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Qual é realmente a possibilidade, num dado instante, da eternidade? Ainda que por um momento de loucura? Mesmo para o descrente em vidas eternas? Ainda que sentada num último ponto de luz que insiste em desaparecer deixando apenas uma ínfima memória.
Memória.
É isso.
São os teus passos que deixam aquele sentimento de um legado perdido agora recuperado. São as tuas palavras que me recordam as cinzas de lugares perdidos.
Isso mesmo. Eternidade.
Creio que transforma o vácuo dos que já não estão comigo. Acho que esse "para sempre" é uma panaceia que tenta encher o espaço criado, como se isso fosse realmente possível. E vou vampirizando tudo o que é deixado no caminho - sempre descrente - querendo sempre mais.
Hoje escutei essa melodia distante vinda de ti.
Acordei de um sono sem memórias e foi como se tivesse regressado da Morte. Senti-me imenso! Vivo! Alinhado com o que vibra dentro de ti. Salvo. Protegido.
Estarei a ficar louco?
(Fleuma)
Um dia destes vou escrever-te sobre paixões blasfemas. Como é possível transformar o frio mais cortante num calor abrasador que tortura os sentidos e consome cada segundo de duração. Vou descrever-te passo a passo o caminho dos olhos que brilham no escuro mais denso: sabias que isso é possível? Deixar fluir o animal escondido até apurar os sentidos a um limite quase doloroso, transformando cada gesto, cada sopro, numa mensagem maldita que nos encaminha para uma rendição imposta à alma e ao corpo.
Um dia vou citar-te passagens de um catecismo em sombras e onde batem as emoções mais sibilantes. Onde cresce a doutrina da rendição em nome da vontade ímpia de sacrificar o corpo às paixões mais sinuosas, onde a carne esmaga os pensamentos.
Onde a loucura se consome em gritos sem sussurros, entre espasmos nocturnos.
Tingir-te com as palavras enquanto te refugias de mim no teu balandrau negro.
Oferecer-te a eminência de uma atmosfera negra num sumptuoso manto escondido no tempo.
(Fleuma...)
A mente é uma sequência de armadilhas colocadas com uma precisão sinistra nas emoções, cantos escondidos do mundo, dispostas como armas de corte onde o rasgar se torna impossível evitar. É como uma suprema ironia esta faculdade da mente - a faculdade de pensar e assim sonhar, assim mesmo decidir, engendrar, arrogantemente vai criando a sua própria antítese nas armadilhas que ela mesmo fabrica, cinicamente colocando uma aqui e uma outra ali, escolhendo ignorar uma gota de pacificação, um descanso sem temores. Não existem dias iluminados sem o golpe do que virá depois. O pensamento absorto em si próprio não aceita o descanso a não ser pela Morte. Nada mais importa.
Para aqueles que já estiveram próximos do passo final antes da queda no abismo e conseguiram resistir ao seu encanto, ficou a cicatriz profunda da tirania do pensamento. Uma chicotada permanente que recorda ao escravo uma armadilha solta e uma próxima ainda por descobrir. Um golpe agora por suturar não sabendo se na próxima haverá retorno.
A mente, essa deliciosa coisa com o sabor do infinito, cria os seus próprios esporos e metástases, florescendo numa escuridão venenosa com nomes que deveriam ser silenciados, um arrastar obsessivo que coloca o seu pé niilista no nosso pescoço, e lentamente, vai esmagando a existência até ao desespero absoluto.
Quem sabe desse quase completo niilismo sabe quantas vezes esteve para morrer. Aprendeu a temer a mente enquanto vai suturando uma e outra laceração, nunca adormecendo a sono solto.
Sempre a esconder o desejo de sonhar porque sabe que a mente não gosta de desejos e sonhos.
(Fleuma)
A eternidade num instante
Vou falar-te de labirintos estreitos onde se rasgam os ombros nas farpas dos pensamentos. Creio que lhe chamam demónios. Também, algures, outros lhe chamaram Legião. Gosto dessa palavra: Legião.
Porque somos exactamente isso dentro de nós.
Legiões.
Mas nada temas quando escrevo assim. Não sou realmente eu mas antes o cansaço, esse demónio. Creio que são estes os momentos em que é necessário deixar reclinar o espírito, enquanto espero que se apaguem as últimas luzes da insónia. O cansaço tem destes mistérios, sabes? É enquanto vou deslizando indolentemente para um sono de esquecimento absoluto, na mais cerrada escuridão, que insisto em deixar as portas abertas para outros demónios entrarem. Talvez seja uma semente de esperança, um último desejo, mas resisto a fechar os olhos, a deixar o desconhecimento de Mim extravasar e percorrer cego os labirintos do meu sono. São estes instantes, que podem ser finais, que mais viajam em mim as saudades e a nostalgia da ausência, como se fossem carrascos de um sonho tranquilo, cósmico, desconhecido. Um delírio de vigília da insónia, antes de entrar na Grande Noite, dirás. Ou então, perdoarás estes ecos e sombras, as Legiões que assolam os locais estreitos do meu adormecer, e sentada na cabeceira, velarás pelo meu descanso.
Fleuma,
Tool,
Alfa e o Omega
Nada está acima, nem o próprio céu!
Tudo está abaixo.
(999)
Lamento estes silêncios absurdos, quando o que deveria suceder eram palavras, sons, descansos no pensamento. Lamento. Lamento a minha aspereza, a minha incapacidade de verter uma lágrima.
Lamento que tudo se tenha transformado neste silêncio. Mas a tristeza é estranhamente sóbria em mim, nestes dias; não a tristeza poética, vestida de agitações ternas e ainda assim, esperando um regresso ao passado recente. Esta é uma tristeza diferente, mesmo para mim. É uma procura de segurança. É como se esta tristeza tivesse um corpo sólido para me reconfortar, mesmo que tudo seja angústia e desespero.
Não existem lágrimas que exprimam certas ausências, apenas uma agonia que não tem punhos para magoar, mas morde raivosa, é rica em lamentos e desejos de regresso ao passado. Rasga os sonhos e deixa apenas o sabor do fracasso.
Eu consigo seguir os seus traços fielmente, descrever todas as suas horas de insónia, como a chuva que cai lentamente nestes dias. E afinal, não fui apenas eu que fiquei silencioso: algo se foi e deixou aqui uma monstruosa onda de raiva impotente, sem subtilezas, mas afogada numa estranha dor crua e de coração partido.
Não se pode escapar ao que não se consegue controlar. Lamentar é apenas uma ínfima parcela desta tristeza silenciosa que parece devorar os nossos dias. Consigo, estranhamente, sentir o sabor amargo e doce de uma melancolia que há muito tempo me foi descrita, um reflexo do que perdi e do que quero, desesperadamente, recuperar.
Agarro estes pensamentos na minha incapacidade de escrever com a grandeza certa para despedaçar os silêncios. Traçar com a elegância do punho solene, esta criatura dentro de mim que me consome e mesmo assim me reconforta. Romper as correntes e deixar sair esta torrente de ódio, frustração e mágoa. Esta fragilidade inexplicável.
Se calhar era verdade o que me dizia:
" ... só quando sentirmos, realmente conseguirmos provar o sabor da verdadeira tristeza, poderemos aceitar a Morte como ela realmente é, a luz da salvação."
Fleuma,
Hoje choveu. Primeiro em gotas frias e grossas, vindas de um céu cinzento escuro como chumbo, apenas traçado por instantes prateados como pensamentos distantes. Depois, a chuva tornou-se neve, atormentada pelo cantar pesaroso dos ventos do Norte. Recordei os nossos passos na neve, o bater do frio, as canções da floresta, o calor da voz do Corvo vermelho que aquece como um toque de amor, mas mais profundo.
Recordei-me.
O sangue a viajar em mim, alegre, insolente, em bruto. Sem medos e sem cicatrizes. Uma essência fractal, como os raros raios de luz que atravessam os ramos secos e mergulham nos mantos de neve. Ainda assim, um sangue a fervilhar por promessas de redenção e salvação, enquanto me deixava embriagar pelos Céus lá em cima, muito acima dos braços dos pinheiros gelados.
Juro que me senti vivo! A estalar em faíscas, como um fogo primário adormecido em mim. A Sombra de uma outra Sombra, capaz de cantar e dançar entre as chispas do Fogo Maldito.
Esta noite choveu. Choveu muito. E sou capaz de jurar que consegui ouvir, nas bátegas surdas, a tua voz a cantar e o teu riso a erguer-me das sombras.
Fleuma,