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Funkenflug
(999)
Aqueles primeiros passos. Recordo-me bem do caminho estreito pela enseada escura e do estarrecer, enquanto caminhava entre os dois gigantescos promontório de gelo, ali, mesmo junto à praia gelada. Certas memórias são como amantes ciumentas, nunca deixam de permanecer entre as nossas sombras, predadoras em lugar distante, mas em espera. E creio que guardar uma e outra lembrança é mesmo a chave de uma certa reconciliação - uma emoção que nesses dias, havia escapado de mim.
Lembro-me vivamente desse dia/noite. E recordo-me desses promontórios gelados e pálidos, faróis naquele cinzento escuro, gigantes a varrer o céu de chumbo carregado de frio e gelo. Não gosto de me esquecer deles. Gosto de os rever uma e outra vez como um regresso longo e intensamente familiar a Casa - a minha morada. Regresso e caminho até às águas frias enterrando as botas pesadas na areia escura. As correntes aqui são fortes mas a água não explode na margem, antes convida ao nosso silêncio mais espesso, vergados pelo som taciturno do correr da ondulação.
Este espaço pode bem ser o inferno gelado, escuro e melancólico, de muitos. Uma permanente saudade dos brilhos de um Sol tantas vezes ausente. Um bater ritmado para a loucura que quase, quase deixa um vislumbre do fim do caminho. Se não deixarmos abrir as janelas, se mantivermos as portas fechadas com cadeados, é fácil, demasiado simples abrir página a página, o catecismo pessoal dos flagelos mais cruéis, neste mundo sombreado.
Sempre que regresso traço a minha imperfeita humanidade, a minha racionalidade mais estoica regressa a um grau humilhantemente raso, a tormenta de euforia e uma tristeza absurda, pálida, consome aqueles passos até às margens negras. O peso mais colossal espreme a respiração, um medo primário soa aos ouvidos com uma voz rouca de velho conhecido. Tudo reconhecido e tudo já antes sentido.
E depois?
E por fim?
Uma solidão de fortaleza. Um lugar antes indicado e agora visitado sozinho. Reconhecimento e entropia em comunhão. Uma dispersão substituída por certezas que ainda hoje não consigo explicar. Mas deixo que entrem em mim e nestes preciosos instantes ermos e despovoados, sou verdadeiramente mestre de mim próprio. É terrivelmente assustadora esta realidade, porque me abandona numa dimensão de perceção tão cristalina, tão absurdamente liberta de inutilidades desnecessárias, que se fosse um estado permanente já me teria transformado num louco delirante. Horas a fio junto ao mar num turbilhão indescritível, em assomo de recordações, arrancando memórias novas, sonhando perdido.
Não procuro justificar nada disto. Todos temos formas de loucura implantadas em nós. Não há um traço de injustiça neste local perdido mesmo para os que vivem próximos. Apenas a virtude da quietude submissa que afirma realmente o que somos na escala planetária; é terrivelmente assustador chegar a esse local - ainda hoje. Porque antes tudo era apenas desilusão e um torpor venenoso. E esse local poderia muito bem ter sido o meu último poisar.
Mas não. Estranhamente não.
Apaixonei-me perdidamente. Sem retorno. Numa paixão cega.
Como Eu.
(Fleuma)
É fácil, demasiado fácil, cultivar a arte de desaparecer; e mesmo que alguns transformem essa arte num oficio exímio, numa virtude quase intangível, com o tempo e a prática, depressa se consegue desaparecer. É fácil. Fácil.
O que nunca é fácil é aceder à virtude que aceita a inevitabilidade de uma promessa não cumprida. O prometido que não é cumprido não cria em nós apenas um espaço que desaparece, é um fosso que cresce em círculos de solidão indesejada. Senão, porque razão uma mãe aceita de forma cega e obstinada a promessa de que a vida de um filho será mais longa do que a sua? Senão, porque razão, não cumprida essa promessa, se transcendem todas as fronteiras do mais racional e pragmático aceitar do fim inevitável, transformando-se num abismo tão pessoal que se torna inexpugnável? Quando algo que sempre julgámos nosso por promessa desaparece, muitas vezes, demasiadas vezes, porque alguém se tornou mestre nessa arte é ainda mais cortante, porque a desilusão que nos abraça é um veneno em que apenas um ignorante cego não pressente o labirinto onde acaba de entrar.
Eu não consigo esquecer uma promessa feita, por mais insignificante que seja. Recuso-me a não cumprir o que prometo ao ritmo de obsessão. Não me esqueço e não perdoo uma promessa que me foi feita e não cumprida, porque reconheço o caminho do fosso - mesmo sabendo que sou um artificie nessa arte de desaparecer. Tudo o que nos resta é uma exposição sem abrigo à tempestade; um olhar de animal assustado em volta.
Creio que quando a nossa existência se agarra desesperada a uma promessa feita por outra pessoa, e afinal, tudo o que fica, são ecos e um vazio desprotegido, esse é o verdadeiro teste da nossa capacidade de sobreviver a um desespero que não tem rival entre outros desesperos.
Uns tombam de frente em rendição.
Outros rasgam e arrancam o pedaço negro que ficou plantado mesmo que isso signifique existir envenenado.
E a arte de desaparecer acaba por se transformar muitas vezes naquela minúscula centelha que aponta a saída.
(Fleuma)
Creio que já tínhamos falado sobre a Morte. Creio bem que sim. Naqueles dias que antecederam o fim do sofrimento, das dores, estranhamente, ao falarmos Dela, finalmente vi um sorriso imenso! Como um intenso momento de lucidez e reconhecimento, aquele olhar distante para uma pilha de comprimidos amontoados, um abrigo que nunca apagou a agonia, um altar de prostração inútil.
Da tua Morte, estranhamente, e não da tua Vida.E mesmo na viagem, enquanto a morfina viajava entre a tua consciência fria, calculista, racional, e o remoer da minha paixão pela tua virtude de escolher um Fim, o terminar de uma batalha há anos perdida, ainda alimentei a esperança do teu arrependimento.
Idiota.
É como se eu já não soubesse onde saciei a minha sede de mim próprio, desse vigor tão niilista do Individuo, na soberba que me consome, porque escolher o momento e como devemos Morrer é a nossa única e verdadeira preciosidade, que nada ou alguém consegue despojar. Segurar em mim a única centelha realmente minha, torna-me perigoso, sempre o soube. Mas é tão intensamente apaixonante e belo como o teu último e derradeiro pulsar de Liberdade. Afinal, que maior definição de libertação existe senão nesta escolha? Nesse voltar de costas ao tormento, quando assim foi decidido?
E porque escrevo desse dia, logo hoje? Porque me recordei da tua entrada pela porta tão discreta. Porque, após anos e anos de sofrimento e batalha, jamais deixarei que se apague em mim o teu Sorriso, enquanto fechavas os olhos.
E não chorei. Não me entristeci por um merecido descanso. Disseram-me algo sobre o brilho verde dos meus olhos e ainda algo mais sobre a raridade do meu sorriso, nesses instantes. Já não me recordo. Não me interessa. Recordo-me antes de uma última lição e reverência minha, ao olhar a própria face imaculada da Verdadeira Libertação. Nossa. Intocável. Digna. Decidida por Nós!
... E a canção preferida.
Fleuma,
///
Está lá, sabes? Quase etérea, no canto do olhar submisso; quase ao alcance de um salto sem falhar. Como um truque de luz e em absoluto repouso, basta um pequeno ruído para que se erga e tudo se transforme. Ainda assim, jamais perde a beleza. Nunca consigo abrandar o meu coração. E os meus punhos permanecem cerrados e brancos. Recordo-me porque não é necessário um deus quando as palavras são segredadas ao ouvido e seladas com um beijo, as mãos nas minhas mãos, as unhas que traçam feridas que eu não sinto, o suspiro quente no meu pescoço. O sabor da saliva. O mais perfeito alinhar de sensações. A certeza de que somos escuridão. Que a noite é nossa. Nossa.
Orgulhosamente nós neste chão. Além dos olhares e de outras palavras. Animais em observação. Brilhando sufocado na tua luz planetária, e nesses momentos de rara transfiguração os nossos olhos são jóias, e tudo o que fazemos é uma perfeição espontâneas. Onde os deuses gemem temerosos.
Deito-me naquele cansaço de quem batalhou durante horas. Com o coração demente e a arremessar-se contra a parede das minhas costelas. Preso ao toque. Crispado nas saudades e finalmente junto a ti. Deixando desfiar os teus dedos para que o nosso toque seja a alquimia e a paixão que faz explodir, rebentar em fogo primário ou queimar até às cinzas.
O resto não me interessa.
Que tudo se evapore e negue a si próprio no partilhar deste som doce e melancólico.
Que este fogo jamais se extinga.
///
Demasiadas são as vezes em que as certezas dos outros não são uma resposta, uma entrada serena para uma outra jornada. São muitas as horas onde parece estalar o chicote de uma razão que não canta a melodia da luz ao fundo, onde acabamos a mergulhar, braços abertos, numa mentira. Talvez seja esta a verdadeira justificação para prosseguir por outros labirintos, tão estreitos que rasgam os pensamentos mais indomáveis. A amargura que aceita outra verdade, deliciosamente única aos olhos do caminhante, insiste tirana, que voltemos o rosto para um outro lado mais oposto - tão longe que força os olhos abertos, e acabamos por finalmente reconhecer o verdadeiro nome da escarpa onde terminam certos labirintos.
Por vezes é tão necessário como respirar para sobreviver, que se reconheçam as artes sombrias da punição pessoal escritas numa espécie de catecismo imundo de sangue, onde cada página é nossa - traiçoeiramente pessoal e com as palavras que escolhemos. O meu catecismo é o meu corpo. Os traços do meu caminho estão aí cravados. O nome da escarpa onde terminam muitos dos meus labirintos não aceita apenas a sua casa no pensamento. Não. Comanda que me recorde dele quando me dispo e deixo que o espelho seja o reflexo de esquissos; memórias e chaves que me recuso a voltar e a usar. Pedaços de escuridão, pequenas luzes de lembrança onde falhei - mapas para escapar.
Aprendi a esquiva magia da pacificação aqui: no reflexo do corpo tracejado como uma armadura encantada. No uso do verbo como recurso para curar as feridas enquanto caminho no escuro. No escutar de outras melodias por vezes tão estranhas.
Aceitei o seu sabor. Quero deitar-me ao seu lado. Dormir silencioso e sonhar.
"Ninguém venceu a obsessão da morte pela lucidez e pelo
conhecimento. Não existia nenhum argumento contra ela. Ela não
tem do seu lado a eternidade? Só a vida tem que defender-se sem
trégua; a morte já nasceu vitoriosa. E como não vai ser vitoriosa se o
nada é seu pai e o horror, a sua mãe? Só podemos vencer a morte
desgastando-a. A penetrante obsessão que sentimos por ela
desgasta - nos e, por sua vez, se desgasta" (EMIL CIORAN)
(999)
O pesadelo está presente, resguardado num recinto escuro da mente; alerta e nunca dorme. Sistematicamente surdo às minhas tentativas para que adormeça, e finalmente se esfume no pó. Nunca mais, desde aqueles minutos iniciais de conhecimento e diagnóstico, fechou os olhos, por segundos que sejam, a uma vigia de surdina cinicamente empoleirada nos meus ombros.
Testemunho a sua existência com a resignação dos que tantas vezes se atiram a um muro sólido, na esperança (estupidamente!) de não esmagar o crânio, sempre que ultrapasso as portas giratórias, como olhos imensos de um mau sonho, na sua companhia, para mais um examinar minucioso.
Odeio portas giratórias com o vigor dos assassinos mais sádicos. Abomino paredes brancas, falsas profetas da ideia imbecil de repouso e pacificação.
A guerreira cresceu muito. Já não necessita de sair pelos seus pés e regressar ao meu colo por exaustão. Mas até a sua lendária força de espírito oscila quando atravessamos aquele portal de recordações.
Sei que sim.
Atravessa o seu braço no meu. Como suporte. E aperta. Pressinto-lhe uma força física que me surpreende sempre!
Somos reconhecidos. Tento encolher toda a minha massa corporal numa bola inútil. Desço os olhos para o chão. Mas sei que o cabelo puxado para trás das orelhas, o casaco negro e longo e as botas pesadas da mesma cor, tornam inúteis as minhas dissertações sobre entradas e saídas discretas.
Ela também não consegue. Está como eu - alta mas mais sinuosa. O cabelo está mais longo que o meu. Mais esfuziante. Menos "castanho lixo" como gosta de me dizer enquanto olha para mim.
O vestido longo que cobre o seu corpo, o rosto branco e delicado e os olhos de um verde mais escuro que os meus, tornam pois, impossível evitar o reconhecimento. Principalmente pelos que testemunharam o antes e o depois.
Abismos entre anos.
Nestes minutos, enquanto corre livremente o pesadelo, aguardamos mais um resultado e a sua sentença. Vou deixando que a razão se cale, persistindo teimosamente na ideia que, para ela, ainda é demasiado cedo para a Morte. Vou mantendo uma serena euforia pela sua extrema juventude. Mordo todos os meus conceitos para que esta juventude e suprema beleza resista.
Exijo morrer antes. Desde o principio que foi assim. E nunca mudará.
Entramos na pequena sala. Odiosamente branca. Eu e ela. Veteranos de mil batalhas em cinzas. No outro lado da mesa uma voz feminina e mascarada pergunta algo e apenas oiço a sua resposta firme com um sorriso sonoro - " Sim Dra. é mesmo a cor dos olhos dele!"; o surrealismo deste breve trecho de palavras entre máscaras e saudações banais, torna este pesadelo numa outra Besta; como que revigorado e agora dotado de um sinistro sentido de humor.
Reparo, como nas outras sentenças, que a minha respiração está cortada. Reparo que se assim não fosse pura e simplesmente estrangularia a pessoa do outro lado da mesa: Pela perda de tempo e conclusão.
Noto que o pesadelo se alonga. Que os meus ouvidos crescem e que estou num limiar de exaustão que apenas se conseguirá desprender quando ouvir o que exijo escutar.
- " Está óptima! Não poderia estar melhor! Perfeita!", do outro lado da mesa.
Na maldita sala branca.
E respiro então. O coração regressa ao seu passeio de rotina. Os pensamentos alinham-se. Os ombros erguem-se e parecem deixar a senhora desconfortável. Acabo por sorrir debaixo da máscara, secretamente divertido com o seu embaraço.
Quando, mais uma vez, saímos pelas portas giratórias, toneladas retiradas de ambos, caminhamos de braço dado, ela rindo, enquanto sussurra as palavras da sua canção preferida, que eu fazia soar nos auscultadores enquanto ela permanecia deitada, exausta de olhos vermelhos, e que glorifica tudo o que ela sempre será: Guerreira sem par de virtudes intocáveis. Sabendo o que venceu. Sabendo que quem ousar macular a sua integridade terá uma morte lenta e dolorosa.
Garantidamente.
E eu uma vez mais consigo afastar o pesadelo para um outro labirinto até a um próximo confronto.
A pacificação nasce de novo com a partilha do seu pequeno prazer de eleição ...
Três bolas gigantes de gelado de chocolate com molho de café a escorrer em cascata.
Pequeno troféu para o descanso da guerreira.
Existem memórias impossíveis de cauterizar por mais que tente. São parte do inferno pessoal que me afasta do puritanismo dos que acreditam existirem virtudes inabaláveis na vontade de viver. São os retalhos que ficam plasmados a cinza e que persistem em sobreviver, como dedos apontados feitos de remorso.
Devia ter adivinhado porque estavam lá, claras e cristalinas, como o lago gelado em que gostava de se reflectir. Devia. Nos anos de amizade e esforço para me arrancar do tufão em que gravitava - devia ter sido muito mais atento.
Mas não. Mesmo na minha consciência de astro menor na dimensão de um sol absurdamente brilhante, deveria ter olhado para cima, para longe da minha órbita. E é sórdida, esta necessidade que tenho de aceitar este facto. Mesmo após tantos anos.
Deveria ter aberto mais os braços aos crescentes ódios e espasmos de frustração que assombravam palavras e gestos; nunca deveria ter cerrado o pensamento às sombras que rodeavam aqueles olhos antes intensamente brilhantes, fulgurantes num mar de lógica imbatível, e pensar que tudo se iria resolver, enquanto a minha condição troçava dos meus pensamentos.
E tem graça, não é? Como poderia um naufrago em estertor de morte ajudar quem quer que fosse? Quase consigo rir-me desta piada!
De facto, somos nós que mantemos acessa a chama da vida. E somos nós que decidimos quando demais é demais. Mesmo que brilhantes como constelações, por vezes crescemos tanto, somos de tal forma colossais que este corpo deixa de conseguir comportar o nosso respirar. Tudo parece dispersar-se em nós. Deixamos de acreditar em salvação. A redenção está no fim que determinamos.
Quem ainda decide continuar transporta consigo o fardo da perda. Seco de lágrimas inúteis. E só muito mais tarde surge a compreensão, astuta e fria. E isto nem sequer se revela uma penitência. Antes um veneno consumido com aquele requinte da mais absurda impotência e frustração.
Nem sequer se reveste de qualquer consolo concluir que assim acabou por ser melhor - que viver o resto de tempo como uma concha vazia é uma atrocidade pior. Porque é neste preciso instante de claridade que o desespero se revela na sua verdadeira essência cruelmente vermelha e tinta de arrependimentos.
Uma imensa porção da nossa alma desaparece. Permanece uma solidão órfã de riso e companheirismo nos momentos mais negros. Agita-se um desespero pelo súbito abandono nos pensamentos. Tudo nos recorda quem já foi. E já não é.
A Morte acaba por ser um estranho consolo. Mas para quem continua a respirar remorso por cegueira ficam as farpas que sistematicamente, pausadamente, relembram outros dias de genuína felicidade.
Por vezes consigo pressentir-lhe o cheiro entre as correntes de ar que habitam entre nós. Mas depressa se evaporam as últimas réstias e sabores da minha boca. Porque se tratam apenas de reflexos de promessas feitas e nunca cumpridas. São como aquele toque final no truque que o mágico, uma vez mais, falhou.
Ficam apenas as intenções. As falsas noções de segurança e salvação.
Nunca saberei o que dizer a quem promete e não cumpre. Entre a piedosa mentira e o conforto da desilusão e abandono nos últimos instantes da tempestade, creio que a distância se mede facilmente: Em metros de solidão.
E eu já reparei que a expressão mais dolorosa de olhar para uma promessa de companhia nos dias em que tudo está cego, surdo e mudo, se revela afinal, um fogo fátuo que pode muito bem aniquilar ou então, fomentar a semente do Orgulho.
Abana-se a cabeça diante deste Orgulho - monstro que vocifera impiedades, veneno que eleva a arrogância e a presunção!
Mas as longas conversas polvilhadas com a promessa solene de um ombro de apoio, trazem sempre consigo aquele travo insalubre da mentira. Reconhecer este sabor pode levar anos e por isso vai corroendo a alma e assassinando lentamente.
Enquanto vamos ficando mais sós. Reconhecendo o mundo como o que realmente é...
Ermo.
Imagine-se um espírito solitário, porque é sempre assim no principio: solidão.
Imagine-se que desde muito cedo, após os primeiro passos e consciência tangível de fragilidades, o pensamento questiona a prematura fraqueza física. Porque razão os movimentos são tão ásperos no seu mais profundo cansaço; porque se deveria elogiar o vigor e apenas se procuram mais métodos para facilitar os passos de quem quer apenas mover-se.
Imagine-se que o espírito envelhece nesta condição humana: endurecido pela batalha de quem, todos dias, consegue pequenos vislumbres de inferno pessoal nos vinte cinco minutos de caminhar tortuoso entre um quarto e uma banheira; que este espírito não se torna mais virtuoso na descoberta de respostas, antes ermita de questões sem limite.
Imagine-se que a salvação é um soletrar sem melodia sobre a necessidade inadiável de uma cadeira de rodas, porque o corpo não suporta mais tensão e os músculos são o espelho de um Inverno que nunca terminará. Calculando com a precisão de um velho artesão a falta de esperança nos olhos do cientista que parece rendido ao destino do espírito em frente.
E se, como último fôlego de quem já mal caminha, a ideia fosse aquele suspiro necessário para gastar as reservas finais na viagem a um Norte mítico e sonhado? E quando já nada mais houvesse, morrer?
Imagine-se os passos dolorosos e curvos do espírito que batalha para mais um pouco de caminho na neve que escorre densa e branca, e decide entrar pelos portões onde soava o trovejar do ferro fundido, para conseguir descansar uns momentos.
Foram olhos azuis de gigantes nórdicos que brilharam, cabeças loiras e longas barbas claras, que se aproximaram do espírito de olhos verdes prostrado e derrotado.
Imagine-se que o espírito jamais esquecerá quem o ergueu do pó com mãos rudes e braços fortes. Que sempre se recusará a esquecer as horas, os dias, os meses de esforço para fortalecer um corpo condenado, enquanto a mente reservará para si mesma a desilusão, o lamento da rendição, a reverência por quem, desde aquela noite de Inverno, nunca o abandonou. Ou abandonará.
O espírito cresceu e quer agora ser também gigante mesmo nos dias mais próximos do Abismo, enquanto vai aceitando o calor do caldo primordial de quem todos os dias se torna mais forte e consegue agora caminhar na condição ambicionada - erecto e de queixo levantado.
Mesmo que vá marcando o corpo com traços de lembrança porque a mente é traiçoeira. Ainda que tema ser um sonho este.
Poder existir pela sua decisão.
Demónios ...
A esperança é também um velho demónio.
Não existe melhor ponte para conhecer as suas margens do que o espelho dos olhos. Não é possível esconder dos olhos a esperança do verdadeiro sonhador, aquele que permanece num constante estado de perdição e ausência. Como se sonhar fosse alimento para iluminar labirintos escuros.
Lembro-me deste velho demónio nos olhos de duas crianças deitadas de costas em camas separadas. Recordo-me dos motivos para estarem deitadas de costas e do que se alimentava dentro dos seus corpos. Ia deixando que lavrasse em mim a esperança de que a Mãe Natureza estivesse um pouco senil, esquecendo as crianças, apagando o sofrimento e o torpor da derrota.
Não. Porque é demasiado cabra e possessiva dos seus!
Os olhos são espelhos da alma. Mesmo do cego que tudo parece pressentir com dedos, odores e ruídos. Mas nas duas crianças estavam cercados por tons negros e sombras. O brilho de uns e outros ficará gravado para sempre no meu catecismo de derrota pessoal.
Foi possível, cruelmente possível, vislumbrar o fim nos olhos de ambas crianças: porque numa raiava um brilho intenso de vontade de sobreviver, mesmo num corpo infantil magro e conhecedor do sabor da dor e limites humanos; na outra, deitada na mesma posição, os olhos estavam abertos, mas restava apenas uma pequena chama de esperança e o seu brilho era apenas uma muito pequena luz para uma tempestade que se aproximava. Sem a perdição dos que sonham alto. Cada vez que olhava para aquele rosto só conseguia sentir a minha própria morte.
Cinco dias depois a cama estava vazia e branca como farinha.
Tanto ódio e frustração sentida nunca deixou de me afogar e envenenar os pensamentos. Que um Universo inteiro se consiga detalhar nos olhos onde brilha a esperança, para depois mergulhar num buraco negro.
A minha impotência surgiu por esquissos raros e quase desconhecidos para mim naqueles tempos: senti que forçosamente e contra a minha mais férrea vontade, havia um liquido morno que escorria dos meus olhos para a face fria e com barba de várias semanas.