os labirintos do meu sono. São estes instantes, que podem ser finais, que mais viajam em mim as saudades e a nostalgia da ausência, como se fossem carrascos de um sonho tranquilo, cósmico, desconhecido. Um delírio de vigília da insónia, antes de entrar na Grande Noite, dirás. Ou então, perdoarás estes ecos e sombras, as Legiões que assolam os locais estreitos do meu adormecer, e sentada na cabeceira, velarás pelo meu descanso.
Fleuma,
Tool,
Alfa e o Omega
Nada está acima, nem o próprio céu!
Tudo está abaixo.