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Oiço com frequência o elogio à capacidade da memória de certas pessoas, quase mecânica, onde basta a pressão de um botão para uma impressão clara e sem falhas. A minha, talvez porque pratico cada vez mais esse estranho e obscuro culto de procurar o isolamento físico entre as florestas e as montanhas, tem o padrão sombreado das estantes com pensamentos sem títulos ou notas de orientação. Apenas eu, porque me arrasto há anos entre as estantes e labirintos da minha memória, consigo sentir esse sabor tão profano e delicado de uma recordação que desperta em mim a impressão de um grande momento a acontecer. E por vezes são momentos que surgem do passado. Mesmo sem as anotações de margem, ainda que não conseguindo a eficácia da máquina mental, eu sei que as memórias são como as pessoas, às vezes surgem à nossa frente como um livro que cai de uma prateleira.
Conheço criaturas que são como as florestas; observadas na distância parecem sólidas e unidas como árvores densas, compreensíveis e em harmonia, mas quanto mais me aproximo mais se separam, mais se rasgam as luzes e as sombras num cegar momentâneo. São memórias que surgem sem forma, para logo a seguir crescerem em detalhes que enchem tudo à sua volta.
São como florestas que dormem na névoa cinzenta, mas também emitem sons pardos que pensamos perdidos, cintilam em pequenos rasgos de luz solar, caminham para nós entre os estalidos das folhas e dos ramos secos das manhãs sossegadas; são tantas vezes, pequenos animais de olhos brilhantes, que pela nossa estupidez desajeitada, podem fugir amedrontados e desaparecer entre as estantes, acabando apenas por restar o silêncio e as flores.
Creio que estes grandes momentos são seduções fragmentadas que ajudam a transformar as punições da existência; estão é muitas vezes descoloridos pelo tempo no caos da nossa lembrança, e pelo nosso estúpido hábito de alimentar o silêncio do esquecimento.
(Fleuma)
(999)
Certas Artes conseguem iluminar recantos obscuros e transformar paradoxos em expressões subliminares de beleza escura, retratos que podem, perigosamente, revelar emoções e pensamentos enterrados. Ocultos. Talvez até consigam explicar a plástica entre a Sombra e a Claridade com a arrogância da observação meticulosa do artificie com séculos de prática. Ou então pelos olhos de quem sente o mesmo no preciso instante em que retrata as Sombras e as Claridades como se fossem familiares em si, tocadas com traços de paixão, reveladas num instante de portento tão ciosamente raro como ser amado por inteiro, sem separações ou lacerações. São olhares íntimos que captam expressões fugazes como um pestanejo, plasmadas naquele preciso instante, depois voltando a recolher-se entre véus de desconhecimento, suspiros breves de reconhecimento que se encontram pela mão Artística.
A Arte que corporiza a latência entre as Sombras e a Claridade é a mais bela das dádivas humanas, o espelho do Verme e do Anjo que reveste a nossa carne, um santuário de humilhação ou a glorificação de uma essência intima, submersa no receio pessoal de expor a verdadeira natureza. A nossa verdadeira natureza pela carne num pormenor captado no exacto momento do alinhamento.
E são terríveis essas Artes nas mãos e pelos olhos dos que as dominam; parecem vestir-se de um apelo e sedução insólitos quando nos conseguem convencer da existência de algo belo em nós, onde julgamos apenas existir uma mancha impura. Esta alquimia que transcende a nossa própria intimidade enquanto vai misturando as nossas emoções é ostensivamente fascinante e subversiva, porque cria em nós a harmonia de uma admissão, ainda que apenas por escassos segundos.
A Singularidade que torna possível "ver" a beleza que respira e se esconde entre as cinzas da nossa incerteza é perigosa, porque descobre a nossa própria alma.
(Fleuma)
A velha senhora colocou a chávena em cima da mesa. De tronco erecto e firme, envolta naquela ténue e reconfortante escuridão que habita em certas casas, e que parece confirmar a certeza de que algumas criaturas nasceram para navegar entre a luz e a sombra sem medo. E não existe nenhum ruído que consiga perturbar aquele instante nem sequer os passos da velha senhora.
"Noita ..."
... Ouvi os rumores que alimentam negros pensamentos, como se a senhora fosse um encantamento raro, desses encontrados em Grimórios proibidos por Deus, forjados em poções malignas e alforges malditos.
Talvez seja assim.
Porque os seus olhos brilham com rastos de azul quase cósmico. Enfeitam um rosto longo e pálido apenas traçado por rugas ténues e suaves como o seu falar. O cabelo é branco como a neve, entrançado, espesso e farto apenas no topo do crânio, a contrastar com o resto meticulosamente rapado atrás das orelhas, que foram seguramente desenhadas por uma alquimia desconhecida, cobertas desde a hélice até ao lóbulo por um artefacto negro, gracioso e profusamente fascinante aos olhos. Tem o pescoço esguio e estreito sem a mácula da idade e o vestido em tons negros - porque o negro atrai o calor -, cai sobre a sua silhueta longa e serpenteante como um nevoeiro cintilante.
Parece nunca ter conhecido os rigores dos anos que passam quando sorri num tremor quase embaraçado, mesmo assim rasgando os lábios finos num assombro de dentes longos e alinhados, brancos como a neve que cega na Tundra, absurdamente perfeitos naquele rir sem esforço. Fala com as mãos de dedos longos e finos, gesticulando com a mesma serenidade com que move o corpo, e parece-me anterior a tudo o que conheço, mesmo antes do próprio nascimento dos Deuses.
Nunca soube os anos que tem. Nunca me interessou saber.
Nunca lhe disse que cheira ao fresco silvestre das manhãs na floresta porque entramos na sua casa como lobos num salão dourado e consagrado, silenciosos. A senhora sabe como se reclinam os espíritos enquanto serve o chá vermelho quente de ervas em chávenas altas brancas e pretas, embalado como um infante no portento pecaminoso de uma generosa fatia de "Pulla" acabada de sair do forno, gloriosamente banhada numa luxúria de manteiga, leite caseiro, cardamomo e açúcar castanho escuro.
E é pela noite fora, no breu mais espesso, enquanto as conversas vagueiam insolentes e livres, que quase torna possível abrir esses Grimórios ancestrais, quando serve o café tão negro como os breves instantes de um eclipse, de grão levemente torrado, ácido e sem açúcar, draconiano e quente como as poções que afastam o frio do corpo e da alma.
(Fleuma)
... Enquanto vai ventilando a sua raiva quase não consigo resistir ao impulso de cruzar os braços à volta do peito, como quem assiste ao desmoronar de um muro de convicções sonhadas sem mexer um músculo. Talvez sejam necessários para mim estes instantes finais de um fogo a extinguir-se nos olhos de outra pessoa. Não essa extinção que termina a existência - já a observei ruminando sobre a livre vontade de escolha e não senti qualquer desejo de cruzar os meus braços junto ao meu peito. É a chama que se apaga no brilho do olhar antes afogado naquele ardor de quem imaginava saber tudo. A fluência que abundava nos olhos e que transformava os juízos em simplificações para ocupação dos dias arrastados, essa coisa assimétrica a que o observador astuto assiste, esse brilho no olhar que se torna opaco quando descobre o erro tem a potência de um monólito a partir com estrondo. E afinal não somos templos vivos? E afinal os templos vivos também se extinguem na constrição destes raros instantes.
... Talvez este extinguir de convicção no olhar até seja um reclinar meu para a necessidade de sobreviver mantendo a minha chama acessa, mesmo que este sintoma transpire arrogância e orgulho pessoal. Eu sei que mantenho este fogo. Sei porque antes ele não estava vivo. Sei porque antes não havia calor apenas aragem fria.
... E de súbito, entre a raiva de quem sempre julgou conhecer os nossos passos ao pormenor e a surpresa de quem não sabe o seu caminho de regresso, somos perfeitos desconhecidos para outra criatura.
(Fleuma)
Chega-me esse prazer em doses imensas; às vezes na mais monástica devoção - florestas densas, rios que escorrem de rompante aos primeiros raios de sol, montanhas brancas até ao céu nublado de chumbo cinzento. Gatos. O negro cego do olho esquerdo e com o direito de cor pérola verde. O pardo, recurvo na companhia, gosta do cheiro da minha chávena de café.
Solidão. Sentida como a respirar durante as horas silenciosas e frias do amanhecer antes do tempo. Isso. Isso mesmo. Alguém gosta de lhe chamar meditação. Eu não. É apenas a intoxicação pela distância que extasia o viajante. Não procuro explicar nem compreender esta embriaguez por mais que caminhe e esteja ausente. Este vácuo nunca fica cheio. Apenas cresce e devora.
E ela?
Ela é o meu paradoxo e entropia resgatado na minha existência.
Misteriosamente, ela traz densidade aos meus instintos; estranhamente, abunda em mim a certeza de que sem ela não existe nada - mas é com ela que a mais simples expressão, o gesto mais desnudado ou o sorriso mais suave se veste do meu prazer mais inefável.
(Fleuma)
Raro.
Tão sobriamente raro ...
... como aqueles que não se entregam nas mãos dessa normalidade destes dias, nesse sereno prazer secreto de testemunhar, conseguir "ver", essa armadura de negação a estes dias.
Enquanto cismo nesta ideia, inerte a tudo o que me rodeia, excepto ao clarão das palavras proferidas naquele tom pardo e quase sussurrado, como se mais alto fossem capazes de mutilar, vou bebendo delas embriagado e no respeito de um silêncio por mim próprio imposto. Catártico e sombrio como uma lâmina vai desnivelando a minha ilusão de estabilidade. Ponto por ponto. Racha por racha. Fibra por fibra. Até restarem apenas os filamentos escuros do meu orgulho. Esse animal falsamente aplacado. Essa besta agachada e em chacota que simula na perfeição a domesticação dos seus instintos.
( Fleuma )
Consigo encontrar o mais ínfimo detalhe de uma partícula do Universo naquela primeira chávena de café quente nas auroras geladas quando o sol brilha frágil e submisso. Nos silêncios mais espessos e na falta de palavras, as expressões mais violentas do meu amor mais intenso, a mais crua desfiguração dos meus instintos mais íntimos, a minha maior obsessão por tudo o que cresce dessas manhãs prematuras. O primeiro pedaço de pão escuro toscamente partido pela mão, o intenso crispar do meu sabor no primeiro pedaço de queijo forte e de cheiro ancestral, enquanto vai estalando o fogo que aquece a casa. O bolo em cima da mesa, mesmo agora acabado de sair do forno, a escaldar entre o chocolate negro, as amoras silvestres e a canela mais pura que alguma vez senti! É como uma justificação para conseguir respirar outro dia, entre aquele ligeiro estremecer de antecipação premeditado e o doce silenciar da alma neste amanhecer.
Mergulho profundamente nos movimentos sinuosos do corpo que gravita junto a mim, perdido nessa beleza surreal, tacteando cego, enquanto vai percorrendo a sombra e a luz, leve e felina, cheirando a desejo - a minha própria bestialidade. Morreria neste preciso instante sem mágoa enquanto escuto a sua respiração suave, ruminando na impossibilidade dos seus olhos celestes, do sorriso lascivo e de promessa, da melodia das palavras de um dialecto que sibila, na preciosidade da companhia como amantes.
Silencio a minha alma atrás da enorme janela de vidro, descansando os olhos matinais nas árvores da floresta gelada à minha frente. Sei deste privilégio. Sei da virtude de uma solidão partilhada no caminho da floresta; a extravagância de percorrer esta ausência de ruídos que talvez seja um novo estado de quase loucura em mim.
Sou um mestre na arte de habitar nos pormenores. Creio que esta é uma virtude de alguns animais. Mas não a aprendi sozinho.
Não.
(Fleuma)
Por vezes, no regresso a este local, sinto uma estranha emoção, muito interna, muito presente. Neste ponto onde tento respirar outra atmosfera, respiro saudades de ti. Creio que é de egoísmo que escrevo estas palavras, de ingratidão porque me afasto para demasiado longe com demasiada frequência, mas pouco me interessam essas falhas. Certos vazios nunca são realmente preenchidos mesmo que consideremos ser um direito criar o vácuo. A saudade não deixa de estar presente ainda que breve, mas é terrivelmente intensa como aquele instante de quem entra em casa e tudo está vazio e silencioso, um caminho que abre as portas e anda pelos corredores sem uma presença, sem um som além dos seus próprios passos. Este torpor que sujeita os sentidos fascina-me mas embrutece o pensamento porque algo está ausente, perdido entre uma certa nostalgia do que não irá regressar. Sabes que eu acho a saudade e a nostalgia em facas de fios afiados que rasgam e mutilam sem piedade. Sabes que sim. E assim deve ser para sentir o verdadeiro sabor do valor de quem, em momentos únicos, partilhou as minhas palavras e me chamou amigo. Algo primário e visceral como se nesses precisos momentos, a viagem não fosse solitária, pelo menos neste local.
Para mim é o acenar a uma vontade de não esquecer o que não é fácil de encontrar.
O assentir à preciosidade de uma porta aberta.
(Fleuma)
"JIM HARRISON"