Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


 

Chega-me esse prazer em doses imensas; às vezes na mais monástica devoção - florestas densas, rios que escorrem de rompante aos primeiros raios de sol, montanhas brancas até ao céu nublado de chumbo cinzento. Gatos. O negro cego do olho esquerdo e com o direito de cor pérola verde. O pardo, recurvo na companhia, gosta do cheiro da minha chávena de café. 

Solidão. Sentida como a respirar durante as horas silenciosas e frias do amanhecer antes do tempo. Isso. Isso mesmo. Alguém gosta de lhe chamar meditação. Eu não. É apenas a intoxicação pela distância que extasia o viajante. Não procuro explicar nem compreender esta embriaguez por mais que caminhe e esteja ausente. Este vácuo nunca fica cheio. Apenas cresce e devora.

E ela

Ela é o meu paradoxo e entropia resgatado na minha existência. 

Misteriosamente, ela traz densidade aos meus instintos; estranhamente, abunda em mim a certeza de que sem ela não existe nada - mas é com ela que a mais simples expressão, o gesto mais desnudado ou o sorriso mais suave se veste do meu prazer mais inefável. 

(Fleuma)

Raro.

Tão sobriamente raro ...

 

... como aqueles que não se entregam nas mãos dessa normalidade destes dias, nesse sereno prazer secreto de testemunhar, conseguir "ver", essa armadura de negação a estes dias. 

Enquanto cismo nesta ideia, inerte a tudo o que me rodeia, excepto ao clarão das palavras proferidas naquele tom pardo e quase sussurrado, como se mais alto fossem capazes de mutilar, vou bebendo delas embriagado e no respeito de um silêncio por mim próprio imposto. Catártico e sombrio como uma lâmina vai desnivelando a minha ilusão de estabilidade. Ponto por ponto. Racha por racha. Fibra por fibra. Até restarem apenas os filamentos escuros do meu orgulho. Esse animal falsamente aplacado. Essa besta agachada e em chacota que simula na perfeição a domesticação dos seus instintos. 

( Fleuma )

Consigo encontrar o mais ínfimo detalhe de uma partícula do Universo naquela primeira chávena de café quente nas auroras geladas quando o sol brilha frágil e submisso. Nos silêncios mais espessos e na falta de palavras, as expressões mais violentas do meu amor mais intenso, a mais crua desfiguração dos meus instintos mais íntimos, a minha maior obsessão por tudo o que cresce dessas manhãs prematuras. O primeiro pedaço de pão escuro toscamente partido pela mão, o intenso crispar do meu sabor no primeiro pedaço de queijo forte e de cheiro ancestral, enquanto vai estalando o fogo que aquece a casa. O bolo em cima da mesa, mesmo agora acabado de sair do forno, a escaldar entre o chocolate negro, as amoras silvestres e a canela mais pura que alguma vez senti! É como uma justificação para conseguir respirar outro dia, entre aquele ligeiro estremecer de antecipação premeditado e o doce silenciar da alma neste amanhecer. 

Mergulho profundamente nos movimentos sinuosos do corpo que gravita junto a mim, perdido nessa beleza surreal, tacteando cego, enquanto vai percorrendo a sombra e a luz, leve e felina, cheirando a desejo - a minha própria bestialidade. Morreria neste preciso instante sem mágoa enquanto escuto a sua respiração suave, ruminando na impossibilidade dos seus olhos celestes, do sorriso lascivo e de promessa, da melodia das palavras de um dialecto que sibila, na preciosidade da companhia como amantes. 

Silencio a minha alma atrás da enorme janela de vidro, descansando os olhos matinais nas árvores da floresta gelada à minha frente. Sei deste privilégio. Sei da virtude de uma solidão partilhada no caminho da floresta; a extravagância de percorrer esta ausência de ruídos que talvez seja um novo estado de quase loucura em mim.

Sou um mestre na arte de habitar nos pormenores. Creio que esta é uma virtude de alguns animais. Mas não a aprendi sozinho.

Não. 

(Fleuma)

Por vezes, no regresso a este local, sinto uma estranha emoção, muito interna, muito presente. Neste ponto onde tento respirar outra atmosfera, respiro saudades de ti. Creio que é de egoísmo que escrevo estas palavras, de ingratidão porque me afasto para demasiado longe com demasiada frequência, mas pouco me interessam essas falhas. Certos vazios nunca são realmente preenchidos mesmo que consideremos ser um direito criar o vácuo. A saudade não deixa de estar presente ainda que breve, mas é terrivelmente intensa como aquele instante de quem entra em casa e tudo está vazio e silencioso, um caminho que abre as portas e anda pelos corredores sem uma presença, sem um som além dos seus próprios passos. Este torpor que sujeita os sentidos fascina-me mas embrutece o pensamento porque algo está ausente, perdido entre uma certa nostalgia do que não irá regressar. Sabes que eu acho a saudade e a nostalgia em facas de fios afiados que rasgam e mutilam sem piedade. Sabes que sim. E assim deve ser para sentir o verdadeiro sabor do valor de quem, em momentos únicos, partilhou as minhas palavras e me chamou amigo. Algo primário e visceral como se nesses precisos momentos, a viagem não fosse solitária, pelo menos neste local. 

Para mim é o acenar a uma vontade de não esquecer o que não é fácil de encontrar.

O assentir à preciosidade de uma porta aberta.

(Fleuma)

 "JIM HARRISON"

 

 

 

Esta noite um pacto entre caminhos.

Sangue por sangue. Olhos nos olhos. Pensamento por pensamento. Um pacto de companhia entre caminhantes. 

Ou talvez um pactuar de almas cegas. Gosto disso. Do sabor de uma alma cega e silenciosa, que cintila quando lhe mostro o ranger dos ramos das árvores ao peso da neve do Norte.  Gosto dessa ideia, de uma outra alma cega, que mesmo assim, consegue apontar-me outros silêncios consentidos, outras auroras em noites de insónia.

E neste pacto, insisto em escrever-te com sangue porque não consigo abandonar esta paixão pelas noites em que não durmo solto e com a leveza do cansaço extremo. Falar desse abandono em luxuria pontuado pelas luzes nos céus escuros que tantas e tantas vezes revigoram as minhas certezas. Insisto nisto, é claro. Eu sei. Uma forma de loucura que se aproxima de uma febre espástica; uma paixão tão dolorosa como arrebatadora. E mesmo assim não é possível para mim resistir-lhe. 

Sabes?

O velho nunca mais voltou a percorrer o estreito caminho de pedra do jardim até ao canto mais profundo, para colocar uma flor junto da imagem de uma senhora. Há muitos meses - mas eu insisto em sentar-me em frente à casa fechada. E continuo a inclinar a cadeira onde me sento contra a parede, e a poisar os pés em cima do parapeito de madeira. E permaneço estático com a caneca de café nas mãos como se acreditasse que o velho voltará a colocar a flor no pequeno altar. Talvez um outro pacto que recuso rasgar, sabes? Porque me fustiga a tristeza aquela casa silenciosa e fechada aos passos do velho. Porque me parece que as pequenas árvores do pequeno jardim já não dançam com o vento, como sempre me pareceu quando o velho caminhava ligeiro entre elas. Por isso não quebro este pacto que o senhor de cabelos estreitos nunca quis assinar, mas que eu, demónio de encruzilhadas, decidi pactuar. 

Acredito em pactos desaparecidos da memória. Antiquíssimos como a necessidade de te descrever o que persigo - como se isso fosse importante para ti. Como um desejo intenso de que o teu olhar seja o meu e o velho desaparecido permaneça, como um selo de sangue entre nós. 

(Fleuma)

 

 

Atmosferas são como pessoas. Reconheço uma intensa paixão por pessoas atmosféricas, que oscilam por ventos agrestes caminhando por labirintos gelados, e por fim, por fim, deliciosamente se tornam suavemente cálidas. Estas criaturas são pactos de um sangue atmosférico, cruelmente dotadas daquele vigor sanguíneo cuidadosamente calibrado para forçar a paixão mais bruta e crua. Nunca nos amam por pedaços. Nunca pretendem a nossa mudança. Conquistam a nossa totalidade. Absorvem a nossa sombra de braços abertos. Bebem de tempestades. Das nossas agitações e espasmos.

Amo-as.

Intensamente.

Em raiva. 

Essas atmosferas são como um arrebatamento em delírio que respira em nós. Algumas, serão as que desejo ver nos últimos instantes de uma existência sombria, as mais belas e brilhantes, as mais violentas e lacerantes. 

E nesses últimos instantes, antes desse Nada absoluto, em egoísmo, vou desejar guardar toda a beleza dessa brutalidade, toda a salvação desses braços que se abriram para mim.

(Fleuma)

"Não há nas farmácias nada específico contra a existência; só pequenos remédios para os fanfarrões. Mas onde está o antídoto do desespero claro, infinitamente articulado, orgulhoso e seguro? Todos os seres são desgraçados, mas quantos o sabem? A consciência da infelicidade é uma doença grave demais para figurar em uma aritmética das agonias ou nos registos do Incurável."

- Breviário de Decomposição, Emil Cioran

 

Existe uma fina linha quando o desespero insiste em unir-se à compaixão. Um vergar do pensamento mais cínico e descrente na alma humana,  insuportavelmente real, quando confronta os dias da nossa parcimónia indiferente numa lição cirurgicamente administrada no ego, a humilhação final. Se o desespero mais puro e surdo é um dos alimentos da verdadeira condição humana, a compaixão mais profunda, sentida em todas as fibras, é o antídoto contra uma morte de indiferença naquele veneno escuro e espesso que tão bem sabemos ruminar. Se o desespero não é estranho em nós, partilha infatigavelmente os nossos dias, é obscenamente dócil maquinar nele a nossa escuridão, e mesmo sabendo que nem todos sabem realmente o que ele é no seu estado mais puro e surdo, os seus caminhos não são desconhecidos para ninguém. A compaixão mais genuína e despida de atrocidades falsamente altruístas é um outro Animal, quase etéreo. Testemunhada na sua expressão mais crua é um fenómeno tão esparso que a maioria das criaturas que caminham por este decrépito planeta corre toda uma existência sem um vislumbre dele. É uma outra Besta quase mítica, sonhada e embalada como essência de Deuses e paraísos dourados. Corporizada nos santos ou filhos de Deus crucificados. Quem no entanto, talvez por uma bizarra conjugação universal, tem o privilégio de presenciar a compaixão naquele preciso e único momento, naquele curvar Universal que muito provavelmente nunca mais voltará a vislumbrar, nunca será capaz de lhe atribuir um sentido, uma definição, uma emoção ou racionalidade; é um corpo estranho que nos perfura sem que seja possível a defesa. Um golpe surdo e implacável que faz vacilar perigosamente todos os alicerces da razão. É uma impossibilidade a desaparecer, aquela em que os olhos testemunham a mão que se estende para ajudar a erguer e amparar sem disso esperar retribuição. Deixa em nós um vazio por algo que foi retirado e não devolvido.

O desespero é uma cicatriz que nunca sara. Podemos adormecer com o monstro iludidos de que um dia deixará de respirar dentro nós.

A compaixão, esse vergar da alma humana, essa submissão de todos os nossos princípios mais queridos em nome de outro sem hesitação é como um pestanejar - se fecharmos os olhos naquele instante nunca chegaremos a duvidar do realismo cínico e frio que o desespero alimenta carinhosamente.

A grande ironia da compaixão não é a piedade mentirosa e sedenta de atenção. A maior das ironias é possuir uma força impossível que apenas existe entre poucos.

E os que restam podem apenas sonhar entre o cinismo e o desespero.

(Fleuma)

A Dor e outros Prazeres

999

Atravessar a passagem de alguém sempre me fascinou. O efeito causado por esse cruzamento é ainda mais fascinante; em muito raras vezes, algo fica como marca, e recuso-me a deixar fugir esses traços no tempo.  As outras, as que pretendo esquecer, são muitas. Demasiadas. São marcas profundas, pesarosas, antigas, a troçar precisamente disso: esquecimento. 

Mas são os cruzamentos que recuso deixar escapar que assombram os meus dias. São essas raras encruzilhadas onde não permito o esquecimento, e vou, metodicamente, tentando regressar uma e outra vez. Essa raridade preciosa que existe em Algo ou Alguém não é uma virtude comum a todas as criaturas ou coisas. Não. É um ponto de referência que consegue desviar a minha vontade naqueles sinais vestidos de portento que demonstram precisamente o que falta em mim, esse Algo ou Alguém onde poisar, esses traços únicos de lucidez distante, a noção de ter encontrado algo que perdi. 

Faltam-me demasiado tempo esses alambiques escondidos, expressões de Algo estranho em mim. Faltam-me muitas vezes as palavras para o descrever, e então, em outras passagens e encruzilhadas, aprendo e conheço.

Reconheço.

(Fleuma)

 

 

 

Hans Lindström

Ad Nauseam

 



Arquivo

  1. 2024
  2. JAN
  3. FEV
  4. MAR
  5. ABR
  6. MAI
  7. JUN
  8. JUL
  9. AGO
  10. SET
  11. OUT
  12. NOV
  13. DEZ
  14. 2023
  15. JAN
  16. FEV
  17. MAR
  18. ABR
  19. MAI
  20. JUN
  21. JUL
  22. AGO
  23. SET
  24. OUT
  25. NOV
  26. DEZ
  27. 2022
  28. JAN
  29. FEV
  30. MAR
  31. ABR
  32. MAI
  33. JUN
  34. JUL
  35. AGO
  36. SET
  37. OUT
  38. NOV
  39. DEZ
  40. 2021
  41. JAN
  42. FEV
  43. MAR
  44. ABR
  45. MAI
  46. JUN
  47. JUL
  48. AGO
  49. SET
  50. OUT
  51. NOV
  52. DEZ
  53. 2020
  54. JAN
  55. FEV
  56. MAR
  57. ABR
  58. MAI
  59. JUN
  60. JUL
  61. AGO
  62. SET
  63. OUT
  64. NOV
  65. DEZ
  66. 2019
  67. JAN
  68. FEV
  69. MAR
  70. ABR
  71. MAI
  72. JUN
  73. JUL
  74. AGO
  75. SET
  76. OUT
  77. NOV
  78. DEZ
  79. 2018
  80. JAN
  81. FEV
  82. MAR
  83. ABR
  84. MAI
  85. JUN
  86. JUL
  87. AGO
  88. SET
  89. OUT
  90. NOV
  91. DEZ
  92. 2017
  93. JAN
  94. FEV
  95. MAR
  96. ABR
  97. MAI
  98. JUN
  99. JUL
  100. AGO
  101. SET
  102. OUT
  103. NOV
  104. DEZ
  105. 2016
  106. JAN
  107. FEV
  108. MAR
  109. ABR
  110. MAI
  111. JUN
  112. JUL
  113. AGO
  114. SET
  115. OUT
  116. NOV
  117. DEZ
  118. 2015
  119. JAN
  120. FEV
  121. MAR
  122. ABR
  123. MAI
  124. JUN
  125. JUL
  126. AGO
  127. SET
  128. OUT
  129. NOV
  130. DEZ
  131. 2014
  132. JAN
  133. FEV
  134. MAR
  135. ABR
  136. MAI
  137. JUN
  138. JUL
  139. AGO
  140. SET
  141. OUT
  142. NOV
  143. DEZ
  144. 2013
  145. JAN
  146. FEV
  147. MAR
  148. ABR
  149. MAI
  150. JUN
  151. JUL
  152. AGO
  153. SET
  154. OUT
  155. NOV
  156. DEZ
  157. 2012
  158. JAN
  159. FEV
  160. MAR
  161. ABR
  162. MAI
  163. JUN
  164. JUL
  165. AGO
  166. SET
  167. OUT
  168. NOV
  169. DEZ
  170. 2011
  171. JAN
  172. FEV
  173. MAR
  174. ABR
  175. MAI
  176. JUN
  177. JUL
  178. AGO
  179. SET
  180. OUT
  181. NOV
  182. DEZ


topo | Blogs

Layout - Gaffe