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"Não há nas farmácias nada específico contra a existência; só pequenos remédios para os fanfarrões. Mas onde está o antídoto do desespero claro, infinitamente articulado, orgulhoso e seguro? Todos os seres são desgraçados, mas quantos o sabem? A consciência da infelicidade é uma doença grave demais para figurar em uma aritmética das agonias ou nos registos do Incurável."

- Breviário de Decomposição, Emil Cioran

 

Existe uma fina linha quando o desespero insiste em unir-se à compaixão. Um vergar do pensamento mais cínico e descrente na alma humana,  insuportavelmente real, quando confronta os dias da nossa parcimónia indiferente numa lição cirurgicamente administrada no ego, a humilhação final. Se o desespero mais puro e surdo é um dos alimentos da verdadeira condição humana, a compaixão mais profunda, sentida em todas as fibras, é o antídoto contra uma morte de indiferença naquele veneno escuro e espesso que tão bem sabemos ruminar. Se o desespero não é estranho em nós, partilha infatigavelmente os nossos dias, é obscenamente dócil maquinar nele a nossa escuridão, e mesmo sabendo que nem todos sabem realmente o que ele é no seu estado mais puro e surdo, os seus caminhos não são desconhecidos para ninguém. A compaixão mais genuína e despida de atrocidades falsamente altruístas é um outro Animal, quase etéreo. Testemunhada na sua expressão mais crua é um fenómeno tão esparso que a maioria das criaturas que caminham por este decrépito planeta corre toda uma existência sem um vislumbre dele. É uma outra Besta quase mítica, sonhada e embalada como essência de Deuses e paraísos dourados. Corporizada nos santos ou filhos de Deus crucificados. Quem no entanto, talvez por uma bizarra conjugação universal, tem o privilégio de presenciar a compaixão naquele preciso e único momento, naquele curvar Universal que muito provavelmente nunca mais voltará a vislumbrar, nunca será capaz de lhe atribuir um sentido, uma definição, uma emoção ou racionalidade; é um corpo estranho que nos perfura sem que seja possível a defesa. Um golpe surdo e implacável que faz vacilar perigosamente todos os alicerces da razão. É uma impossibilidade a desaparecer, aquela em que os olhos testemunham a mão que se estende para ajudar a erguer e amparar sem disso esperar retribuição. Deixa em nós um vazio por algo que foi retirado e não devolvido.

O desespero é uma cicatriz que nunca sara. Podemos adormecer com o monstro iludidos de que um dia deixará de respirar dentro nós.

A compaixão, esse vergar da alma humana, essa submissão de todos os nossos princípios mais queridos em nome de outro sem hesitação é como um pestanejar - se fecharmos os olhos naquele instante nunca chegaremos a duvidar do realismo cínico e frio que o desespero alimenta carinhosamente.

A grande ironia da compaixão não é a piedade mentirosa e sedenta de atenção. A maior das ironias é possuir uma força impossível que apenas existe entre poucos.

E os que restam podem apenas sonhar entre o cinismo e o desespero.

(Fleuma)

A Dor e outros Prazeres

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Atravessar a passagem de alguém sempre me fascinou. O efeito causado por esse cruzamento é ainda mais fascinante; em muito raras vezes, algo fica como marca, e recuso-me a deixar fugir esses traços no tempo.  As outras, as que pretendo esquecer, são muitas. Demasiadas. São marcas profundas, pesarosas, antigas, a troçar precisamente disso: esquecimento. 

Mas são os cruzamentos que recuso deixar escapar que assombram os meus dias. São essas raras encruzilhadas onde não permito o esquecimento, e vou, metodicamente, tentando regressar uma e outra vez. Essa raridade preciosa que existe em Algo ou Alguém não é uma virtude comum a todas as criaturas ou coisas. Não. É um ponto de referência que consegue desviar a minha vontade naqueles sinais vestidos de portento que demonstram precisamente o que falta em mim, esse Algo ou Alguém onde poisar, esses traços únicos de lucidez distante, a noção de ter encontrado algo que perdi. 

Faltam-me demasiado tempo esses alambiques escondidos, expressões de Algo estranho em mim. Faltam-me muitas vezes as palavras para o descrever, e então, em outras passagens e encruzilhadas, aprendo e conheço.

Reconheço.

(Fleuma)

 

 

 

Hans Lindström

Ad Nauseam

 

... para ti.

Hoje choveu durante toda a noite. Ríspido e arrogantemente, choveu neve. Hoje, até o vento foi mais violento e inquieto na voz, insistindo na presença sibilante das minhas insónias.

E hoje alguém me falou de saudades. Alguém me chamou para dizer que tinha saudades de mim. Assim, sem me avisar - sentiu a minha falta. Esta coisa estranha emaranhada na minha insónia, este simples artefacto transformado em algo que consegue preencher outros vazios. Algo quase desconhecido para mim que sei  despertar essa saudade apenas a alguns. E no entanto, longe destes, bem mais distante de mim, traçado por dias passados, alguém reteve algo de mim, uma lembrança que deixou poisar uma saudade e uma falta.

Estranho. 

Porque acabou por acordar uma saborosa nostalgia passada. Estranho. Esse sereno apertar de memórias que se consuma numa vontade de regresso e voltar a encontrar outro. Estranho, porque nem sempre os limites pertencem aos mais próximos de nós, os que nos acompanham todos os dias. 

Senti a fraqueza que parece consumir a minha respiração quando algo semelhante a um rasgo de felicidade cintila.

Mesmo com a chuva de neve e o vento agreste consegui deixar entrar a saudade de outro.

Adormeci muito antes de amanhecer. O sono foi de horas. Solto. Livre.

(Fleuma)

 

É amargo o sabor que permanece quando alguém se despede com as palavras " vou para casa", e acabamos por descobrir que nunca mais voltam para nós. Quando descobrimos que afinal esse "vou para casa" é um fim total, o testemunho de um Nada tão vazio como inundado pela desilusão. 

Somos cegos ao ponto de uma ignorância estúpida - esta é uma primeira chicotada para nós, os que ainda permanecem no caminho de casa. Depois? Muitas outras vergastadas, cada fustigar um novo corte para relembrar, cada recordação, uma  nova forma de punição que sabemos, é merecida. Não existe maior inferno do que aquele que nos revela em carne crua e sem piedade, a nossa mais estúpida e profunda cegueira perante o que está em rota de colisão com a nossa própria face.

Este "vou para casa" sem um regresso nunca me consolou como despedida, sempre serviu apenas para retalhar em culpas e remorsos escuros. Sempre envenenou os meus sentidos com aquele ódio cego e intolerante a todas as tentativas de sossego pessoal, a qualquer ideia, por mais distante que seja, de consolo sem culpa. Como se neste "vou para casa" houvesse aquele suspirar irónico perante uma piada sem graça. Talvez fosse bem melhor aceitar que foi uma decisão forjada nas minhas costas por quem também já se afogava e decidiu não resistir. 

Pura e simplesmente isto. 

Pura e simplesmente a maior libertação que raramente conseguimos vislumbrar. Apenas quando é tarde de mais. 

O inferno é exatamente o nosso. Pessoal. Criado pela nossa vontade de manter vivo,  a cintilar como um pequeno verme, que com o assobiar dos anos, vai consumindo e crescendo como um colosso, nunca desaparecendo realmente. Está presente nas manhãs mais claras e de brisa suave; naquelas tardes, entre tragos de café negro e na memória do primeiro sabor de uma bolacha com morango e canela; e nas noites, principalmente na insónia mais perene, quando a solidão nos esbofeteia a arrogância e a cegueira. 

Este "vou para casa"é uma chave que abre a porta para uma saudade dolorosa e uma nostalgia invencível. 

Tudo, rigorosamente tudo, se esfuma neste ódio intimo em frente a este espelho de mim próprio. A esta falta de vontade de aceitar onde falhei.

(Fleuma!)

 

A viagem pode ser interminável para o viajante insaciável, mesmo neste mundo onde tudo parece ligado; onde todos parecem pensar no mesmo; todos parecem querer seguir pelos mesmos caminhos. E onde as distâncias parecem atemorizar muito mais do que resplandecer o sentimento de liberdade.

Alguns. Uns poucos. Seguem sempre mais longe.

Não é sequer um sentimento de lobo solitário. Não, claro que não. Nada tem de romântica esta necessidade de viajar muito mais longe. O poeta que anseia pela descrição do viajar raramente conhece o Viajante, porque nem sempre lhe reconhece aquele odor de loucura a vaguear, ali, um pouco mais abaixo da margem que se avista. Não consegue realmente descrever a surdina do pensamento dos que sistematicamente se recusam a aceitar a pacatez dessa imobilidade, que muitos reclamam como felicidade e vida. É como uma fome incandescente que devora o espaço. As horas e os dias.

Eu partiria contigo muito antes do sol nascer. Quando a noite ainda segredava outros encantos. Como gosto de o fazer. Desde que me recordo de mim como criatura caminhante que anseio por começar a Viagem antes da luz do sol.

Partilharíamos as estradas e as montanhas como dois companheiros incansáveis. Os nossos olhos seriam os espelhos da nossa própria salvação. A neve dessas encostas a nossa amante possessiva com o beijo gelado dos ventos a sussurrar sobre outras encostas e outras escarpas.

Caminharíamos pelo calor com panos na cabeça e a face tapada. E sei que esses olhos iriam cintilar com as tempestades de areia.

Mergulharíamos nos mares gelados do Norte até conseguires tocar, nadar, deslumbrada, entre os seus grandes fjords num silêncio astral. Nunca mais desejarias voltar a olhar para trás. 

Saberias de Runas e conhecerias os teus próprios passos na Grande Floresta. Onde viaja o corvo da montanha. Porque somos criaturas desmedidamente pequenas a construir Grandes Muralhas, apenas para manter aceso o sonho de grandeza.

Conhecerias os Meus. Os Meus Salvadores. Provarias do vinho do Seu Orgulho. Do Seu Rir. Da Sua Força tão imensa. Cantarias as Nossas Canções junto ao grande Fogo. Dançarias nas brumas enquanto os céus se queimam nas auroras. Brindarias entre Amigos. Irias rir e chorar porque nada se compara a estas preciosidades únicas e tão distantes da tua vida agora.

E sei que quando voltasses aos teus dias de agora saberias porque sempre te falo de Saudade e Nostalgia. 

Sei que os teus olhos iriam brilhar distantes. 

Que irias traçar lembranças a negro no teu corpo, num recordar que apenas sossega quando se despe, e pelo olhar sereno e intimo, pela ponta de um dedo que segue por esses esquissos, afoga um pouco a 

vontade de voltar a partir para junto Deles.

E nunca mais regressar.

(Fleuma,)

"Valhöll"

É uma forma de redenção entender, finalmente, a voz que murmurava esta melodia nas noites em que a cama era um labirinto sem saída.

Compreender, finalmente, esse rosto,

e esse amor.

Sou um fantasma.

Este tempo não é o meu.

"Só é saudável em nós aquilo pelo qual não somos especificamente nós mesmos: são as nossas aversões que nos individualizam; as nossas tristezas que nos concedem um nome; as nossas perdas que nos fazem possuidores do nosso Eu. Só somos nós mesmos pela soma dos nossos fracassos.“

—  Emil Mihai Cioran (Breviário de Decomposição)







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